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REVISÃO DA REDUÇÃO DE VOGAIS ÁTONAS NA LITERATURA

3.3 Redução como desvozeamento vocálico

O resultado de reduções vocálicas pode ser alternadamente tratado como casos de desvozeamento. Vogais desvozeadas podem ser definidas como vogais articuladas com a glote aberta, em configuração semelhante àquela encontrada na articulação de consoantes não vozeadas. O desvozeamento vocálico pressupõe que as vogais sejam articuladas com ausência de vibração glotal (GREENBERG, 1990, p. 80). Gordon (1998) salienta que o desvozeamento ocorre geralmente como variação alofônica de vogais plenamente vozeadas, ou seja, sem contraste fonêmico. Fatores como altura e duração da vogal, tipo de consoante adjacente, tonicidade, acento prosódico e velocidade de fala contribuem para a ocorrência do desvozeamento vocálico (GORDON, 1998; CHITORAN & MARSICO, 2010).

Apesar de pouco comuns nas línguas do mundo (CHO, 1993; GORDON, 1998), vogais desvozeadas são observadas em línguas tipologicamente distintas como o japonês (HASEGAWA, 1999), o turco (JANNEDY, 1994), o coreano (MO, 2007) e o lesguiano (CHITORAN & BABALIYEVA 2007; CHITORAN & ISKAROUS, 2008). Observam-se desvozeamentos vocálicos também em línguas românicas, tais como o francês metropolitano (TORREIRA & ERNESTUS, 2010; SMITH, 2003), o francês do Quebec (CEDERGREN, 1985) e o espanhol andino (DELFORGE, 2008a, 2008b).

O artigo de revisão bibliográfica de Gordon (1998) apresenta um inventário de 55 línguas em que ocorrem vogais ditas não modais 5

, denominação que inclui o desvozeamento. A partir da análise dos fenômenos fonéticos e fonológicos nas línguas em questão, o autor levanta uma série de características em comum, nesses idiomas, que levariam à articulação de vogais sem o vozeamento. Segundo ele, os fatores que desencadeariam o desvozeamento são de caráter articulatório e prosódico, atingindo sobretudo as vogais átonas.

Há uma citação ao desvozeamento de vogais no português brasileiro, no qual, segundo ressalta Gordon, as vogais altas, mas não as médias ou baixas, sofrem desvozeamento. Isso implica que não foram encontrados casos de desvozeamento de vogais afora [i] e [u] nos dados revisados por Gordon (1998), reforçando a hipótese de que as vogais altas sejam mais propensas ao desvozeamento.

Gordon salienta ainda que as vogais tônicas resistem ao processo de perda de vozeamento. Ou seja, as vogais átonas são aquelas sujeitas ao desvozeamento, cuja ocorrência estaria ligada à atonicidade. Ainda segundo o autor, cuja referência para o PB provém de Crothers et al. (1979), observa-se desvozeamento de vogais nas posições medial e em final de palavra, sem, no entanto, haver referência ao fenômeno em contextos de início de palavras.

Gordon (1998) afirma ainda que o desvozeamento vocálico apresenta-se mais comumente como variação alofônica de vogais altas plenas, sobretudo motivada pelo ambiente fonético e prosódico em que ela se dá. A afirmação do caráter alofônico do desvozeamento implica em categorialidade na análise do fenômeno, uma vez que se

5

São consideradas não modais as vogais produzidas com fonação não modal, isto é, vogais laringalizadas, murmuradas, desvozeadas. (GORDON, 1998, p. 01).

postula que a vogal desvozeada ocorreria em alguns ambientes e a vogal plena em outros exclusivamente.

Em uma comunicação acerca da tipologia das vogais desvozeadas, Chitoran e Marsico (2010) fazem um levantamento dos fatores fonéticos que favorecem o desvozeamento vocálico em 39 línguas, dentre elas o português brasileiro. Esses fatores coincidem com aqueles levantados por Gordon (1998) e sugerem uma explicação estrutural para a ocorrência do desvozeamento vocálico. Os autores propõem que o desvozeamento em línguas como o PB seja devido à assimilação de características de consoantes desvozeadas vizinhas à vogal alta. Isso sugere que haja restrições quanto ao tipo de consoante adjacente para que o desvozeamento vocálico ocorra. O quadro abaixo ilustra os cinco fatores que motivam o desvozeamento, segundo Gordon (1998) e Chitoran & Marsico (2010):

