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A questão da moralidade, da boa conduta dos sujeitos educativos certamente esteve estreitamente ligada com a característica anterior. Esse aspecto foi amplamente valorizado em todo o século XIX no processo de formação de professores, no sentido de conduzi-los e posteriormente o próprio alunado, com comportamentos e atitudes sociais e moralmente aceitos.

Conforme visto nas informações apresentadas por Gondra (2007, p. 72 e 78) acerca dos modelos educacionais de formação para as escolas primárias desenvolvidos no dezenove particularmente nas escolas normais francesas e nos institutos de formação na Áustria, sugerem que ambos tinham a formação moral como base fundamental no preparo dos seus professores. Tomando as referências apresentadas pelo autor citado, constatamos que para o ingresso nas escolas normais francesas, exigia-se um documento comprobatório, após a realização de inquérito, de boa conduta moral. Além dessa exigência, predominavam os saberes Ensino Moral e Religioso e Instrução Moral e Cívica no seu programa de ensino.

Quanto aos institutos austríacos, todo o seu movimento cotidiano estava sob vigilância constante no sentido de primar a qualidade na formação dos futuros professores tanto do ponto de vista da moral quanto da inteligência, da aquisição dos conhecimentos científicos necessários à prática profissional.

A mesma dimensão, ou seja, a ênfase dada ao aspecto da conduta moral, foi encontrada nos debates, na legislação, nas condições de acesso e na distribuição dos saberes nas escolas normais brasileiras. A ênfase dada a moralidade em detrimento da formação intelectual, científica e pedagógica do ingressante na Escola Normal, estava estreitamente vinculada, ou seja, se coadunava com a característica anterior. Em outras palavras, a questão da moral e da ordem/disciplina que atravessava os cursos de formação de professores, fazia parte do projeto civilizador e moralizante brasileiro, necessário à modernização/progresso das províncias brasileiras no século XIX.

Portanto, a dimensão em destaque se harmoniza amplamente com os discursos em defesa da instrução pública no Brasil e com outras realidades europeias, sobretudo com o ideário revolucionário francês que vinha impondo formas, condutas e padrões de comportamentos necessários para a construção de uma nova ordem social. É interessante ressaltar que na sociedade brasileira da época já se veiculava o ideário dos direitos do homem

e do cidadão preconizado pelo iluminismo francês. Em princípio, entendemos que ideais não se constituem uma imposição e sim uma construção humana em uma dada realidade social nas constantes transformações desta na qual o homem se relaciona, subjetiva-se e objetiva-se ao mesmo tempo.

Na perspectiva de realçar o caráter moralizante, enquanto dimensão dominante no processo de institucionalização da Escola Normal na realidade brasileira, importa destacar algumas disposições da Lei de criação da Escola Normal de Niterói. Os artigos abaixo, apontam os pré-requisitos e/ou exigências para o ingresso dos candidatos naquela instituição: dentre eles, a boa conduta moral.

Ar. 4º - Para ser admitido à matrícula na Escola Normal requer-se: ser cidadão brasileiro, maior de dezoito anos, com boa morigeração; e saber ler e escrever . Art. 6º - Os que pretenderem matricular-se dirigirão seus requerimentos ao presidente da Província, instruídos com certidão de idade e atestado de boa

conduta, passada pelo juiz de paz do seu domicílio: com despacho do mesmo

presidente serão matriculados pelo diretor, se, pelo exame a que deverá proceder, achar que possuam princípios suficientes de leitura e escrita. (apud VILLELA, 2000, p. 106, grifos nossos).

Villela (2000) no trato da criação da primeira escola normal brasileira, além das exigências acima destacadas, informa que o caráter moralizante tinha primazia ao lado da qualificação profissional propriamente dita. Nesse sentido, revela que os comportamentos e atitudes dos professores, sobretudo das escolas primárias, eram prescritos no regimento escolar, pois “a escola para o povo destinava-se mais a moralizar e disciplinar do que propriamente instruir” (p. 125).

Em um outro momento a referida autora reforça o pensamento anterior, ou seja, acredita na possibilidade de que nos primeiros anos da trajetória da Escola Normal de Niterói não existia de fato a intenção de formar o docente profissionalmente e sim, fornecer subsídios do ponto de vista da prática, no sentido de produzir e reproduzir regras e normas de condutas morais necessárias ao contexto de então. Essa constatação também foi evidenciada em outras pesquisas sobre o processo histórico das escolas normais brasileiras68. Portanto, para Villela

(1992, p. 38), a valorização das práticas de condutas e comportamentos morais em detrimento

68 Cf. MONARCHA (1999), KULESZA (2003), LOPES (2007), DIAS (2008), LOPES (2008) e WERLE

de uma formação pedagógica, intelectual dos professores se justificava pelo fato de que apenas “interessava que os novos professores assumissem rapidamente as escolas, crescendo em número acelerado, para cumprirem o seu papel que era muito mais de formar hábitos morais do que propriamente instruir”.

A política de ingresso acima ressaltada, referente a Escola Normal de Niterói se harmoniza com o que foi observado por Monarcha (1999, p. 44-45), na Lei Provincial de N°. 34 de 16 de Março de 1846, que oficializou a Escola Normal de São Paulo, à medida que estabeleceu as seguintes exigências quanto para o ingresso do candidato: “[...] estudantes do sexo masculino, com idade mínima de 16 anos, livres e de bons costumes (grifos nossos)”.

