• Nenhum resultado encontrado

VOLUME V – TOMO XV

CAPÍTULO 3 CONCEITOS DE GUERRA

3.2. TIPOLOGIAS BÉLICAS

3.2.2. Guerra ofensiva

Apesar das guerras classificadas como defensivas constituírem a maioria dos confrontos bélicos da Idade Média, as investidas de ofensa mostraram-se bastante presentes. A guerra ofensiva foi engajada com vários objetivos em disputa, o mais popular sendo o de conquista territorial. A conquista territorial significava mais do que terra e território, ela era, também, emblemática da aquisição de poder e prestigio. A posse de terras revelou-se uma maneira rápida e eficaz para líderes militares ganharem cada vez mais reconhecimento e respeito. Em uma sociedade onde ascensão social e política eram raras, a guerra ofensiva, que previa as conquistas territoriais, provou ser um método eficaz de ganhar titulações, nomeações e favores. Outro atrativo visível foi o saque. A perspectiva de ir à guerra e poder adquirir bens materiais demonstrou ser enérgica e um argumento bastante favorável para o recrutamento de guerreiros.

No entanto, a mais inovadora forma de motivar guerreiros a se engajarem em atos de violência foi a guerra ofensiva que visava a

324 Ibid, p. 29. 325 Ibid, p. 29

expansão religiosa. Com o intento de expandir a Cristandade, a Igreja fez amplo uso da guerra ofensiva. Essa idéia, tanto quanto revolucionária, quedava-se reforçada pela faceta missionária da fé cristã, cujo objetivo era o estabelecimento do reino de Deus sobre toda a terra326. Com o intento de converter toda a humanidade, a Igreja precisou ser mais taxativa e agressiva, precisou cada vez mais conquistar e “converter” mais povos. Conseqüentemente, a expansão militar e política do Império tronaram-se, inquestionavelmente, atreladas à dilatação da fé. A combinação destes dois particulares, do desenvolvimento político da Igreja e da expansão da “Verdadeira Fé” provou uma aliança poderosa.

O impacto dessa aliança pode ser constatado na homilia do Frei João de Xira, extraída da Crónica da Tomada de Ceuta327, do cronista Gomes Eanes de Zurara. O ano era 1415, e os portugueses, sob as hostes do monarca D. João I conquistaram a cidade africana de Ceuta. Dias após a tomada da cidade, durante uma cerimônia de ordenação cavaleiresca, o frade recitou uma prédica aos que estavam presentes. Durante o sermão, João Xira reconhece a natureza ofensiva da empreitada lusitana cujo o intento, para o religioso, fora sempre a expansão da Igreja Católica. João Xira segue prestigiando os guerreiros, afirmando que,

mujto mayor mereçimento he a uos, tirardella de poder dos jmfiees”, para ele esta é a principal glória “pera elRey nosso senhor, e pera todos uos outros seus criados e naturaaes”. Afinal, foi “per força de uossos trabalhos”, ele diz aos guerreiros, que foi edificada “huũa casa aa homrra e louuor de nosso Senhor Deos” em terras que anteriormente estavam “sogeita aos maaos e abominauees sacrifiçios328.

A Crônica da Tomada de Ceuta e a presença dos portugueses no norte da África marcou o ínicio da aplicação prática, por assim dizer, da filosofia expansionista portuguesa. E, de certa forma, vemos o Frei João Xira como um propagandista clerical dos ideais dessa ofensiva bélica cuja fundamentação primordialmente se baseava em fundamentos

326 MURPHY. Op. Cit., p. 274: “Even the Jews had been asked merely to

safeguard the Word, not spread it to all mankind. This seems to indicate that Christianity is innovative in its missionary aspect”.

327 ZURARA, G.E. Op. Cit., cap. LRvj, p. 253. 328 Ibid, p. 253.

religiosos. Neste sentido, para ele e para os portugueses, não bastava apenas recuperar o que uma vez pertencera legalmente aos cristãos “e nom tam soomente aquellas que forom da nossa ley”, ele enfatiza, “mas a todallas outras, em que os jmfiees fazem seus sacrifícios”329. Tratava- se de uma chamada ofensiva, cujo objetivo era o de invadir e conquistar terras alheias. O incentivo era o de tolerância zero frente as casas santas muçulmanas que os portugueses cristãos deveriam “quebramtar ou tornar em moesteiros e jgreias”, a lógica era a de que, através desses atos de violência e intolerância eles mostrariam “sinall de uerdadeyros seuidores de Christo”.

