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3. PATRIMÔNIO CULTURAL EDIFICADO: CONCEITOS E VALORES

3.1. Formação do conceito de patrimônio cultural edificado

A noção de patrimônio cultural, tal como se conhece hoje, decorre da concepção de monumento, aquilo que é construído por grupos de indivíduos com o intuito de rememorar ou promover a lembrança de momentos históricos, rituais ou crenças, tendo predominantemente função memorial. A partir do século XVII, o monumento passou a ter também função estética e de enaltecimento da técnica. Com o advento da fotografia e da imprensa, que podiam registrar os valores da sociedade, o monumento perdeu, de certa forma, sua função memorial. É nesse momento que passa a se falar, então, em monumento histórico: ele não é concebido com a intenção de fazer rememorar, mas adquire esse papel no decorrer do tempo ou porque se trata de uma obra de arte (CHOAY, 2001).

A partir da década de 1820, a idéia de patrimônio cultural como conjunto de bens a ser preservado começou a delinear-se mais claramente. Houve o advento

de diversas teorias e práticas sobre conservação do monumento histórico, foram feitas descobertas nas ciências físicas e químicas, ocorreu o progresso da história da arte e da arqueologia – fatores que acabaram por conferir nova importância aos monumentos, que adquiriram novo status. Para Choay (2001, p. 127), “a década de 1820 marca a afirmação de uma mentalidade que rompe com a dos antiquários e com a política da Revolução Francesa”. Nesse momento, com a iniciativa dos revolucionários em destruir os bens da nobreza, houve um movimento dos intelectuais motivados pelo sentimento de perda, que, baseados na idéia de expressão nacional, difundiram a idéia dos bens como propriedades coletivas que não poderiam ser destruídas. Outros valores se estabeleceram e o patrimônio teve estatuto jurídico e tratamento técnico diferenciado. O monumento histórico passou a ser encarado como algo insubstituível, os danos sofridos e a perda do bem foram considerados irremediáveis. Abreu (2003) considera que esse foi o ponto de partida para a acepção contemporânea do conceito de patrimônio nacional.

Jokilehto (2002) expõe que, se inicialmente o termo patrimônio dizia respeito ao monumento ou monumento histórico, a partir do século XIX, a acepção do conceito foi ampliada. A partir das idéias de preservacionistas como John Ruskin, William Morris e Giovannoni, as áreas históricas passaram também a ser contempladas. Ruskin entendia que a arquitetura doméstica tinha, tanto quanto um edifício imponente, o poder de colocar os sujeitos em contato com as gerações precedentes, sendo, por isso, considerados patrimônio. Giovannoni deu atenção especial aos prédios residenciais, ao que chamou de “arquitetura menor”, parte essencial das áreas históricas, junto com os principais monumentos públicos. O entendimento de que não só o monumento deveria ser preservado, mas também seu entorno, contribuiu para o estabelecimento da noção de patrimônio urbano. Com a contribuição desses intelectuais, no fim da década de 1860, eram considerados como monumentos históricos a arquitetura não monumental e a malha urbana.

Dessa forma, o conceito de patrimônio foi se alargando, deixando de considerar apenas o monumento histórico isolado para incluir também seu entorno. Após a II Guerra Mundial, com a destruição de cidades históricas se começou a dar importância a essas áreas, principalmente na Inglaterra e na França, e a noção de centro histórico foi se estabelecendo. Inicialmente limitado ao centro real da cidade, passou a fazer referência a qualquer parte da cidade que tivesse significado para a história (JOKILEHTO, 2002).

Até o início do século XX, o conceito de patrimônio era estruturado predominantemente em função do valor histórico e artístico. A partir de 1940, capitaneada principalmente pela atuação da UNESCO, ascende a concepção que privilegia o respeito à diversidade cultural, seja em relação à multiplicidade de expressões culturais ou à dimensão imaterial (ABREU, 2003). Com o passar do tempo, ao termo patrimônio foram associados os valores artístico, histórico e de identidade nacional e a acepção de patrimônio cultural foi se aproximando daquela que se tem hoje.

Lemos (1981) classifica o patrimônio cultural em três tipos: o patrimônio natural, referente ao meio ambiente; o saber, o saber fazer e às técnicas; e os bens culturais, criados pelo conhecimento humano a partir do manejo dos recursos naturais – são os artefatos culturais, como a pintura, a música e a arquitetura.

