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Guerra como ato de caridade e amor

VOLUME V – TOMO XV

CAPÍTULO 3 CONCEITOS DE GUERRA

3.2. TIPOLOGIAS BÉLICAS

3.2.5. Guerra como ato de caridade e amor

Segundo os teólogos medievais, o espírito a preencher os corações dos guerreiros e os levarem ao combate deveria se inspirar no mesmo amor que Deus, em sua infinita bondade, demonstrava a humanidade. O mote então se transforma em “ame ao seu inimigo” com suas mortes e destruições sendo vistas como atos de caridade e amor. “a Igreja não perseguia, mas ao contrário, expressava amor quando ela castigava o pecado.”406 Basicamente, a guerra se torna um ato de caridade ao inimigo407. Observa-se que, em uma estranha reviravolta, a mesma caridade que inspirou São Francisco, agora inspirava o soldado a matar. Esta tipologia bélica da guerra como um ato de amor e caridade reforçava a “preocupação medieval de viver uma vita apostólica e expressar os ideais Cristãos ativamente através de trabalhos de caridade“

408.

Isto é, amor deveria guiar os corações dos guerreiros cristãos. Quando estes usavam força contra o inimigo era para os castigarem, para puni-los, não só com a finalidade de lhes causarem dano, mas também com o intuito de lhes mostrarem o caminho do bem, o caminho correto. Ao castigá-los usando contra eles a violência, os guerreiros dispunham-se a desviar os inimigos do caminho do mal, salvando-os de uma vida de pecados. Às vezes, para cumprir esse ato de caridade, fazia- se necessário matá-los, pois na morte o inimigo não mais pecará, não mais causará injúrias a Deus.

Quando a morte do inimigo não procedia, a caridade também poderia tomar a forma da conversão. Usando as cruzadas como exemplo, “enquanto Deus e os cruzados poderiam se beneficiar do trabalho dos Cristãos, também seus inimigos, pois uma vez que o objetivo das cruzadas tinha sido legitimamente retornado às mãos dos Cristãos, a conversão estava aberta como um caminho para eles” 409. Nesta lógica, a guerra se torna um encargo missionário impulsionado

406 RILEY-SMITH, J. “Crusading as an Act of Love”. In: MADDEN T. F.

(org.). The Crusades: The Essential Readings. Oxford: Blackwell Publishers, 2002, p. 45.

407 GARCÍA-FITZ, F. Op. Cit., 2003, p. 57. 408 RILEY-SMITH, J., Op. Cit., 2002, p. 50.

409 Cf. PHILILIPS, J. Ideas of Crusade and Holy War in De Expugnatione Lyxbonens (The Conquest of Lisbon). In: SWANSON, R.N. The Holy Land,

Holy Lands, and Christian History. Woodbridge: The Bodydell Press, 2000,

pelo amor e a caridade. Agindo com benevolência, os guerreiros poderiam oferecer a seus inimigos de fé a oportunidade de se arrependerem e de buscarem a “Verdade” através da conversão. Em um exemplo claro deste conceito de amor e caridade medieval para com o inimigo, temos a Crónica dos Sete Primeiros Reis410, que durante os relatos da monarquía de D. Afonso II traz um excerto sobre o tema.

O texto relata os eventos logo após a redenção das tropas mouras em 1217. Tratava-se do combate decisivo sobre o domínio do Castelo de Alcácer do Sal, onde os portugueses saíriam definitivamente vitoriosos. Neste conflito, os portugueses clamavam o direito sobre o Castelo, que desde o reinado de D. Sancho I (1185-1211) tinha sido perdido às forças Almoádas. Segundo o cronista, os portugueses tinham lutado fervorosamente para reconquistar o Castelo e, após um cerco exaustivo de dois meses, os “infiéis” finalmente se renderam.

Logo após a batalha, existe um detalhe curioso no qual o autor da crônica informa que “tres dias da tomada” do lugar, o “acayde” que tinha sido feito prisioneiro foi “bautisado e feyto Christão”. Esse pormenor, registrado em algumas poucas linhas de texto, é de extrema importância, pois indica diretamente a conversão pós-guerra, um ato claro de amor e caridade para com o inimigo. No entanto, alguns pontos devem ser ressaltados. Primeiro, não se pode afirmar ao certo se de fato existiu uma conversão do alcaide muçulmano. Porém, para fins desta tese a veracidade deste registro como fato histórico importa pouco. O mero fato do cronista ter incluído em sua crônica um relato sobre uma conversão pós-guerra é bastante simbólico. O conteúdo da narrativa se reduz ao que o cronista, conforme dos ditames da sociedade em que vivía, quis legar como história oficial do reino. Neste sentido, a escolha de se registrar uma ato de caridade e amor tão cristão quanto a oferta de conversão é revelador, pois demonstra que um dos beneficios que poderia advir de algo tão brutal como uma guerra seria a conversão. Segundo, presumindo que a conversão de fato tenha acontecido, não se pode desconsiderar a possibilidade de a conversão ser mais consequência da extrema pressão pela qual o alcaide, enquanto prisioneiro de guerra, deveria estar passando, sendo esta oferecida como uma possível alternativa à sua morte.

