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FONTE: ARQUIVO PESSOAL DE ARISTIDES GUIMARÃES.

Repetindo a parceria estabelecida na I Feira de Arte de Olinda, Jomard Muniz de Britto e José Mário Austregésilo não haviam escolhido à toa o clássico poema de João Cabral de Melo Neto para encenar diante de um grupo que tinha como propósito salvaguardar as tradições nordestinas das influências exógenas deformadoras. Espelhando o programa da palestra pronunciada por Britto, o Grupo Formar apresentou a “radicalidade tropicalista” ao “colocar um tigre” na apresentação de “O Cão Sem Plumas”. A ideia de encenar o poeta pernambucano, prestes a ser eleito naquele mesmo ano membro da Academia Brasileira de

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O roteiro de conferências programado pelo “O Grupo” obedeceu à seguinte ordem: “Conceituação de arte alienada x arte engajada” por Jesus Câmara Zapata, “O momento atual das artes plásticas no Nordeste” por José Cláudio e Anchises Azevedo, “O místico e o mítico dentro das artes nordestinas” por Mariano Costa Rêgo e Pessoa de Moraes, “A penetração do teatro nas massas” por David Hulak e Samuel Hulak, “A cultura nacional passou por aqui?” por Roberto Mota e Emanuel Bernardo, “Alguns aspectos sócio-econômicos do artesanato no Nordeste” por Edézio Rangel, “A importância atual dos autos populares” por José Maria Tavares de Andrade, “Implicações políticas-sociais da Literatura Popular” por Renato Carneiro de Campos e “Ponha um tigre na música popular brasileira” por Jomard Muniz de Britto e José Mário Austregésilo. “O Grupo mostra: pequeno curso, dentro de grande terra”. Diário de Pernambuco (PE). 16/06/1968. Terceiro Caderno, p. 2.

468 O “Grupo Formar” ganhou evidência quando de sua participação na I Feira de Arte de Olinda realizada em dezembro de 1967. Naquela oportunidade, o grupo havia apresentado ao público um espetáculo de música e poesia denominado Experiência 2 que segundo Celso Marconi era uma tentativa de teatro suburbano. Sob a direção geral de José Mário Austregésilo, direção musical de Fred Lima e introdução de Jomard Muniz de Britto o espetáculo foi bem recebido pelo público e pela crítica. “Formar faz “Experiência-2” em Olinda”. Jornal do Commercio (PE). 17/12/1967. I Caderno, p. 26.

Letras (ABL), através da linguagem tropicalista era uma maneira de exemplificar aos tradicionalistas que a ‘arte nordestina’ não perderia suas ‘raízes’ ao incorporar em sua representação outros códigos de expressão e imagens. Segundo publicação de Celso Marconi, Britto havia seguido os seguintes pontos em sua palestra:

1. Antes da publicidade-Esso, da musiquinha que melhor embala o nosso conforto pequeno-burguês, há o “tigre na rua”, do Jeremias Sem-

Chorar, de Cassiano Ricardo. O tigre-metáfora da violência e da

violentação; do agressor, do agredido e da agressividade. – “A revolução não é um jantar. A Bomba A é um tigre de papel”, do filme A Chinesa, de Jean-Luc Godard.

2. Tendo como ponto de referência Maria Bethania, o primeiro tigre da moderna música popular brasileira, podemos tentar, não um retrospecto meramente cronológico, mas um corte transversal na trajetória da m.m.p.b.

3. O marco ou o “divisor de águas”, conforme a expressão do maestro Júlio Medaglia, representado pelo elepê de João Gilberto – Chega de

Saudade. O melhor do binômio Antônio Carlos Jobim – João Gilberto.

Entre a modernidade harmônico-instrumental e a interpretação crítica do romantismo.

