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3.1 MUITO ALÉM DA GERAÇÃO COCA-COLA

3.1.4 Legado

da Legião Urbana à cidade, ruiu a relação da banda com a crítica, a imprensa e alguns fãs. Rádios pararam de tocar as músicas do grupo com medo de represálias dos ouvintes que faziam ameaças pelo telefone caso elas fossem executadas. Também com a justiça o grupo teve problemas. Acusados de incentivar o tumulto que houve dentro do estádio, o Governo do Distrito Federal instaurou sindicância para averiguar o caso, pairando uma ameaça de processo contra a produção do show.

Seguindo sua agenda, é em meio ao estresse causado pelo show de Brasília que a banda prepara-se para o lançamento de seu quarto álbum, As Quatro Estações, que, pelas palavras de Renato Russo, em entrevistas, tinha uma relação direta com o que havia acontecido nos últimos meses. Para ele, o novo trabalho da Legião Urbana poderia ser entendido assim:

Gostaria que o disco fosse sobre ciclos, a perda da inocência. Seria basicamente isso: primavera, verão, chega o outono e caem todas as folhas. E, no inverno, fica a árvore toda daquele jeito. É como se a gente estivesse chegando no inverno. Mas, aí, vem vindo a primavera de novo. Quer dizer, você pode escolher ter uma nova primavera. A maior parte das pessoas que eu conheço fica no inverno, e eu acho ser este o maior problema delas. Desta vez, eu citei as fontes para que as pessoas não pensem que tiro isso de minha cabeça. Mas Camões, a Bíblia, Buda já dizem as coisas de uma maneira completa. A gente queria fazer um disco que fosse um disco amigo, um alento, que tentasse trazer paz de espírito.168

3.1.4 Legado

Nesse nosso desejo de construir uma narrativa sobre o contexto dos poetas-letristas, podemos afirmar que o final da década de oitenta

168

ASSAD, Simone (org.). Renato Russo de A a Z: as idéias do líder da Legião Urbana. Campo Grande: Letra Livre, 2000, p. 209.

encerrava um período para o rock brasileiro e consagrava a Legião Urbana como a banda mais bem sucedida comercialmente no país. Renato Russo, seu líder, ganhara o epíteto de poeta, embora não se considerasse como tal169, reconhecido pela sua capacidade ímpar de criar letras capazes de refletir aquilo que as pessoas sentiam e viam pelo mundo. A força da presença de Renato Russo para a geração de jovens que se formava dentro do cenário cultural do Brasil nos anos oitenta é mencionada pelo autor Guilherme Bryan, conferindo a ela uma relevância significativa quanto aos rumos que o rock nacional tomaria a partir daquele momento. Líder de uma das mais importantes bandas que surgiram naquele novo contexto cultural, Renato Russo é descrito como uma personalidade fundamental para a consolidação do rock como a voz musical de sua geração, podendo ser em síntese descrito como um artista “considerado pela crítica um intérprete sensível, um pensador polêmico e um grande poeta de sua geração.”170

Indiferente ao sucesso, cada vez mais distante, Renato Russo vai atravessando os anos noventa com diversificados projetos pessoais que tentam se harmonizar com os novos discos da Legião Urbana. Sua personalidade complexa torna-se cada vez mais reclusa. “Renato não quer mais saber de aparições públicas. Tanto em Brasília quanto no Rio, correm boatos de que ele está com Aids. Confirma o diagnóstico apenas para os amigos muito próximos. De madrugada, tem ataques de choro e pânico em conversas pelo telefone. Diz que tem dificuldades para respirar. Emagrece. Toma Prozac para tentar superar a depressão, agravada após a separação de Scott. Fica ainda mais tempo dentro do apartamento em Ipanema.”171

A morte de Renato Russo em 11 de outubro de 1996 pôs fim a uma carreira de sucesso e encerrou a trajetória da Legião Urbana. Com milhões de cópias vendidas, os discos da banda, em suas letras, contavam os dilemas de sua geração. Drogas, política, caos econômico e social foram o conteúdo de muitos sucessos do grupo, embora houvesse também espaço para a suavidade e a delicadeza, como na canção Monte Castelo, letra na qual Renato Russo pôde trabalhar todo o seu lirismo poético em uma estilização de linguagem singular. Esse processo de

169 Ibid., p. 156: “Eu me considero um letrista, e não um poeta. Tenho uma certa preocupação

com o que escrevo, é lógico. Sempre gostei da palavra, fui um bom aluno em Literatura e Gramática.”

170

BRYAN, Guilherme. Quem tem um sonho não dança – cultura jovem brasileira nos anos 80. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 289.

171 MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. Rio de Janeiro: Agir, 2009, p. 383.

criação foi certa vez por ele mesmo explicado172, acentuando o trabalho de junção que fez entre um soneto de Camões e a Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, construindo a partir destes uma intertextualidade que justificaria a conotação poética da letra, como podemos conferir lendo as seis primeiras estrofes de Monte Castelo, do álbum As Quatro Estações, de 1989:

Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria. É só o amor! É só o amor Que conhece o que é verdade. O amor é bom, não quer o mal, Não sente inveja ou se envaidece. O amor é o fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. Ainda que eu falasse A língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É um não contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor.173

172

ASSAD, Simone (org.). Renato Russo de A a Z: as idéias do líder da Legião Urbana. Campo Grande: Letra Livre, 2000, p. 171: “Monte Castelo foi feita a partir da junção de um

soneto de Camões _ „O amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente, é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer‟ _ com uma parte do Novo Testamento, uma das coisas mais belas que já foram escritas. Não gosto muito de São Paulo, porque acho que as coisas que ele falou são horrorosas. Mas, no caso da Primeira Epístola de São Paulo aos Corintos, há umas coisas bonitas.”

173

LEGIÃO URBANA. “Monte Castelo”. Renato Russo [letrista]. In: As Quatro Estações. Rio de Janeiro: EMI Music, p1989. 1 CD. Faixa 7.

Esta poética que encontramos nas letras da Legião Urbana, como exemplifica Monte Castelo, está fundamentada nas letras de Renato Russo que, por sua vez, segundo nos parece, retoma um olhar sobre o mundo que dificulta uma atitude de otimismo em relação ao mesmo. Fundindo as angústias de sua geração à palavra, as letras da banda aglutinam um lirismo que enquadra a sua música com a dupla face do pessimismo e da incerteza com a qual os jovens dos anos oitenta se movimentavam em seu contexto histórico-social.

É neste sentido que os temas explorados nas letras que integram aqui o corpus da tese parecem estar agenciados por uma concepção de mundo distante de qualquer projeto ideológico. O conformismo, a desilusão, a apatia, as rupturas e hipocrisias sociais configuram à obra de Renato Russo a presença de um constante devir pessimista que, por si, dá indícios da desilusão que tomou conta da geração dos anos oitenta, fazendo da poética encontrada nas letras do líder da Legião Urbana um trabalho de íntima idiossincrasia com o seu tempo. Seguem à frente as leituras que fizemos de Perfeição, Que País É Esse, A Canção do Senhor da Guerra e Baader-Meinhoff Blues sob esta percepção de entendimento.