O mencionado autor ao realizar a reconstituição histórica da escola normal paulista no mesmo recorte temporal deste estudo, também coloca em evidência que o discurso em defesa da educação escolar em específico daquela instituição, enfatizava que o progresso social e material da província estava vinculado ao desenvolvimento da condição humana. Esse por sua vez era

condicionado à formação de um programa intelectual que visa a promover a abolição do mundo das diferenças: conhecer bem, refletir bem, raciocinar bem, entender bem, falar bem agir bem. [...] trata-se, entre outras coisas, de produzir regras de conduta social e, a partir de um acordo prévio, impô-las ao conjunto da sociedade. (1999, p. 75).

Fundamentando-se na mesma premissa, ou seja, na crença da civilidade e da moralidade pela instrução, ora difundida pela Escola Normal de São Paulo, Almeida (1878) enfatiza que “A índole do povo, a morigeração de seus hábitos, o respeito às leis e aos direitos que ela garante dependem de um plano educador que coloque o homem nas condições normais de sua responsabilidade moral” (apud MONARCHA, 1999, p. 82).

Lopes (2008) ao tratar do percurso histórico de institucionalização da Escola Normal no Piauí, revela também que o processo de formação dos professores normalistas tinha como uma de suas bases a dimensão moralizante. Para ratificar, vejamos a seguir a posição de um gestor provincial piauiense ao referir-se como deveriam ser formados aqueles profissionais na Escola Normal:

Na eschola normal de Theresina esses jovens ajunctarão o cabedal de conhecimentos especiaes de que precisa o professor de primeiras lettras e se tornarão versados na pedagogia da arte de ensinar

Fortificando-se na sublime doutrina da religião catholica e familiarisando-se com os preceitos da moral, adquirirão com o habito do estudo, que engrandece, e do trabalho, que alegra, a habito das virtudes pecualiares a seu emprego.

Quando soar a hora, com a intelligencia polida pela verdade, com o coração moldado pelo bem, irão elles mundo em fora, exercer o seu nobre apostalado. Em todo caso a sociedade ganhará com elles; porque, além de mestres_reqüen, terá cidadãos honrados e prestantes.

Tal é o ideal que formo da escola normal de Theresina.

É preciso, pois, antes de tudo, preparar candidatos para o professorado público de primeiras lettras, os quaes reúnam à vocação não equivoca , à mais ilibada moralidade, instrucção sufficiente e o habito da Pegagogia ou prática. (apud LOPES, 2008, p. 108-109).

Em consonância com as realidades sociais destacadas acima, os gestores públicos da Província da Parahyba do Norte em seus relatórios e mensagens, sempre que se referiam à prática e à formação dos professores e a instrução primária, tinha como referência a questão da moral e dos bons costumes como forma de alcançar a civilização e o progresso social. Na maioria das vezes, a moralidade se sobrepunha ao processo de instrução propriamente dito, ao conhecimento cultural e científico, que dariam suporte a formação dos sujeitos educativos no âmbito escolar. Alguns trechos abaixo exemplificam a questão ora elucidada.

Bons Professores, eis quazi tudo, homens morigerados, prudentes, instruídos nas especialidades que tem de ensinar; o mais he secundário. Não nego a importância das leis orgânicas e regulamentares [...]. (PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1854, p. 46).

A tarefa de ensinar e educar nossos filhos não deve ser confiada a quem não dê sobejas provas de saber e moralidade, para substituir-nos precisamente na idade mais critica do homem: n’aquella em que se deve marcar o seu futuro na sociedade, quer domestica, quer civil, a que se destina. (PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1859, p. 7).

A instrucção é um poderoso elemento de moralidade, ordem e prosperidade publico, como é uma condição indispensavel de perfeição, bem estar, e felicidade individual. É por tanto um beneficio de tão elevado alcance para a sociedade [...]. (PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1861, p. 3).

[...] educação que aperfeiçoe todas as intelligencias, seguindo a medida de seu desenvolvimento, que aceite a diversidade das aptidões, não sacrificando a unidade do fim: consiste na iniciação commum de todos os espiritos aos mesmos deveres e aos mesmos direitos, constituindo a ordem social sobre os fundamentos da ordem moral. (PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1867, p. 19).

[..] neste caso deverá regular-se por um certo numero de alumnos de frequência e de habilitados, alem das provas inconcussas de moralidade e cumprimento dos deveres, e assim collocado o professor na 3.ª entrância deverá ser inamovível. (PARAHYBA DO NORTE, Relatório, 1880, p. 9).

Mediante o quadro sucintamente exposto, é possível considerar que o caráter moralizante foi marca registrada que fundamentou o processo de institucionalização da formação docente a partir da escola normal. Na verdade, as pesquisas e os documentos forneceram fortes indícios de que a moralidade constituiu-se em componente central, norteador do processo de formação de professores tanto nas escolas normais brasileiras como nos modelos europeus mencionados no início desta seção. Cumpre observar que essa dimensão fundamentava toda educação escolarizada, independe do nível e/ou grau de ensino.

De certo, podemos concluir que a valorização do aspecto da moral era um dos elementos e/ou mecanismos que proporcionaria a manutenção da ordem e concorreria para a conformação social que o contexto de então exigia para a conservação das condições materiais que sustentavam o regime conservador e a estrutura de poder oligárquico local. Nesse sentido, nada mais útil e necessário um método, técnicas relativas ao processo de ensino, que proporcionassem o desenvolvimento da conduta moral.