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3. PATRIMÔNIO CULTURAL EDIFICADO: CONCEITOS E VALORES

3.2. Valores associados ao patrimônio

3.2.2. Valores contemporâneos atribuídos ao patrimônio

Atualmente, os debates sobre patrimônio tratam da questão da sua autenticidade e sobre como o passado vem sendo apresentado, frente às mudanças no sistema econômico e cultural decorrentes da globalização, incorrendo na hiper- valorização do patrimônio cultural. Assim, além de embasar a construção e reafirmação da identidade e estabelecimento do sentimento de pertença, a definição do que seja patrimônio apresenta hoje outra faceta: a ele é atribuído um valor econômico, que por sua vez é associado a outros valores.

Com o alargamento da noção de patrimônio, a partir do final do século XX, estabeleceu-se a idéia de que todo artefato do passado pode ser um testemunho da

19 A Recomendação de Nairóbi define: “Entende-se por ‘ambiência’ dos conjuntos históricos ou tradicionais, o

quadro natural ou construído que influi na percepção estática ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais” (2004, p. 220).

história, mesmo que essa não tenha sido a motivação de sua produção. Jokilehto (2002) afirma que a sociedade contemporânea apreende o ambiente tomando como referência o conceito atual de historicidade, que, reconhecido como um valor, impôs a tendência de a tudo “historicizar”, com destaque para as histórias das minorias sociais e às políticas públicas que privilegiam a multiplicidade cultural. Além disso, a aceleração cultural dos dias correntes, como colocado por Huyssen (2004), trouxe uma sobrecarga informacional e perceptiva que provocou o sentimento de perda da identidade. O indivíduo voltou-se para a memória em busca de conforto, de lugares conhecidos, onde se desenrolavam relações mais duradouras, à procura de um passado que é idealizado e romantizado. No campo da arquitetura e do urbanismo, observou-se a expansão mundial das referências de preservação patrimonial do ocidente; o avanço da arqueologia e das ciências humanas, que possibilitaram a ampliação do recorte cronológico de preservação; o acréscimo dos bens a serem preservados, como a chamada arquitetura menor e edifícios dos séculos XIX e XX; e a democratização do saber e a difusão do turismo de massas (CHOAY, 2001).

Frente à ausência de referenciais de identidade, estabilidade e continuidade, houve a partir dos anos 1970-80 um crescente sentimento de valorização do passado, o que acabou produzindo o “culto do monumento histórico” (CHOAY, 2001). O resgate do passado, o retorno às raízes e à tradição, culminou com a “patrimonialização da cultura”, caracterizado pela nostalgia e revestindo os bens culturais de outro valor. Os edifícios autênticos e as recriações passaram a funcionar mais como uma satisfação da necessidade intelectual de arte do que como experiência artística: o uso do patrimônio foi marcado pelos valores afetivo e nostálgico (MENEGUELLO, 2000).

Um dos fatores a ser levado em conta no estabelecimento de valores patrimoniais contemporaneamente é que o acervo cultural fornece ao indivíduo a idéia de segurança e estabilidade, compensando a perda de referenciais e de identidade, segundo a “teoria da compensação” (HUYSSEN, 1995 apud MARQUES, 1995). As conseqüências foram, por um lado, a associação de uma aura simbólica a objetos e edifícios que, em outros contextos, seriam desprezados. Por outro viés, houve o surgimento de uma consciência patrimonial, marcada pela constituição de um acervo com quantidade significativa de referenciais a preservar para o futuro, baseado na valorização das identidades coletivas locais (ANICO, 2005).

Observa-se, atualmente, um consenso geral, seja das instituições governamentais ou dos grupos sociais, em relação à necessidade de preservação de elementos representativos do passado, como forma de manter a memória e identidade coletivas. A conservação e valorização do patrimônio é uma resposta às imposições da globalização, ao desconforto do presente e às dúvidas relativas ao futuro. Para isso, foram desenvolvidas estratégias de manutenção das identidades e de referências culturais, por meio de um discurso patrimonial destinado a responder aos desafios colocados pelo presente, como também para ser utilizado no futuro.

O patrimônio é visto como representante de um passado, que se manifesta no presente, que suscita os sentimentos de continuidade, coesão e pertencimento (ANICO, 2005). A nostalgia do passado acabou por funcionar como escapismo da realidade, em que o patrimônio assume mais a função de defender do que de estruturar valores. O valor de memória apresenta-se aqui em grande intensidade, estando embutido nele o desejo de trazer ao presente os valores culturais expressos no patrimônio que estão no passado. Os bens patrimoniais funcionam como portadores desses valores, uma vez que, em um tempo e espaço em que tudo é efêmero e fluido, o patrimônio cultural é um valor constante e universal.