4. O momento simbolizado por Edu Lobo, culminando nas músicas para a peça Arena Canta Zumbi. Necessidade de repensar a bossa nova. Onde se procura “racionalizar a intuição” e por coseguinte, descobrir a passagem do neo-romantismo para o “realismo crítico”. Esforço paralelo ao do compositor Sérgio Ricardo, ao musicar as letras de Glauber Rocha para Deus e o Diabo na Terra do Sol. O mais importante desse

momento: a síntese entre as raízes populares de nossa música e a

chamada musicalidade “erudita”. Propósito semelhante ao de Airton Lima Barbosa dentro do Quinteto Villa-Lobos. E por que não lembrar, também, Caetano Veloso de “Um Dia”?

5. O impacto de Maria Bethania: consciência mais aguda de nordestinidade. E ainda mais: a síntese entre o lírico e o épico, imagem poético-totalizante do Brasil, da cor e do som se sua gente, do tom e da dor de seu povo.

6. O caminho, proporcionado pelas aberturas anteriores, de continuidade- salto qualitativo da nordestinidade para a universalidade, configurado pelo Domingo no Parque de Gilberto Gil. Sem o marco, o momento e o impacto, esse caminho permaneceria “virtual” e não efetivamente real, como se cumpriu. Em consequência disso, se Domingo no Parque parte do neo-romantismo encenado pelo “triângulo amoroso”, vai ultrapassá- lo pelo tratamento épico do final, homólogo da última cena de A

Grande Cidade, de Carlos Diegues.

7. A radicalidade tropicalista. Impasses e vantagens das “comunicações de massa”. Crítica antropofágica da classe-média. De Oswald de Andrade a Caetano Veloso: sempre a loucura contra a burrice. – “Mas é preciso ter muito juízo para ser louco tropicalista...”.469

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De maneira transversal, JMB reconstruía a trajetória da Moderna Música Popular Brasileira demarcando o que segundo ele próprio constituiriam o marco, o momento, o impacto, o caminho e a radicalidade da travessia estético-ideológica dos artistas e intelectuais envolvidos no processo de interpretação da realidade nacional a partir da perspectiva modernista. Ainda conforme o pensamento do tropicalista pernambucano, seguindo a linha evolutiva da Bossa Nova, a partir do uso do tigre modernista Oswald de Andrade, o atual estágio da música popular (Tropicalismo) continuava representativo da nacionalidade brasileira, porém não mais comprometido com suas imagens de subdesenvolvimento, a estas, fazendo-se necessário justapor representações modernas para completar o quadro contraditório/ambivalente da identidade nacional.

O fato é que a metáfora utilizada por Marcus Vinícius de Andrade, Raul Córdula e Jomard Muniz de Britto para identificar a potencialidade do olhar modernista-antropofágico sobre o processo de construção da moderna cultura brasileira tinha pegado: o tigre da Esso havia se transformado em símbolo da vanguarda tropicalista nordestina: o tigre de papel (em alusão à sua constante necessidade de renovação).470 Essa condição existencial mutante (em certo sentido até autofágica) estava diretamente ligada ao ethos cultural do Tropicalismo que consistia em satirizar criticamente o subdesenvolvimento nacional em busca de novas imagens e formas de representação da realidade brasileira. Tal como havia feito Caetano Veloso naquele momento através da apropriação e resignificação da marcha carnavalesca de João de Barro e Alberto Ribeiro: “Yes, nós temos banana”.

Entretanto, se a palestra proferida por JMB na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, ilustrada pelo Grupo Formar, havia aberto o caminho para atuação do tigre tropicalista nos espaços culturais da cidade, a presença efetiva do Tropicalismo seria sentida pelo público recifense quando da participação da banda “Os Moderatos” na terceira eliminatória do I Festival da Música Popular Brasileira. Liderados por Edy Souza, mais tarde conhecido como Edy Star, e contando ainda com o talento precoce do jovem guitarrista Roberto, tempos depois conhecido como Robertinho do Recife, “Os Moderatos” haviam se inscrito naquele certame para interpretar a música tropicalista de Aristides Guimarães: “Debaixo das bananeiras e longe dos laranjais”.

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Imagem 17 – Edy Souza e Aristides Guimarães ensaiando com o grupo “Os Moderatos” para apresentação no I Festival da Música Popular Brasileira.