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Formação Acadêmica no Colégio da Bahia e

VOLUME V – TOMO XV

CAPÍTULO 2 – PADRE ANTÓNIO VIEIRA: O

2.1. Formação

2.1.2. Formação Acadêmica no Colégio da Bahia e

Em Portugal, especialmente, a instauração da Companhia de Jesus foi proveitosa, tanto para a própria ordem, quanto para os propósitos expansionistas de D. João III, que encontrou nos jesuítas homens dispostos ao trabalho de conversão. Tanto que em 1549, menos de uma década após os primeiros jesuítas terem chegados à capital lisboeta, a Companhia de Jesus fundava sua primeira “Província administrativa” em terras lusitanas, aliás, a “primeiríssima em todo o mundo”203.

Essas casas, com certeza, ajudaram na sedimentação e organização da ordem no reino, promovendo a partir dali sua diáspora para diversas regiões do império português. De fato, no mesmo ano de sua fundação, no ano de 1549, já os primeiros jesuítas chegam ao Brasil. Subsidiados pelo rei, este grupo204, liderado pelo Padre Manuel da Nóbrega, fundaria quatro anos mais tarde, em 1553, a primeira província jesuítica da América portuguesa. Porém, antes mesmo da fundação oficial desta instituição na Nova Lusitânia, os jesuítas já tinham dado início ao seu ímpeto missionário, fundando o Colégio da Bahia, logo após sua chegada às Terras de Santa Cruz.

202 A saber, Inácio de Loyola enviou Mestre Simão Rodrigues de Azevedor

Mestre Francisco de Jassu Y Xavier. FRANCO. O Mito dos Jesuítas, Op. Cit., 2006, p. 88.

203 Cf. Ibid., p. 89, nota de rodapé: “A primeiríssima Casa da Companhia de

Jesus no Mundo e a expansão missionária portuguesa”, in Brotéria, vol. 130, Fevereiro, 1990, p. 204-212.

204 Os primeiros jesuítas a chegarem no Brasil: Leonardo Nunes, João de

Azpilcueta Navarro, Vicente Rodrigues, Antonio Pires, o irmão Diogo Jácome e, claro, Padre Manuel da Nóbrega.

Os colégios inacianos da América, de entre os quais o Colégio da Bahia foi o primeiro, foram fundamentais para atingir os objetivos doutrinários da Companhia de Jesus, principalmente o projeto de catolização universal. Essas instituições de ensino atuavam não só no campo pedagógico, mas também eram essenciais como fonte de renda para os membros da ordem. Nesta sua vertente econômica, que será importantíssima para validar argumentações para ambos os lados da disputa colono-jesuítica, eram os colégios que sustentavam e mantinham materialmente a ordem inaciana. Este quadro se dava na medida em que “as condições da terra com sua riqueza natural” ajudavam a favorecer a consolidação destas instituições. Isto porque, “Nesta terra”, como Pe. Manoel da Nóbrega escreveu ao Pe. Simão Rodrigues, “custa muito pouco fazer-se um colégio e sustentar-se porque há terra é muito farta e os meninos da terra sustentam-se com muito pouco, e os moradores muito afeiçoados a isso, e as terras não custam dinheiro”205.

Outra condição que favoreceu a multiplicação dos colégios jesuíticos pela costa brasileira, foram as várias concessões não só feitas por D. João III, mas também por diversos monarcas que o sucederam. Esses privilégios eram fundamentados e justificados com base nas atuações catequizadoras dos inacianos. Já que,

O serviço prestimoso quanto à conversão do gentio e os relatórios e cartas enviadas a Portugal dando conta dos ataques dos inimigos hereges que ameaçavam as conquistas ultramarinas portuguesas, bem como o temor da propagação do ideário protestante, reforçava a necessidade da presença religiosa dos jesuítas e o seu favorecimento, visando confirmar a presença portuguesa no Novo Mundo206.

Neste sentido, o Colégio da Bahia, o qual António Vieira veio a freqüentar, era sem dúvida “uma das fundações mais prósperas”, ainda mais depois que passou a contar com as doações de D. Sebastião207.

No entanto, foram os propósitos religiosos por detrás dos colégios jesuíticos que deram destaque à Companhia de Jesus nos primeiros anos de sua atuação no Brasil. Ao se fazer uma análise de seus currículos escolares, tornam-se nítidas as suas metodologias doutrinárias. Aliás,

205 ASSUNÇÃO, P. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens

divinos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p. 153.