O sentimento disseminado da perda definitiva de referências, da preocupação com o presente e com a incerteza sobre o futuro fez com que se conferisse “ao mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho, a dignidade virtual do memorável” (NORA, 1993, p. 14). Com isso, tem-se a disseminação, democratização ou generalização do conceito de patrimônio, o que provocou uma “síndrome patrimonial” (também cunhada de reinvenção do patrimônio, paixão patrimonial, indústria do patrimônio ou histeria patrimonial), que culminou com a criação de espaços destinados à rememoração do passado, incluindo monumentos, museus, arquivos e bibliotecas, além do advento de outras formas de transposição de bens patrimoniais para a esfera cultural.

Anico (2005) atribui a ascensão desses valores às mudanças promovidas pela pós-modernidade, principalmente referentes aos parâmetros de espaço e tempo que repercutem na cultura e, por conseguinte, no patrimônio: há uma ausência de temporalidade nos produtos, nos valores e nas relações sociais. Dessa maneira, a globalização econômica tem o seu rebatimento na mundialização da cultura, que é transformada em mercadoria e transposta para a escala global. Os

indivíduos, ao mesmo tempo em que experimentam sensação de distanciamento em relação às origens e referências culturais locais, procuram elementos que permitam a sua identificação e fixação no panorama global. Nesse caso, os bens patrimoniais podem funcionar como âncoras necessárias para os sujeitos e grupos sociais..

O patrimônio adquire então duas funções: proporcionam saber e prazer, disponíveis a todos, mas transformam-se também em produtos culturais, elaborados e divulgados para consumo. Aos bens patrimoniais é freqüentemente associado o conceito de valorização, termo bastante ambíguo: ao mesmo tempo em que se relaciona aos valores patrimoniais que devem ser resguardados, diz respeito também à mais-valia, relativos à beleza e potencial atrativo, adquirindo conotação econômica e configurando-se em valor de consumo (CHOAY, 2001).

No Brasil, Motta (2002) situa a transformação do patrimônio cultural em objeto para consumo visual, feita pelo poder público, a partir da década de 1990, em que a idéia de cidade-documento, característica da segunda fase da preservação, foi sendo enfraquecida pela adesão do governo à política neoliberal. Isso representou um retrocesso nas ações públicas de conservação do patrimônio, que passou a se assemelhar às do início da política de preservação brasileira, com exploração das referências visuais imediatas, em que se enfocava o caráter simbólico do patrimônio urbano – o valor de unidade nacional.

Com isso, a utilização do patrimônio passou a basear-se no valor simbólico e na sua valorização como produto de mercado. O centro histórico começou a ser visto no circuito do mercado global como produto e elemento de identificação ou diferenciação local para atrair público consumidor, sendo um dos elementos da concorrência entre as cidades. Uma das formas de explorar essa potencialidade financeira é o turismo cultural, razão pela qual a valorização do patrimônio nos dias de hoje envolve:

a encenação de práticas culturais ditas tradicionais ou produtos de fabrico artesanal, procurando, desse modo, recriar e oferecer tempos, lugares e experiências cada vez mais distantes dos quotidianos dos indivíduos. O patrimônio, para além de preservado, necessita também de ser observado e experimentado/experienciado no presente (ANICO, 2005, p. 05).

Essas práticas relacionadas ao patrimônio podem ser relacionadas ao advento do planejamento estratégico, já abordado, que colocou o patrimônio como um dos elementos de consumo cultural e modificou a própria definição de cultura, que passou a ser encarada como ferramenta para construção de uma imagem

favorável da cidade, que a torne competitiva para disputar o capital nacional e internacional. A cultura foi transposta de instrumento de crítica para um meio de reafirmar a cidade como mercadoria. Assim, os centros históricos acabaram servindo, muitas vezes, aos interesses econômicos do capital privado, sendo colocados como porções bastante valorizadas da cidade (CARVALHO, 2004).

Marques (1995) afirma que a transição dos bens culturais para o circuito das mercadorias foi a solução encontrada para promover a intervenção financeira nos centros históricos. Ao mesmo tempo em que promove o atendimento às necessidades de identidade e significado simbólico da população, é rentável para a iniciativa privada e soluciona o problema de falta de verbas do poder público. Sendo assim, essas intervenções, embora utilizando o argumento da preservação de áreas antigas da cidade, culminaram na apropriação cenográfica dos espaços, desconsiderando-os como produtos sociais (com valor de memória e história) e depositários de conhecimento histórico (valor cognitivo), transformando-os em mercadorias a serem consumidas (valor de troca ou econômico).

As recuperações atuais que vêm sendo feitas nos centros históricos não envolvem, na maioria das vezes, a retomada do sentido simbólico. Em muitas cidades, na tentativa de retomar valores identitários e de memória, foram reutilizadas estruturas sem significado, que resultou na construção de cenários e de espaços sem vida e sem conteúdo cultural, pois a tudo pôde ser atribuído valor patrimonial (ARANTES, 1998). O patrimônio cultural perdeu parte de seu significado e passou a ser mais um produto da indústria turística. Nesse contexto, os bens foram selecionados mais pelo potencial econômico do que pelo significado.

