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Com relação à vinculação da formação de professores a uma ordem social, vimos no capítulo anterior que as escolas normais francesas no século XIX, isto é, em suas origens estavam articuladas com o propósito social, político mais amplo. Quando o Estado burguês francês assumiu o poder, desenvolveu ações no sentido de formar professores exclusivamente para o magistério público. Assim sendo, tanto durante a formação quanto a sua prática profissional, os candidatos às escolas normais estavam sob o controle do Estado. A lógica do Estado era a de formar professores revestidos do ideal de ser “missionário” com a finalidade de regenerar moralmente as massas incultas rumo ao desenvolvimento social e econômico do país. Nesse sentido, a formação docente foi matizada pelo ideário da ilustração e do progresso social.

A mesma dimensão ficou evidenciada na origem da Escola Normal no contexto brasileiro, ou seja, constatamos que uma de suas características marcantes refere-se a sua articulação ao projeto político de construção hegemônica do grupo conservador na busca de consolidação de uma nova ordem social dentro do embate político e ideológico característico do período monárquico. Nessa construção as instituições educacionais enquanto espaços favoráveis à transmissão da cultural letrada, proporcionariam, na visão daquele grupo, a difusão dos princípios ideológicos e dos valores morais, ao mesmo tempo ajudariam na conservação do status quo que sustentava o regime monárquico.

Cumpre relembrar que os movimentos político-ideológicos do partido liberal e as insatisfações populares analisadas por Fausto (2000), são indícios de que a difusão dos princípios e valores ideológicos do grupo conservador não ocorria pacificamente. Desse modo, é possível considerar aqueles movimentos como forma de resistência aos ditames e ao projeto de sociedade que vinha sendo imposto.

Ao lado desta possibilidade analítica, surge a seguinte questão: até que ponto as instituições educacionais utilizadas atenderam aquele propósito? Será que a instabilidade, que marcou a trajetória das escolas normais, fora um dos resultados de que a construção daquele projeto não acorria de forma linear e/ou satisfatória aos interesses das lideranças políticas locais?

No capítulo anterior recordamos que este grupo representado pelos “saquaremas” pretendia manter-se na direção e no controle da sociedade brasileira, uma vez ameaçado pelos

movimentos populares e ideológicos que vinham atravessando o em especifico, a segunda monarquia. Com enfraquecimento político do grupo liberal em virtude dos conflitos no interior do partido, o grupo conservador tomou a direção para firmar o seu projeto hegemônico sobre a sociedade brasileira. Como demonstra Villela,

Os governantes desse Brasil se deparavam com a tarefa de organizar a sociedade de modo a ganhar apoio mais sólido para os seus objetivos. Para isso, além de sanear conflitos internos à própria classe senhorial, disciplinar as populações brancas não proprietárias e conter as revoltas de escravos, era preciso coordenar uma ação de formação de um pensamento que permitisse a aceitação da autoridade da Coroa imperial e o seu reconhecimento como representante de uma “vontade geral”. (1999, 152, grifos da autora).

Foi nesse sentido, que os integrantes daquele grupo envidaram os esforços necessários para manter e ampliar sua supremacia política em todo o território brasileiro. Um dos seus empenhos foi a organização tanto da instrução primária quanto de uma Escola Normal a ser instalada inicialmente na corte65 imperial brasileira como um dos mecanismos

que possibilitaria os desdobramentos do projeto político acima mencionado.

O componente central dessa instituição estava na possibilidade de difusão dos princípios básicos impostos pela modernidade, tais como: Civilização, Regeneração e Ordem. Desse modo, neutralizariam tanto as pretensões políticas do movimento liberal, quanto as insatisfações populares que por sua vez, colocariam em risco as conquistas políticas da facção conservadora em todo o Império.

Sobre a viabilização do projeto político do grupo conservador através da implantação da Escola Normal, Villela (1992) argumenta que

65 A Escola Normal da corte foi criada somente no ano de 1874 com a finalidade de preparar professores de

ambos os sexos para o exercício do magistério primário. Era particular e ao mesmo tempo gratuita, pois contava com a autorização e subsídios do Governo Central. Apenas em 06 de Março de 1880 foi instalada a Escola Normal pública, oficializada através do Decreto Imperial N° 7684, e inaugurada com a presença de D. Pedro II. Com um currículo extenso e enciclopédico similar ao da escola secundária, no período de quatro anos, tinha como finalidade preparar professores primários de ambos de ambos os sexos para os 1° e 2° graus. Segundo Lopes e Martinez (2007, p.64-5), essa escola revelava um processo de formação ambíguo e precário “Se por um lado o curso pretendia aproximar-se do modelo francês, seja pela duração dos estudos, pelo aspecto da gratuidade, pelos critérios de seleção dos candidatos e mesmo pelo plano de estudos, por outro se distanciava. (...) por não adotar o regime de internato (...) e pelo investimento do Estado na formação inicial dos docentes (...)”.

Somente pela compreensão desse projeto político, mais amplo, de direção da sociedade é que foi possível entender que a criação da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro não representou, apenas, a transplantação de um modelo europeu mais, pelo seu potencial organizativo e civilizatório, ela se transformava numa das principais instituições destinadas a consolidar e expandir a supremacia daquele segmento da classe senhorial que se encontrava no poder (p. 28).

Para dialogar com os fragmentos acima, necessário se fez aqui um breve destaque sobre a experiência da Escola Normal na Parahyba do Norte nas últimas décadas do século XIX66. Segundo Kulesza (2003), o processo de institucionalização dessa escola, em quase toda

a sua trajetória, assumiu características explicitamente personalísticas e patrimonialistas, o que não difere das suas congêneres em outras realidades sociais brasileiras. A estrutura e funcionamento dessa instituição, estavam intrinsecamente atrelados aos interesses políticos e econômicos das oligarquias locais no sentido de mantê-las no controle sob a sociedade paraibana.