No Brasil, somente nos anos 1970 o patrimônio urbano foi consagrado. A cidade passou a ser entendida também como um artefato cultural, produzido por uma dada sociedade (reúne o saber e o saber fazer), composto de outros tantos artefatos, estando em constante mudança. A Carta de Petrópolis (2004), datada de 1987, define como sítio histórico urbano o espaço em que se revela a produção cultural da cidade, em suas diversas expressões. Já o decreto-lei nº 25/1937 define o patrimônio histórico e artístico brasileiro, em seu artigo 1º, como sendo o:

conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (BRASIL, 2006, p. 99).

Mais recentemente, a influência da concepção antropológica contemporânea de cultura, ao enfatizar as relações sociais e simbólicas em detrimento dos objetos e das técnicas, contribuiu para que a definição de patrimônio cultural se tornasse cada vez mais ampla (GONÇALVES, 2003). Com isso, a dimensão imaterial também passou a ser contemplada pela noção de patrimônio cultural. A UNESCO define como patrimônio imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas [...] que os grupos, as comunidades e, em alguns caso, os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural” (BRASIL, 2006, p. 373). A Constituição Brasileira de 1988 estabelece que:

Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores

de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 2006, p. 20).

Se, inicialmente, o patrimônio estava ligado às idéias de monumentalidade, excepcionalidade, antiguidade e herança social de um passado comum, ele passou a ser associado a um conceito de cultura mais abrangente, a fim de abarcar a diversidade cultural e a dimensão imaterial. O patrimônio passou de testemunho do passado a portador das práticas sociais e a registro da memória (AURELIO; SCALABRINI, 2004).

Para Fonseca (2003), como conseqüências da ampliação do acervo do patrimônio cultural, tem-se, primeiramente, que a extensão do conceito evidencia a necessidade de pensar em novos instrumentos de preservação. Em segundo lugar, percebe-se que a dimensão imaterial extrapola os conceitos de folclore e cultura popular. Por fim, identificam-se duas mudanças relativas à política patrimonial cultural: a influência da globalização e a flexibilização dos critérios de atribuição de valor Esse alargamento do conceito significa, por um lado, a dessacralização do termo, que passou a ser mais democrático, ou, por outro viés, sua banalização.

Feitas essas considerações sobre a conceituação de patrimônio, é importante deixar claro que, neste trabalho, tratar-se-á do patrimônio cultural

edificado, entendido como um conjunto de monumentos, edifícios e espaços

urbanos representativos de uma dada sociedade, os quais é imprescindível proteger, a fim de promover a salvaguarda da memória e da identidade do grupo social.

É preciso lembrar que aquilo que será considerado como representativo do grupo social e, portanto, que comporá o acervo patrimonial cultural, é estabelecido de acordo com os valores associados aos bens em certo período de tempo. Esses valores não são inerentes ao bem, e sim construções sociais que permitem a qualificação de um bem como patrimonial. Esse processo de valoração não é atribuição somente dos técnicos, mas de todo grupo social.

Os valores associados ao patrimônio podem ser variantes ou imutáveis e estão inseridos num sistema de outros valores e conceitos, fomentados e elaborados a partir da cultura. Como coloca Lacerda (2002, p. 59), “valor e cultura

estão fortemente imbricados. Os valores que devem ser considerados são aqueles que permanecem mais invariantes para a comunidade”. Tais valores são produtos de processos culturais e o reconhecimento do pluralismo e da diversidade cultural torna o sistema de valores existente cada vez mais abrangente. Entende-se como esfera cultural aquela que:

trata das concepções e das representações que os indivíduos e os grupos fazem de sua inserção na sociedade e da sociedade como um todo. Ela está profundamente ligada às questões do espaço (lugar, país, nação) e do tempo (história, memória, passado, presente e futuro), dos símbolos (língua, leis, imagens, religiões, artes) e representações simbólicas (festas, códigos de ética, ritos) (ZANCHETI, 2002, p. 81-82).

Assim, para a compreensão do conceito de patrimônio cultural, se torna necessário considerar o processo de construção, apropriação e transmissão dos valores a partir da perspectiva simbólica e como uma prática cultural. É preciso, portanto, analisar o conceito de patrimônio edificado a partir dos valores a ele associados, desde a formulação do conceito até os contornos que o delineiam atualmente.