206 Ibid., p. 156.

como uma ordem organizada hierarquicamente, a Companhia de Jesus apresentou um plano pedagógico uno altamente desenvolvido e de aplicação consistente nos diversos colégios espalhados pelo globo durante as primeiras décadas da modernidade208. Essa homogeneidade, incorporada na Ratio Studiorum, facilita a compreensão do método pedagógico, pois estar diante da Ratio Studiorum de 1599, é estar diante de um currículo bastante consistente com aquele que, por exemplo, o jovem António Vieira teria sido submetido em 1615209, quando ingressou no Colégio da Bahia210. Se Vieira foi mestre e pregador da língua portuguesa, em muito isso se deve à educação e ao eruditismo que adquiriu no Colégio da Bahia. Os conteúdos formativos do Colégio, a sua organização, o ensino, a metodologia colocaram-no no mais alto nível pedagógico e cultural, com o perfil de exigência de uma Universidade.

O ofício que mais o celebrizou foi, sem dúvida, o de pregador. Ele que foi contestado em grande parte das atuações noutros setores, teve a opinião de todos rendida à excelência e genialidade dos seus dotes oratórios. O Colégio da Bahia funcionou como um centro de influência de poder e funcionou como a expressão máxima do projeto educativo da Companhia de Jesus, uma instituição de ensino pluridimensional. O ensino no Colégio teve ainda em conta o projeto

208 “Esta busca para encontrar um modus docendi comum já se encontra nas

Constituições da Companhia de Jesus. Aí se diz que convém chegar, tanto quanto possível, a uma regra universal, válida para todos e para todos os lugares, ainda que as circunstâncias possam necessitar e legitimar a sua adaptação”. LOPES, J. M. M. Ratio Studiorum: um modelo pedagógico por José Manuel Martins Lopes [S. J.]. Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, Universidade Católica Portuguesa, Edições Alcalá, 2008, p 37.

209 A data de ingresso no Colégio da Bahia não é precisa, mas de acordo com

seu biografo João Francisco Lisboa “Mal desembarcou na Bahia, começou este a estudar os primeiros rudimentos e humanidades, frequentando as escolas dos jesuítas, que floresciam então li, como em toda a parte, com grande aproveitamento da mocidade”, cf. LISBOA, J. F. A vida do Padre Antonio

Vieira. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1970, p. 5.

210 Pe. Luiz Fernando Klein, S.J. Prefácio. In: LOPES, J. M. M. Ratio

Studiorum, op. cit., 2008, p. 15: “A Ratio Studiorum adquiriu seu lugar insubstituível na história da pedagogia, com uma vigência que durou cerca de 150 anos. Ela tem presença assegurada nos currículos de formação na área da educação na maioria das instituições educativas de nível superior”.

educativo e pedagógico dos Jesuítas211. A pedagogia da Companhia de Jesus conheceu uma expansão a nível mundial, não só graças ao perfil missionário da Ordem, como graças a um ideário comum nos colégios que implementou, através de uma obra que orientará toda a metodologia de ensino dos Jesuítas: a Ratio Studiorum212.

Portanto, este documento, que se trata do regimento escolar e curriculum de estudos da Companhia de Jesus, oferece pistas importantes sobre as heranças culturais/acadêmicas que Vieira teria recebido dentro do colégio. Assim, quando o regimento escolar jesuítico determina que os estudantes devem estudar sobre tudo as teses tomistas213, existe grande possibilidade que Vieira teria tido um contato muito aprofundado das teorias medievais de São Tomás, principalmente, já que a memorização de textos eram requisitos expressos no curriculum de 1599214. Para além disso, o conteúdo da Ratio Studiorum transparece

211 SANTOS, F. O Percurso Formativo de Vieira no Colégio da Bahia: A

Formação no Brasil do Imperador de Língua Portuguesa. Atas/Anais 2010. 10.º

Encontro da Lusofonia – 5.º Encontro Açoriano. Lagoa: Câmara Municipal

da Lagoa, 2010, p. 134-135.

212 SANTOS, F.; FRANCO, J.E. A Globalização do Ensino da Companhia de

Jesus: Os Curricula dos Jesuítas e a grande revolução pedagógica na Época Moderna. Atas/Anais do 16.º Colóquio da Lusofonia – 7.º Encontro

Açoriano. Santa Maria-Açores: Câmara Municipal de Vila do Porto-Santa

Maria, 2011, p. 96.