Choay (2001) faz severas críticas à forma como vem sendo conduzido o lazer cultural, pois os grandes grupos de visitantes são levados a “conhecer” o patrimônio, sem a eles ser permitida, contudo, uma apreensão dos seus valores históricos e artísticos. Não se aborda como os edifícios foram incorporados à história, nem qual sua referência na perspectiva temporal e, devido ao curto tempo proporcionado nas visitações, não é permitida sua apreensão estética. Se para os estudiosos do patrimônio os valores artísticos e históricos não se perderam, para o público em geral não se está contribuindo para a construção do conhecimento e à apreciação da arte. Além disso, a autora considera que essas práticas estão condenadas à autodestruição, frente ao imenso fluxo de visitantes que o patrimônio cultural edificado vem recebendo.

Do que foi exposto, percebe-se que dois valores consolidaram-se nos últimos quinze anos e tornaram-se mais evidentes em relação à noção contemporânea de patrimônio: o valor de compensação e o de consumo, derivados, respectivamente, dos valores de memória, afetivo e reverência; e do valor de uso e econômico. Detectar esses valores auxiliam não só a compreender a acepção contemporânea de patrimônio, como também qual a direção das políticas de preservação atuais. Esses dois fatores estão intimamente ligados, uma vez que é do maior ou menor valor de compensação que o bem patrimonial oferece que depende sua capacidade de atrair público e, por conseqüência, de gerar rentabilidade. Em contrapartida, o valor de consumo faz com que se valorize ou não os demais valores do patrimônio – cognitivo, artístico, histórico, memorial – segundo os interesses de um capital privado e de um poder público que, infelizmente, nem sempre vêem a preservação do patrimônio como o fim maior das suas ações.

Para Choay (2001), o papel assumido pelo patrimônio cultural nos dias atuais, decorrente dos valores a ele atribuídos, enseja outras discussões. A forma como o patrimônio é percebido contemporaneamente é conseqüência da necessidade do indivíduo em se situar na complexidade da vida contemporânea, portanto, o valor de compensação e econômico atribuído ao patrimônio cultural é transitório. No momento em que isso não seja mais necessário, em que o ser humano não possa mais se reconhecer nele, o patrimônio perderia seus valores memorial e afetivo, restando apenas o valor intelectual, de estudo da origem e de entretenimento. Em vez dessa necessidade de preservar tudo que pertence ao passado, é preciso conservar a capacidade humana de dar continuidade ao patrimônio e de reutilizá-lo, o que leva a repensar e reformular as práticas atuais relativas ao patrimônio.

Já Anico (2005) possui uma visão mais otimista, vislumbrando conseqüências positivas dessa síndrome patrimonial. Considera que o passado, tal como é interpretado no presente, passou a ser parte da cultura contemporânea. Assim, seus sentidos e significados atuais são construídos e negociados por diversos atores sociais, que associam diversos valores aos bens patrimoniais. A reinterpretação do patrimônio pode, então, contribuir para a estruturação de identidades locais, regionais ou nacionais, ou funcionar como instrumento pedagógico e ideológico. Dessa maneira, o espaço global apresenta-se, ao mesmo tempo, como arena em que ocorre um maior contato entre culturas e economias e

na qual se promove o ressurgimento das culturas locais, por meio da valorização das memórias e do patrimônio. O patrimônio possibilitaria, portanto, transformações sociais e culturais, discussões relacionadas ao conceito de cultura e às manifestações culturais, bem como abriria o debate sobre seu papel frente aos grupos sociais e poderes públicos, auxiliando a construção de uma história, memória e cultura mais inclusivas, plurais e democráticas.

A partir das posições expostas, conclui-se que, em função dos valores de que o patrimônio é contemporaneamente embutido, ele pode desempenhar dois papéis: ao mesmo tempo em que pode ser excludente e alienante, quando utilizado para o turismo de massa que não enfoca os valores históricos, artísticos e de memória dos bens, ele possibilita também a inclusão social, ao permitir o registro da memória e história de grupos distintos.

Sendo assim, questiona-se: em que medida esses valores conferidos ao patrimônio contemporaneamente contribuem ou prejudicam a sua preservação? Como resposta a esse surto patrimonial, de a tudo se querer conservar, virá um movimento inverso? E, após esse debate, quais os valores que permanecerão e que definirão, em outro contexto, o conceito de patrimônio? E a questão colocada por Walter Benjamin (1933, apud GONÇALVES, 2005, p. 11) no início do século XX ressoa mais atual do que nunca: "qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?".

Sendo assim, além de identificar o conceito associado ao patrimônio cultural edificado e quais os valores atribuídos ao patrimônio nos dias atuais, a presente pesquisa procura enfocar se o patrimônio cultural edificado liga-se à experiência dos habitantes, se ele é apropriado pela população, por meio da investigação da representação social dos bens patrimoniais que permeia o imaginário mossoroense. É sobre esses temas que se passa a tratar agora.