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3.1 MUITO ALÉM DA GERAÇÃO COCA-COLA

3.1.1 Formação de um poeta

A Brasília de Renato Russo e dos jovens de sua geração estava tão distante cultural como geograficamente dos outros centros urbanos do Brasil. Por isso, não fosse a persistente curiosidade juvenil e uma educação privilegiada, não seria fácil adquirir e fazer cultura na nova capital brasileira. Renato Russo possuía as duas coisas: curiosidade e um contexto familiar que valorizava uma boa educação para os filhos. Foi mais precisamente sob a tutela do pai que Renato Russo teve os encontros mais importantes com a cultura de modo geral, sobretudo a literária, uma vez que desde muito cedo:

Renato Manfredini assumira a responsabilidade de garantir a Renato Manfredini Júnior um conhecimento que ia muito além do que era cobrado pelos professores. Enciclopédias, livros de referência, clássicos da literatura universal, tudo estava à mão do filho. Nos moldes da Inglaterra vitoriana, o pai agia como tutor.143

Acompanhando a trajetória da vida e da obra de Renato Russo pelo olhar de seu biógrafo, Carlos Marcelo, autor de Renato Russo: o filho da revolução, e tomando o seu texto como roteiro, percebemos que a infância e adolescência de Renato foram permeadas por duas expressões humanas importantes: literatura e música. Esta última sempre em ascensão. Dos mais variados estilos, a música se mostraria uma constante na vida do futuro compositor. “Música pop, música erudita, mais música estrangeira do que música brasileira. Música sempre.”144 O crescente interesse pela música e o acesso à língua inglesa levam Renato Russo a conhecer com profundidade as letras de compositores como Bob Dylan, intrigando-lhe as idiossincrasias que existiam entre o roqueiro americano e a sua própria subjetividade,

143 MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. Rio de Janeiro: Agir, 2009, p. 57. 144 Ibid., p. 59.

apesar de separadas por contextos e agenciamentos aparentemente tão díspares. Era intrigante e ao mesmo tempo um alívio perceber que outros pensavam e sentiam coisas que pareciam ser só suas. Assim:

Renato se perguntava como Robert Allen Zimmerman, mesmo nascido quase 20 anos antes em outro país, podia descrever exatamente o que ele sentia. Queria saber tudo sobre Dylan, morria de curiosidade em relação ao ídolo. Se conhecesse alguns fatos da vida do cantor, acreditava que poderia encontrar pistas daquela afinidade de sentimentos.145

Bob Dylan não fora o único. À medida que crescia o seu interesse pelo rock, entendendo este como uma música feita por e para os jovens, Renato Russo mais se identificava com letristas cuja música conseguisse expressar “desesperança, inadequação, solidão,”146

como o inglês Nick Drake e o norte-americano Gram Parsons.

Com igual dimensão, outros nomes surgiam à medida que as leituras e discos eram sorvidos com mais intensidade. Elton John, David Bowie, Beatles, The Who, Cream, Rolling Stones, Slade, Middle of the Road, New Seekers, Tom Jones e Cliff Richards eram nomes já familiares, acompanhados de perto por Renato graças à leitura de revistas importadas. Era por meio delas que ele podia se manter atualizado ao que surgia de novo na Europa e Estados Unidos. Importante também eram os lugares que frequentava e as escolas nas quais estudava, contribuindo muito para que pudesse continuar alimentando a sua curiosidade por tudo aquilo que estivesse ligado ao cenário da música internacional. Essas informações culturais em sua maioria surgiam porque Renato Russo:

Tinha acesso regularmente na Cultura Inglesa aos semanários New Musical Express e Melody Maker, especializados em música pop. Ao contrário do Marista, onde era mais um na sala de aula, considerava a Cultura como extensão da própria casa: chegava horas antes do início das aulas para conversar com os colegas, professores e funcionários.147 145 Ibid., p. 49. 146 Ibid., p. 50. 147 Ibid., p. 69.

A aptidão para absorver cultura e música deu um salto significativo depois da constatação de que sofria de epifisiólise, doença que afeta a cartilagem do fêmur e cujo longo tratamento exigia uma quase reclusão à cama. Com o fim das atividades físicas houve muito tempo para Renato Russo aprimorar suas imersões na literatura, na música e na escrita. A partir da constatação de que seria necessário criar uma nova rotina de vida, a família se estrutura a fim de propiciar um ambiente mais ameno para um adolescente preso às dimensões de seu quarto. Por isso a doença impôs uma série de alterações, tais como as que podemos visualizar sob a descrição de seu biógrafo:

A mobília do quarto passa por mudanças. A cama é empurrada para perto da parede. Agora, tudo está à mão: o aparelho de som três-em-um, o rádio para escutar a BBC, o violão novo, os cadernos de anotações, parte do acervo da biblioteca dos pais: clássicos de Dostoiévski, Shakespeare, Somerset Maugham, John Steinbeck, Eugene O´Neill. E mais: Obra poética, de um de seus autores prediletos, Fernando Pessoa.148

Este período de reclusão oportuniza a Renato Russo um longo tempo para cultivar a sua imaginação, para as leituras preferidas, para incorporar o violão como uma nova paixão e para esboçar o início do que viria a se tornar o seu maior projeto: ter a sua própria banda de rock. Este momento de enfermidade foi um divisor de águas que deu a ele a oportunidade para aprimorar o seu talento musical e enriquecer sua cultura para mais tarde produzir as letras que o consagrariam com a Legião Urbana. Carlos Marcelo, biógrafo de Renato Russo, assim descreve essa etapa na vida do compositor, o que nos permite entender o surgimento de uma espécie de poética149 que seria fundamental para a formação do escritor, poeta, letrista e músico que ele viria a ser. É isso o que conseguimos apreender a partir desta descrição:

148

Ibid., p. 80. 149

Usamos a palavra poética aqui entendendo-a como um conjunto de expressões de sentido

amplo, que têm marcas na poesia, na estética, na filosofia, na literatura e nas artes de modo

geral. In: TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria Literária. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974, p. 161.

Deitado, Renato dedilha febrilmente o violão. Preso à cama, as horas só passam mais depressa quando escuta música, lê, escreve. São dias de sofrimento, dias de compulsão. Dias de imaginação. Com caneta esferográfica azul e algumas folhas de papel, realiza o sonho de ter sua própria banda de rock. Assim, num quarto frio de um apartamento da capital do Brasil, nasce a 42nd Street Band. Em letras miúdas e pequenas correções anotadas a caneta vermelha, a trajetória da banda imaginária é narrada em inglês impecável e espantoso volume de informações.150