Não obstante, o referido autor enfatiza que

A Escola estava também sujeita às pressões sociais, principalmente de setores da oligarquia nem sempre devidamente representados no poder, seja porque fizessem parte da oposição, seja porque provinha de estratos sociais postos em evidência pelo processo de urbanização que ocorreu no período considerado. Sem dúvida, nestes estratos, as mulheres, inicialmente como alunas e depois como professoras, constituíram o setor que mais interagiu com a instituição, ainda que, para muitas, essa interação se desse no plano imaginário. (p. 139-140).

Em verdade, observamos tanto na produção historiográfica existente, quanto nos Relatórios e Mensagens de gestores públicos locais que a Escola Normal e o Externato Normal na Parahyba do Norte não passaram de instituições necessárias, para que o grupo social e a facção oligárquica que se encontravam na estrutura do poder local consolidassem e expandissem a um maior raio possível a sua supremacia política. Nesse sentido, a ideia da criação de escolas, seja de instrução primária ou de formação de professores, não passava de mecanismos adotados pelos donos do poder em tentar controlar e disciplinar o recente povo- nação brasileiro.

Com efeito, não muito diferente da conjuntura atual, os efervescentes e modernizantes discursos que foram travados por políticos que integravam as assembléias legislativas provinciais no período monárquico, compuseram apenas um mero proselitismo político no campo educacional com finalidades políticas. A propósito, apesar de momentos conjunturais diferentes, os fragmentos legais já destacados neste trabalho, ou seja, a Lei de 17 de outubro de 1827 e a Lei de criação da primeira Escola Normal brasileira expressam os interesses políticos à medida que defendiam as crenças no poder da educação escolar.

Sustentando esta premissa, importa ressaltar que no processo da segunda fundação da Escola Normal de São Paulo em 1875, o debate foi contornado pela ênfase na ideia de promoção do acesso à “civilização” a “cultura” pela população. Não é por demais lembrar que esse era um dos ideais de herança iluminista francesa que, na verdade se configurava como mecanismo para viabilizar um controle maior sobre a população, conformando-a ideologicamente à ordem social vigente. A difusão dessa crença conduz algumas questões que precisam ser resolvidas em um outro momento, dentre elas: Que civilidade? Qual cultura predominou no interior das instituições escolares? Que práticas civilizatórias se efetivaram naquela instituição no sentido de responder as necessidades dos grupos dirigentes?

Prosseguindo com a discussão, os trecos reprozidos abaixo, revelam o grande entusiasmo dos políticos pela instrução das classes populares, sob o ideário da civilidade e da ilustração no qual engendrou a escola enquanto templo de luzes para redenção moral da sociedade.

A Escola Normal criará bons mestres; e estes, elevando o nível das habilitações de seus discípulos, derramarão pela sociedade as primeiras riquezas do espírito, sólida, estimável e luminosa instrução elementar.

Será, pois, um centro da luz viva da ciência, irradiando-se por toda a província e penetrando por todas as camadas populares.

A infância, bem esclarecida, levará seu saber à família, aos companheiros futuros de profissões, de indústrias ou de serviços públicos; e esse precioso pecúlio da inteligência se estenderá afinal pela sociedade inteira.

Assim se transformam as gerações, afugentando-se as sombras da ignorância, clareiam-se os espíritos, e dominam as ciências.

Todos estes grandiosos benefícios dependem do professor distinto, de sua proficiência, da escola em que aprendeu.

Com ele, a juventude gravará em sua memória o vocabulário de maior precisão, elegância e pompa, abandonando a vulgaridade grosseira das expressões que, do lar doméstico, transportam às escolas.

[...]

Este grito doloroso, que simula o estertor da angústia, o soluço extremo da agonia social, é antes o brado espontâneo dessa força misteriosa, vulgarmente chamada instinto, que ampara o homem nos perigos, e tantas vozes nos surpreende na História decidindo da sorte dos povos e dos impérios, com uma lógica divina, segunda a expressão de Vico. Instrução, escolas, é o brado de salvação da sociedade moderna: alarme pavoroso, lançado a todas as opiniões, e senha controvertida de todos os partidos67.

Como podemos verificar, a discussão que estava sendo travada acerca da Escola Normal como espaço formativo de professores foi caracterizada por um forte cunho ideológico ancorado nos princípios iluministas, basicamente a difusão da importância da apropriação do conhecimento (enciclopedismo) que por sua vez concorreriam para a prática da civilidade entre os sujeitos sociais.

Conforme Monarcha (1999, p. 93), o movimento de constituição histórica da Escola Normal paulista tratou de “viabilizar uma formação profissional a partir de regras prescritas pelas autoridades legais, a lei deve regular as matérias de ensino, métodos didáticos e rituais institucionais”. Desse modo, garantia um tipo de civilidade e aculturação necessárias aos propósitos daquele momento histórico.

Conforme já enunciamos no capítulo anterior, a nova conjuntura republicana, ancorada nas ciências e na Religião da Humanidade – positivismo comtiano – vislumbrava modificar os padrões de ensino e cultura das instituições escolares, nas diversas modalidades e níveis dentro da nova ordem social. Nessa empreitada, mais uma vez a Escola Normal foi chamada para cumprir com seu papel conforme estabelecido na sua origem: preparar professores pedagogicamente para resolver os problemas educacionais da instrução primária, em específico o problema do analfabetismo que imperava. Entretanto, sua organização necessariamente deveria partir das novas orientações sócio-político-econômica, científica, cultural e dos valores morais ou seja, em conformidade com o tipo de Estado que ia se configurando numa perspectiva mais ampla.