213 Na VII Regras para o Professor de Teologia Escolástica, sub item 2 consta

“Na teologia escolástica, os Nossos seguirão inteiramente a doutrina de São Tomás, e considerá-lo-ão como seu próprio mestre. Porão todo o seu esforço em que os seus próprios discípulos se lhe afeiçõem o mais possível. Saibam, porém, que não têm que estar tão ligados a São Tomás que não lhes seje lícito afastar-se dele em coisa alguma, já que até aqueles que se afirmam mais tomistas divergem dele, por vezes. Nem seria sensato que os jesuítas ficassem mais vinculados a São Tomás do que os próprios tomistas”. LOPES, J. M. M. Ratio Studiorum, Op. Cit., 2008, p. 120.

214 Sobre a questão da memorização, na IV Regras Comuns a Todos os Professores das Faculdades Superiores, sub item 11 (Repetições na aula), 12

(Repetições em casa) e sub item 13 (Repetições gerais) ilustram bem as exigências de memorização de textos. No sub item 12 informa “Também em casa, todos os dias excepto aos sábados, dias de férias e dias de disputas, a fim de que, por este método, o intelecto seja mais exercitado e as dificuldades que ocorrerem fiquem mais elucidadas. Assim, o professor avisará um ou dois, com antecedência, para repetirem de cor a lição (não mais de um quarto de hora) Em seguida, um ou dois argumentarão com objecções, e outros tantos responderão. Depois, se sobrar tempo, exponham-se dúvidas. Para que efectivaemnte sobre

um método de ensino bastante compatível com a metodologia desenvolvida durante a Escolástica Medieval, corroborando com a tese de uma longa Idade Média.

Basta o trecho abaixo para demostrar seu conhecimento interdisciplinar do trivium e quadrivium. No “Sermão Quarto” da série do Rosário, Vieira se propõe a provar que Deus é o Autor das orações do “Pai Nosso” e da “Ave Maria”, ao fazer isto, ele enfatiza a importância do conceito de auctoritas, síntese altamente valorizada pela sociedade medieval.

Não basta que as cousas que se dizem sejam grandes, se quem as diz não é grande. Por isso os ditos que alegamos se chamam autoridades, porque o autor é o que lhes dá o crédito, e lhes concilia o respeito. As proposições filosóficas, para serem axiomas, hão-de- ser de Aristóteles: as médicas, para serem aforismos, hão-de ser de Hipócrates: as geométricas, para serem teoremas, hão-de ser de Euclides. Tanto depende o que se diz da autoridade de quem o diz. Dizer-se que a pintura é de Apeles, ou a estátua de Fídias, basta para que a estátua seja imortal, e a pintura não tenha preço. Mas esse valor e essa imoratalidade a quem se deve? Mais ao nome que ao pincel de Apeles; mais à fama, que à lima de Fídias. E o mesmo que sucede ao pincel, e à lima, é o que experimental igualmente a voz e a pena. Se o que diz é Demóstenes, tudo é eloqüência: se o que escreve é Tácito, tudo é política: se o que discorre é Seneca, tudo é sentença.215

Como era de se esperar, as altas exigências da Ratio Studiorum pesavam sobre os alunos, ainda mais ao se considerar as obrigações mnêmicas ditada pelo currículo escolar. Para o jovem Vieira, este requisito o sobregarregava de tal forma que “nos primeiros tempos, apesar da natural vivacidade que desde os mais tenros anos manifestara”, Vieira “não pudera fazer grandes progressos, pelo não

tempo, o professor fará respeitar rigorosamente as regras da argumentação e, quando nada houver de novo a acrescentar, porá fim ao argumento. LOPES, J. M. M. Ratio Studiorum, Op. Cit., p. 104.

