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PERSPECTIVA TEÓRICA

4.5 Fonologia Articulatória

A Fonologia Articulatória (BROWMAN & GOLDSTEIN, 1986; 1992) é uma teoria que contribui para a execução desta pesquisa por considerar os gestos, e não os segmentos ou traços distintivos, como unidade básica da descrição fonológica. Gestos

articulatórios são eventos que ocorrem durante a produção da fala e cujas consequências podem ser observadas nos movimentos dos articuladores (BROWMAN & GOLDSTEIN, 1992). Sob essa perspectiva, a fala é uma atividade motora que se insere nas dimensões do espaço-tempo. A produção da linguagem oral estaria portanto sujeita a modificações e ajustes decorrentes da articulação dos gestos (idem, 1986). Cada unidade de fala consiste de múltiplos gestos que se encadeiam e se sobrepõem uns aos outros conforme os movimentos dos articuladores.

Os grupos musculares que controlam os articuladores têm suas ações coordenadas de forma a alcançar um objetivo pontual, tal como a constrição dos lábios, da língua ou a abertura do véu palatino. Por exemplo, para articular um único gesto de constrição labial, é preciso que os lábios inferior e superior e a mandíbula movimentem-se coordenadamente. Assim, a produção dos gestos individuais envolve vários movimentos que variam segundo as especificações capturadas pelas variáveis do trato vocálico (como a protusão labial). O quadro abaixo lista as variáveis do trato e os articuladores ligados à sua caracterização - seguindo a nomenclatura para o português proposta por Albano (1999b; 2001):

Variáveis Articuladores envolvidos

PL protusão labial lábios inferior e superior, mandíbula AL abertura labial lábios inferior e superior, mandíbula LCPL lugar de constrição da ponta da língua ponta da língua, corpo da língua, mandíbula GCPL grau de constrição da ponta da língua ponta da língua, corpo da língua, mandíbula LCCL lugar de constrição do corpo da língua corpo da língua, mandíbula

GCCL grau de constrição do corpo da língua corpo da língua, mandíbula

AV abertura vélica véu palatino

AG abertura glotal glote

Quadro 7 - Variáveis do trato vocal e os articuladores envolvidos

Fonte: Browman & Goldstein (1992)

Browman e Goldstein (1992) propõem que os gestos sejam analisados como caracterizações abstratas de eventos articulatórios envolvendo os grupos de articuladores individuais. A abstração fonológica na Fonologia Articulatória se dá a partir da atividade motora da fala que, como dito acima, está sujeita aos mesmos ajustes motores aos quais as demais atividades motoras estão. Em outras palavras, o conhecimento fonológico é dinâmico sob essa abordagem, uma vez que é derivado das atividades espaço-temporais que caracterizam a produção da fala.

Os ajustes motores aos quais o conhecimento fonológico se relaciona explicam toda uma gama de fenômenos fonológicos sem que seja necessária a postulação de regras binárias de inserção ou cancelamento de segmentos, por exemplo. Casos tradicionalmente tratados como assimilação, enfraquecimento e fortalecimento de segmentos, epênteses e elisões são explicados pela Fonologia Articulatória de maneira consistente com a natureza fluida da corrente de fala (BROWMAN & GOLDSTEIN, 1992; ALBANO, 1999b; BYBEE; 2001).

A Fonologia Articulatória compreende a gradiência fonética como fator intrínseco à fonologia. Sob essa perspectiva, mudanças foneticamente motivadas são comumente resultado da redução da magnitude dos gestos articulatórios e rotinas motoras e/ou da redistribuição temporal de cada gesto. Albano (1999b), em sua revisão do modelo da Fonologia Articulatória, argumenta que o aumento da sobreposição ou mesmo a redução da magnitude dos gestos pode resultar no desaparecimento ou alteração do sinal acústico observável. A figura que se segue ilustra como as variáveis do trato vocálico se relacionam com os gestos e permitem a compreensão da possibilidade de sobreposição, analisadas por meio da chamada pauta gestual. Apresenta-se a pauta gestual simplificada da palavra ‘passo’ abaixo.

Figura 16 – Pauta gestual simplificada para a produção da palavra ‘passo’ sem sobreposição gestual

As barras horizontais na FIGURA 16 representam simultaneamente a variável do trato em ação e a duração da constrição no tempo. A denominação das variáveis do trato vocálico atuantes (grau de constrição da ponta e do corpo da língua, protusão labial e abertura glótica) estão representadas à esquerda. Neste exemplo, os gestos responsáveis pela produção da palavra ‘passo’ sobrepõem-se minimamente conforme esperado devido ao fato de a fala ser contínua. Caso a palavra ‘passo’ fosse produzida mais rapidamente,

por exemplo, o grau de proximidade entre os gestos aumentaria, causando sua sobreposição (ver FIGURA 17 abaixo).