João Xira detalha que existem dois passos ou “duas guisas” para os guerreiros servirem “nosso Senhor”. O primeiro passo é o exercício militar propriamente dito, onde “lamçastes desta çidade os maaos jmfiees, e os tirastes da posse de seus templos, que ssom as suas mezquitas”, ou seja, o de conquistar a cidade. O segundo seria o de tornar “aquella meesma casa em templo uerdadeyro, que he a jgreia do nosso Senhor”330, isto é, para servir plenamente como um militante de Cristo, além de despojar os infiéis de suas terras, era preciso também erguer nos lugares santos da tradição islâmica novos espaços de veneração cristã. Nas concepções providencialistas do Cristianismo, tudo isto já estava previsto nos planos divinos onde “des o fumdamento desta çidade teue o nosso Senhor Deos hordenado de seer aqui posta a cabeça da jgreia de toda a terra dAffrica”.

Conforme o discurso do Frei João Xira apresentado por Eanes Zurara, observa-se na guerra ofensiva de Ceuta os fundamentos que iriam veicular toda a política expansionista portuguesa dos séculos seguintes. De acordo com os discursos legitimadores, a dilatação da fé se torna o foco, ou, ao menos o pretexto, das práticas de ofensiva militares. Esse tipo de oratória, baseada em ideais morais, principalmente de cunho religioso, causavam mais impacto no recrutamento de guerreiros do que guerras ofensivas que prometiam ganhos através dos saques, pilhagem, ou até mesmo da velha promessa de conquista de terras. O manto ético da expansão religiosa provou-se tão efetivo que rapidamente se tornou a estratégia discursiva principal nos discursos justificativos das guerras ofensivas.

Ainda, no século XVII, se observa o conceito de guerra ofensiva aliado aos objetivos religiosos da Igreja, onde novamente Portugal irá

329 Ibid, p. 253 330 Ibid, p. 253.

protagonizar um papel de destaque331. Trata-se da conversão universal que deu fundamento à todo regime escravista da Modernidade. Para António Vieira, missionário fervoroso, a propagação da Fé legitimava as ações bélicas de conquista, conforme consta em diversos de seus sermões. “Ser apóstolo nenhuma outra cousa é senão ensinar a fé e trazer almas a Cristo: e nesta Conquista ninguém há o que não possa, e ainda que o não deva fazer”, esclarece Vieira a propósito do apostolado em sermão dedicado ao Espírito Santo332. O jesuíta propõe uma ligação indissociável entre o apostolado do próprio Cristo, o missionado dos religiosos e as atuações bélicas daqueles que pegam em armas, que se dá através dos objetivos expansionistas da Igreja. Prova desta relação é a “missão do rio das Amazonas, que amanhã parte (e que Deus seja servido levar e trazer tão carregada de despojos do Céu, como esperamos, e com tanto remédio para a Terra, como se deseja)”333. Nesta empreitada, “que português vai de escolta, que não vá fazendo ofício de apóstolo?”, questiona. “Não só são apóstolos os missionários, senão também os soldados e capitães; porque todos vão buscar gentios, e trazê-los ao lume da fé, e ao grémio da Igreja”, conclui.334

A seguir, Vieira explana sobre a necessidade da guerra visando objetivos de conversão para a edificação de uma Igreja una e universal. “Pois também os soldados concorrem para a formação da Igreja? Sim; porque muitas vezes é necessário que os soldados com suas armas abram e franqueiem a porta, para que por essa porta aberta e franqueada se comunique o sangue da redenção, e a água do baptismo: Et continuo exivit sanguis, et aqua”335. Para além “quando a fé se prega

331 VIEIRA, A. Obras Completas. Sermões, Op. Cit., 1959. Sermão de Dia de

Reis: Pregado este Sermão no Colégio da Baía, na festa que fez o marquês de Montevalão em acção de graças pelas vitórias e felizes sucessos dos primeiros seis meses de seu governo, no ano de 1641. Vol. I, tomo II, p. 94. Sermão de número 13 na tabela. Vale a pena lembrar que, para o Padre Vieira, em termos de tática militar, “A verdadeira guerra defensiva, é a que ofende ao competidor dentro em suas terras; e nunca as cidades estão mais seguras ao perto, que quando o inimigo se divide, e se entretém ao longe” Isto é, guerras de preempção, poderiam também servir para legitimar defesa.