215 VIEIRA, A. Obras Completas. Sermões, Op. Cit., 1959. Sermão Quarto: Da

ajudar a memória, rude e pesada, e como toldada de espessa nuvem”216. Sucedeu, pois, segundo o viés místico que acompanhou algumas das primeiras biografias sobre pregador, que as dificuldades de memorização das lições teria fornecido o combustível para a primeira experiência espiritual de Vieira:

Era o estudante grande devoto da virgem; e um dia que, ajoelhado ante a sua imagem, e cheio de pesar e abatimento que lhe causava aquela natural incapacidade, a implorava em fervorosa oração para que o ajudasse a vencer semelhante obstáculo, de repente sentiu como um estalo e dor aguda na cabeça, que lhe pareceu que ali acabaria a vida. Era a virgem que sem dúvida escutara e deferia à súplica ardente e generosa; e era o véu espesso que trazia em tão indigna escuridade aquele juvenil engenho, que num momento se rasgava e desfazia para sempre. Guiou dali Vieira para a escola com grande alvoroço, e sentiu-se tão outro do que fora até então, que logo animosamente pediu para argumentar com os mais sabedores e adiantados. E a todos venceu e desbancou, com entranhável assombro do mestre, que bem conheceu andava naquilo grande novidade.217 Sem dúvida que este relato místico, a parte de sua veridicidade, ou falta de, oferece pistas importante quanto a legitimação do intelecto e desenvoltura que catapultaria Vieira para os mais importantes púlpitos da Europa. Seguindo as tradições medievais, as legitimações e justificações, da baixa e alta modernidade, com freqüência remetiam à intervenções divina. É este o sentido que João Francisco Lisboa o atribui quando esclarece “[a]ssim o referem pelo menos as crônicas da ordem; e se a anedota não é verdadeira, é pelo menos calculada para dar uma cor romanesca e maravilhosa aos primeiros lampejos deste engenho novel, que mais tarde havia de deslumbrar o mundo pelo seu extraordinário fulgor”218.

Na verdade, este tipo de legitimação, ou relato, já fora visto antes no seio da própria Companhia de Jesus, afinal, consta na autobiografia de Santo Inácio de Loyola, o seguinte relato:

216 LISBOA. A vida do Padre António Vieira, Op. Cit., 1970, p. 5. 217 LISBOA. A vida do Padre António Vieira, Op. Cit., p. 5

218 Ibid., p. 6. A Crônica que o autor se refere teria sido aquela escrita por André

Por isso regressando a Barcelona, começou a estudar com muita diligência. Mas impedia-o muito uma coisa, e era quando começava a decorar, como é necessário nos princípios da gramática, vinham-lhe novas inteligências de coisas espirituais e novos gostos, e isto de tal maneira que não podia decorar, nem por muito que se esforçasse as podia afastar.E pensando muitas vezes sobre isto, dizia consigo: – Nem quando estou na oração e na missa, me vêm estas inteligências tão vivas – . E assim a pouco e pouco veio a conhecer que aquilo era tentação. E depois de feita oração, foi a Santa Maria del Mar, perto da casa do mestre, tendo-lhe pedido que o quisesse ouvir um pouco naquela igreja. E assim, sentados, declarou-lhe fielmente tudo o que lhe passava pela alma, e quão pouco proveito tinha tido até então, por aquela causa, mas que fazia ao mestre esta promessa: – Eu vos prometo nunca faltar às vossas aulas estes dois anos, enquanto em Barcelona encontrar pão e água com que possa manter-me –. Fez esta promessa com tal eficácia, que nunca mais teve aquelas tentações.219

As semelhanças entre os relatos são evidentes, e atestam que este tipo de narração não se restringiu ao período medieval. Com efeito, as autenticações feitas por supostos intermédios de intervenção divina continuaram presentes no pós-medievo, e não só nos relatos biográficos, como também em outros campos de legitimação220.

A despeito de sua origem ser providencialista ou não, a verdade é que Vieira, inegavelmente, dispôs de um intelecto privilegiado. Assim,

219LOIOLA. Autobiografia, Op. Cit., 2005, p. 80. Constará na autobiografia um

segundo relato da mesma natureza, desta vez quando Inácio estudava em Paris: “Ao principiar a ouvir as lições do curso, começaram a vir as mesmas tentações que lhe tinham vindo, quando em Barcelona estudava gramática. E cada vez que ouvia a lição não podia estar atento, por causa das muitas coisas espirituais que lhe ocorriam. E vendo que deste modo fazia pouco proveito nas letras, foi ter com o seu mestre e prometeu-lhe que não deixaria nunca de seguir todo o curso, enquanto pudesse encontrar pão e água para poder sustentar-se. E feita esta promessa, todas aquelas devoções que lhe vinham fora de tempo o deixaram, e prosseguiu os seus estudos tranquilamente”. Ibid., p. 107.