Fatores condicionadores

Altura da vogal Tonicidade da vogal

Vozeamento de consoantes adjacentes Distância das bordas prosódicas

Velocidade da fala

Quadro 5 - Fatores condicionadores de desvozeamento vocálico em Gordon (1998) e Chitoran & Marsico

(2010)

No português brasileiro, o desvozeamento das vogais altas átonas estaria relacionado a fatores estruturais e prosódicos. Primeiramente, vogais altas, mais propensas ao desvozeamento (GORDON, 1998), tendem a ser mais curtas do que as demais no idioma (RAUBER, 2008). Em segundo lugar, observa-se que o desvozeamento tende a ocorrer com frequência quando a vogal precede uma consoante não vozeada, especialmente fricativas (GORDON, 1998). As características do acento em português favorecem a redução, uma vez que as sílabas pretônicas podem ser caracterizadas como tendo menor duração do que as vogais tônicas no idioma (MAJOR, 1985; FAVERI, 2000; CANTONI, em andamento).

A primeira referência direta ao desvozeamento vocálico no PB que se encontrou provém de Câmara Jr. (1973). O autor relata casos nos quais a vogal final [i] de

empréstimos como ‘clube’ e ‘esnobe’ (do inglês club, snob) podem ter uma pronúncia “alofônica surda (isto é, sem vibração das cordas vocais)” (idem, p. 48), o que as tornaria quase inaudíveis, segundo o autor.

Em sua tese de livre docência, Cagliari (1982) afirma que “é comum o desvozeamento de vogais finais diante de pausa” (idem, p. 100), acrescentado que o fenômeno ocorre em todos dialetos de maneira opcional. O autor cita como exemplo o

desvozeamento de sílabas completas em final de enunciado, como em Ela é linda [.]. Mais uma vez, nota-se que o desvozeamento tem o caráter perceptivo de um sussurro, como descrito em outras línguas.

Estudos sobre palatalização apontam para a ocorrência de desvozeamento de vogais finais. Battisti e Herman (2008) afirmam que o desvozeamento da vogal [i] apresenta-se como uma das possíveis variantes do processo de palatalização das oclusivas [t] e [d],

como em toma[t]. Contudo, nenhum dos trabalhos supracitados determinou as motivações para o desvozeamento. Não há tampouco nesses trabalhos referência à duração ou a outros correlatos acústicos nos casos reportados. Este estudo visa examinar o papel das propriedades acústicas, em especial a duração das vogais, no fenômeno de redução como motivação para sua ocorrência.

Finalmente, Napoleão (2010) observou uma conjunção de fatores estruturais em casos de desvozeamento da vogal [u] em sílabas pretônicas travadas pela fricativa [s]. A investigação apontou ainda que o fator frequência de ocorrência favorece a ocorrência do desvozeamento na variedade belorizontina do português.

O desvozeamento de vogais altas resulta com frequência da conjunção de fatores fonéticos estruturais que interagem entre si, tais como duração intrínseca reduzida e atonicidade. Há evidências de que a vizinhança fonética contribua para que a vogal átona manifeste as características de um segmento desvozeado adjacente (GORDON, 1998; CHITORAN & MARSICO, 2010). O desvozeamento pode ser, portanto, compreendido como um caso de coarticulação de segmentos adjacentes na fala corrente. O aumento na sobreposição dos gestos articulatórios motivado por fatores estruturais comprimiria o gesto vocálico em relação ao gesto glótico. Assim sendo, esperar-se-iam pronúncias como []tódia e []car para ‘custódia’ e ‘buscar’, e []tola e []coito para ‘pistola’ e ‘biscoito’, respectivamente.

Os fatores estruturais condicionantes do desvozeamento nas línguas em que ele ocorre coincidem com o contexto de ocorrência das reduções vocálicas de [i] e [u] na variedade mineira do PB. Neste trabalho será avaliado se a conjunção de fatores de motivação fonética observada por Gordon (1998) e Chitoran e Marsico (2010), é igualmente observada nas reduções de vogais altas pretônicas no PB.

A subseção seguinte sumariza as características das abordagens categóricas da redução como cancelamento ou vozeamento e explicita uma terceira possibilidade, a qual leva em conta a gradiência fonética. Justifica-se a escolha de uma perspectiva gradiente por seu caráter mais abrangente, o qual unifica aspectos da abordagem da redução como cancelamento e como alofonia de vozeamento sem excluí-los. A perspectiva gradiente serve de base para a análise dos dados desta pesquisa.