332 VIEIRA, A. Obras Completas. Sermões, Op. Cit., 1959. Sermão do Espírito

Santo: Pregado na cidade de São Luís do Maranhão, na igreja da Companhia de Jesus, em ocasião que partia ao rio das Amazonas uma grande missão dos mesmos religiosos. Vol. II, tomo V, p. 420. Sermão de número 67 da tabela.

333 Ibid, p. 420. 334 Ibid, p. 420. 335 Ibid, p. 420.

debaixo das armas, e à sombra delas, tão apóstolos são os que pregam, como os que defendem; porque uns e outros cooperam à salvação das almas”336.

Isto porque a dilatação da fé, ou o missionado consiste de duas fases: uma primeira, a conquista propriamente dita, que envolve maior violência e requer maior participação dos soldados337; e uma segunda, cujos maiores trabalhos ficam, majoritariamente, por conta dos religiosos. Prefiguração deste encargo é a história bíblica de Jeremias “Escolhem Deus e avisou a Jeremias para uma missão muito semelhante às nossas; porque era para derrubar e edificar: Ut destruas, et aedifices, assim como nós imos derrubar a gentilidade, e edificar a

336VIEIRA, A. Obras Completas. Sermões, Op. Cit., 1959. Sermão do Espírito

Santo: Pregado na cidade de São Luís do Maranhão, na igreja da Companhia de Jesus, em ocasião que partia ao rio das Amazonas uma grande missão dos mesmos religiosos. Vol. II, tomo V, p. 421. Sermão de número 67 da tabela.

337 Sugere-se ao leitor a conclusão última do tratado escrito como fonte

argumentativa sobre o Quanto é justo que se favoreça o Brasil, por ser de tanta utilidade ao reino de Portugal in ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do

Brasil: [1711]. (Introdução e notas de Andrée Mansuy Diniz Silva). São Paulo,

Edusp, 2007, p.11. Nas palavras de TAUNEY, A. E, estudioso e biógrafo desta edição, Cultura e Opulência trata-se da obra de “André João Antonil (João Antônio Andreoni, S.J.), nascido no dia 8 de fevereiro de 1649 em Luca, na Toscana (Itália), entrou para a Companhia de Jesus a 20 de maio de 1667. Chegou ao Brasil, a convite do Padre António Vieira, aos trinta e dois anos de idade, na qualidade de visitador de sua Ordem”. Antonil “escreveu Cultura e Opulência do Brasil no início do século XVIII, obra em que revela o espírito de arguto observador da vida brasileira colonial”.Um trecho de particular relevância ao reconhecimento do papel desempenhado pelo soldado é quando Antonil pede que se cumpra os pagamentos aos soldados, p. 205: “Se os

senhores de engenhos, e os lavradores do açucar e do tabaco são os que mais promovem um lucro tão estimável, parece que merecem mais que os outros preferir no favor e achar em todos os tribunais aquela pronta expedição que atalha as dilações dos requerimentos e o enfado e os gastos de prolongadas demandas. Se cresce tão copioso o número dos moradores, naturais de Portugal, que cada vez mais povoam as partes que antes eram desertas, ficando muito distantes das igrejas, é justo que estas se multipliquem, para que todos tenham mais perto o necessário remédio de suas almas. Pagando-se tão pontualmente a soldadesca que assite nas praças e nas fortalezas marítimas, não poderiam deixar de sentir os que para isso concorrem, se com serviços iguais não fossem adiantados nos postos”.

cristandade: e era para arrancar e plantar: Ut evellas, et plantes, assim como nós imos arrancar a superstição”338.

Em uma outra oportunidade, Vieira pregou sobre os diferentes níveis, ou até mesmo tipos de resistência encontrados em cada fase do processo de conversão339. “Eis aqui a diferença que há entre umas nações e outras na doutrina da fé” se propôs a explicar, “Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros de seus antepassados”, estas “resistem com as armas, duvidam com o entendimento, repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão grande trabalho até se renderem”. Mas geralmente “uma vez rendidos, uma vez que receberam a fé, ficam nela firmes e constantes como estátuas de mármore, não é necessário trabalhar mais com eles”, afirmou.340

Porém, conta Vieira, “há outras nações pelo contrário (e estas são as do Brasil) que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir”. Sugerindo o pregador limitada capacidade de resistência militar dos nativos das Américas frente aos povos da África, alguns dos quais já submetidos e convertidos ao Islamismo e, portanto aliados e assistidos pelo poderio bélico do Império Turco. Contudo, o Padre António Vieira irá se queixar que esta fraqueza militar não significa conversão sem resistência, já que os brasis podem ser comparados à “estátuas de murta, que em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram”.341