220 Principalmente no que se diz respeito à esta tese, será principal preocupação

as alegadas intervenções divina que legitimam atuações bélicas, as quais Vieira, aliás, recorreu com freqüência em seus discursos.

pode ele aos 18 anos iniciar sua carreira na magistratura, lecionando a disciplina de Retórica no Colégio de Olinda. Ora, para ter se tornado professor com tão pouca idade, Vieira teria mostrado, sem dúvidas, capacidades acima da média, já que, como informa a Ratio Studiorum na sessão I Regras para o Provincial, subitem 4, Como Nomear Professores, “[o] provincial deverá, prever com bastante antecedência, que professores poderá ter para cada faculdade. Observe aqueles que parecerem mais aptos para cada matéria, mais doutos, mais diligentes e assíduos, e mais capazes de garantir o progresso dos estudantes, tanto nas lições como nas restantes actividades literárias”221.

A partir de então a ascensão de Vieira foi meteórica, já que, no final de 1634, António Vieira é ordenado presbítero, realizando sua primeira missa no mesmo ano. Aos 30 anos, em 1638, Vieira mostra ao mundo sua destreza retórica, ao proferir seu célebre “Sermão Pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as da Holanda”, o seu primeiro sermão bélico. Com efeito, no tocante aos sermões de guerra e dos seus conceitos de violência, é impossível não correlacionar a relação entre Inácio de Loyola, fundador, e Vieira discípulo. Como filho religioso de Santo Inácio, Vieira teria herdado e tomado para si este dever de combatente, principalmente o combate contra os, por ele considerado, hereges.

“Herdeiros” foi o termo usado pelo próprio pregador ao exaltar Santo Inácio e o dever jesuítico de missionação. “E que fogo de línguas é este?”, pergunta Vieira retoricamente em um de seus sermões222, “é o zelo e fervor ardente que têm e sempre tiveram os herdeiros do espírito apostólico, de saber, estudar, e aprender as línguas estranhas, para com elas pregar o Evangelho, propagar a fé, e amplificar a Igreja”. Santo Inácio, segundo Vieira, foi benemérito desta herança, por isso enfatiza, “[e] senão vejamos quanto se acendeu este fogo das línguas naquele grande homem ou gigante de Fo*go, por isso chamado Inácio”223. E mais adiante no sermão, mostrando conhecimento dos regimentos da Companhia,

“Nossa vocação (diz S.to Inácio no princípio de seu Instituto) é para discorrer e fazer vida em qualquer

221 LOPES, J. M. M. Ratio Studiorum, Op. Cit., 2008, p. 58.

222 VIEIRA, A. Obras Completas. Sermões, Op. Cit., 1959. Exortação

Primeira: Em Véspera do Espírito Santo: Pregado na capela interior do Colégio. Vol. II, Tomo V, p. 377. (Sermão de número 66 na tabela).

parte do mundo, onde se espera maior serviço de Deus, e ajuda das almas. E para ajudar essas almas, que meios ou que instrumento nos deu e nos ensinou a providência do mesmo Santo e sapientíssimo patriarca? A sua Regra o diz. Para maior ajuda dos naturais da terra em que residem, todos aprendam a língua dela. Reparemos bem naquelas duas cláusulas universais: todos e em qualquer parte, ou partes do mundo: e que terra ou terras são essas onde residem? O Japão, a China, o Malavar, o Morgor, o México, o Peru, o Brasil, o Maranhão, e se se descobrir a terra icógnita, também essa. E quem são os que hão-de aprender as línguas? Todos, diz, sem exepcção de pessoa”.

Tratava-se para o orador de um desígnio divino, a Providência Divina teria elegido a Companhia de Jesus por intermédio de Inácio, não só para propagar a fé católica “em qualquer parte ou partes do mundo”, como também contra Lutero e Calvino. O Protestantismo que se espalhava rapidamente pela Europa e suas conquistas posavam empecilhos de ordem prática às aspirações de conversão universal. Daí, a queixa do Padre António Vieira em carta:

Vingavam os tobajaras a morte do seu pastor. Entram os holandeses em Pernambuco: reduzem a seu partido os índios, que com esta comunicação se corrompem mais nos seus costumes: “Com a comunicação e

exemplo e doutrina destes hereges, não pode crer a miséria a que chegaram os pobres tobajaras, porque dantes,ainda que não havia neles a verdadeira fé, tinham contudo o conhecimento e estima dela, a qual agora não só perderam mas em seu lugar foram bebendo com a heresia um grande desprezo e aborrecimento das verdades e ritos católicos, e