Ainda lembrando desses dois ressalves, essa passagem é bastante indicativa e rara. Dentre toda a produção da crônística medieval analisada, esta narrativa foi a única a apresentar um relato de uma

410 AUTOR desconhecido 4. Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal.

conversão pós-guerra de forma prática. Muitas das outras passagens que abordam o tema da conversão são relacionadas à justificativa e legitimação bélica pré-batalha. Trata-se, portanto, de um caso raro e único que, na sua singularidade, demonstra o quanto a conversão servia como pretexto e fator legitimador de guerras, mas que excepcionalmente era apresentado como fato concretizado. Por isso, este pequeno registro, que poderia passar despercebido, torna-se tão importante. O conceito da violência como um ato de caridade e amor transgrediu a medievalidade, e se tornaria um dos mais importantes e impactantes conceitos na história da modernidade. A esperança de que uma guerra, conduzida com o espírito da caridade e do amor, poderia levar Deus aos não crentes multiplicando o rebanho cristão.

Explica Vieira sobre os princípios que regem o amor bélico que, “Não chamar inimigos aos inimigos, está no império da vontade, e na obediência da língua; mas não ter os inimigos por inimigos parece que está fora da jurisdição do entendimento”. Este tipo de amor exprime o que há de mais sublime nas doutrinas cristã, “Serem inimigos, e conhecê-los por inimigos, e não os ter por inimigos? Sim: a tanto chega a fineza da filosofia cristã”, afirmou. Isto porque “Na virtude da caridade cristã, tomada em toda a largueza de sua perfeição”, existem “três graus” de amor ao próximo, e são eles, “amar os amigos, como a amigos; amar os nimigos, como inimigos; amar os inimigos, como a amigos”, este último exprime “o grau altíssimo de caridade”, facto já compreendido e confirmado pela auctoritas dos maiores teólogos da cristandade, “Santo Agostinho, S. João Crisóstomo, S. Gregório Papa, e comummente todos os Padres, entre os quais S. Bernardo”, todos estão em concórdia que “o amor dos inimigos é o mais alto, o mais sublime, o mais heróico, o mais divino acto da caridade”.411

Em um outro sermão, Vieira se justifica, “posto que a matéria do amor dos inimigos seja tão pregada”412. Para o pregador existia ainda uma outra consideração a ser avaliada sobre o amor ao inimigo. Se “as pessoas soberanas são superiores a toda a lei”, se ainda assim “são obrigados também os reis a amar seus inimigos?”. Sim, é a conclusão que chega Vieira, pois “por mais altas e soberanas que sejam (…) todas

411 VIEIRA, Obras Completas. Sermões, Op. Cit., 1959. Sermão nas Exéquias

do Sereníssimo Infante de Portugal: Dom Duarte de Dolorosa Memória. Vol. V, tomo XV, p. 257. Sermão de número 203 da tabela

412 VIEIRA, Obras Completas. Sermões, Op. Cit., 1959. Sermão da Primeira

Sexta-Feira da Quaresma: Pregado na Capela Real, no Ano de 1651. Vol. I, tomo II, p. 343. Sermão de número 22 da tabela.

igualmente, como os outros cristãos, sem nenhuma excepção nem privilégio, estão sujeitas ao preceito de Cristo, e obrigadas a amar seus inimigos, e a lhes fazer bem”.413

Contudo, Vieira é cuidadoso em fazer a distinção entre os inimigos próprios e os inimigos de Deus e, por exemplo bíblico, descreve como deverá ser a postura do rei perante cada um. “Porque David era soldado de Deus, e capitão-general de seus exércitos; e aqueles a quem chamvam seus inimigos, eram os inimigos de Deus”, esclarece Padre António, “observando tal diferença e distinção entre uns e outros, que aos inimigos seus amava e fazia bem, e só aos de Deus perseguia e fazia cruel guerra; tão insigne vingador das injúrias divinas, como perdoador das próprias”.414