Uma análise possível das reduções de vogais altas pretônicas é de que a menor duração das vogais altas na sílaba pretônica resultaria em reorganização dos gestos articulatórios da vogal e da sibilante adjacente. O gesto glótico responsável pelo não- vozeamento da consoante teria sua magnitude aumentada devido às propriedades da consoante não vozeada produzida simultaneamente. Assim, a abertura glotal (AG) prevista para a produção do gesto consonantal seria antecipada, ocorrendo simultaneamente aos movimentos da língua que especificam o gesto vocálico, causando a impressão acústica da redução. Da mesma maneira, a sobreposição máxima dos gestos consonantais e glótico explicaria a ocorrência de cancelamento da vogal. A figura abaixo formaliza a análise nos termos das pautas gestuais utilizadas pela Fonologia Articulatória:

Figura 17 - Pautas gestuais simplificadas para produção da sílaba ‘bis’ com a vogal plena e com redução (desvozeamento)

A comparação das pautas gestuais permite captar como a mudança nos parâmetros articulatórios causam a produção de vogais reduzidas. Na primeira pauta (à esquerda) da FIGURA 17, não há sobreposição dos gestos glótico e dos gestos da língua responsáveis pela produção da consoante [s], de modo que cada parte da sílaba é produzida conforme o esperado. Pode-se observar na pauta à direita, no entanto, que a abertura glótica (AG) prevista para a consoante [s] começa a ocorrer antes do fim do gesto da língua referente à vogal, ocasionando o sobreposição dos dois gestos. Como consequência, a vogal é desvozeada.

As camadas das figuras correspondem às variáveis do trato - os parâmetros que são afetados pelas oscilações que especificam os gestos. Desse modo, grau de constrição do corpo da língua (GCCL) é a variável do trato que especifica o gesto vocálico nas figuras 16 e 17. A

abertura glotal (AG) é a variável do trato que especifica o vozeamento; uma maior abertura equivale a não-vozeamento.

A representação do fenômeno de redução na Figura 17 permite captar a correlação negativa existente entre a duração da vogal e a duração da abertura glotal. Percebe-se que o gesto consonantal seguinte se sobrepõe ao gesto vocálico, sobretudo em relação à variável abertura glotal. O aumento da velocidade de fala, por exemplo, seria um dos fatores responsáveis pela compressão dos gestos consonantal e vocálico em um intervalo de tempo reduzido, o que por sua vez acarretaria em desvozeamento e mesmo o cancelamento da vogal. Este pode ser descrito como uma sobreposição máxima, na qual o gesto vocálico ficaria totalmente encoberto pelo gesto consonantal seguinte.

A abordagem gestual de fenômenos fonético-fonológicos não exclui, deste modo, o componente perceptual da mudança linguística. Qualquer mudança nos gestos ou em seu encadeamento temporal acarreta em mudança acústica. À medida que um gesto tem sua duração encurtada, a probabilidade de que ele seja sobreposto e obscurecido pelos gestos adjacentes aumenta. A sobreposição acentuada de dois gestos pode produzir o efeito acústico de que um deles ficar encoberto e, assim, percebido como cancelado.

É relevante notar que a abordagem da Fonologia Articulatória permite explicar tanto a ocorrência quanto a não-ocorrência da vogal alta pretônica de um mesmo item lexical na fala do mesmo indivíduo. Isto é, por ancorar a descrição em aspectos motores e temporais, essa perspectiva teórica elucida a ocorrência gradiente das reduções sem que a variação cause problemas empíricos. Esse avanço em termos descritivos possibilita a investigação da mudança fonética coadunada com a mudança fonológica. Visto que os dados de redução de vogais altas átonas apresentam variação e gradiência (NAPOLEÃO, 2010; YEHIA et al., 2011), esse modelo teórico tem a vantagem de tratar a variação fonética como parte crucial da mudança fonológica, aproximando deste modo fonética e fonologia.

Em suma, a Fonologia Articulatória permite explicar a ocorrência das reduções vocálicas através de fatores articulatórios e temporais. Os gestos articulatórios são unidades que permitem a inclusão de detalhes fonéticos na descrição de alternâncias foneticamente graduais. Assim sendo, a abordagem gestual possibilita explicar a gradiência observada em fenômenos como a redução de vogais altas pretônicas. Uma vez que há evidências de que parâmetros motores e temporais, ambos sujeitos a ajustes pontuais, motivam reduções vocálicas (GORDON, 1998), um enfoque que leve em conta a gradiência na produção é o mais apropriado para a análise do fenômeno.

As próximas seções trazem discussões teóricas que perpassam o tema de estudo desta dissertação. A difusão lexical e a Fonologia de Laboratório são caracterizadas de modo a interligar as questões de cunho teórico com o embasamento empírico necessário à execução desta pesquisa.