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4 A POÉTICA DO PESSIMISMO EM HUMBERTO

4.1 NA TERRA DE GIGANTES

4.1.2 Pra ser sincero

Por esse caminho o processo de criação de Humberto Gessinger vai contemplar dois eixos principais: a nostalgia por um passado ainda recente e no qual as ideologias ainda faziam algum sentido e, em contrapartida, a vontade de entendimento e assimilação aos novos

197 GESSINGER, Humberto. Pra ser sincero: 123 variações sobre um mesmo tema. Caxias do Sul, RS: Belas-Letras, 2009, p. 21.

valores e códigos sociais que àquele tempo estavam se estruturando; produzindo um relativismo cultural inconcebível às gerações anteriores. É entre esses extremos que a poética de suas letras pode ser situada e, assim como a poética de Renato Russo e Cazuza, também esta movimenta-se para um pessimismo existencial e ideológico. Sobre a sua interação com as letras que escreve, ele mesmo faz a seguinte explanação:

Nem sempre é linear como as pessoas imaginam. É sempre autobiográfico, mas a biografia pode ser escrita num código indecifrável até pra quem escreve. Pintam músicas alegres quando a gente está triste. O contrário disso também pinta. Se escrevêssemos só para nos revelarmos, seria mais lógico um boletim semanal com gráficos. Coloridos livros de geografia sentimental. Muitas vezes a gente escreve em busca de balanço. Um balanço dos quadris ou um balanço de tudo que passou. Geralmente é um balanço de equilíbrio.198

Em ritmo ascendente, os discos seguintes lançados pelos Engenheiros do Hawaii, A Revolta dos Dândis, 1987, Ouça o que eu digo, não ouça ninguém, 1988, Alívio Imediato, 1989 e O Papa é Pop, 1990, mantiveram a banda com uma confortável marca de vendagens, shows e reconhecimento da crítica especializada, credenciando-a como uma das mais importantes do rock brasileiro dos anos oitenta.

Em letras como Infinita Highway, Muros e Grades, Toda Forma de Poder e Somos Quem Podemos Ser edifica-se esse viés pessimista com o qual pode-se ler a obra de Humberto Gessinger, pontilhando, em cada uma delas, sinais de que há uma confluência do pessimismo com o rock dos anos oitenta, seja pelo modo como as relações humanas se estabelecem nos versos das letras, seja pela própria relação que o indivíduo recria com a sua subjetividade.

As letras/poemas aqui selecionadas remontam ao contexto do Brasil dos anos oitenta, embora também façam alusão à trajetória de mudanças que transformavam o mundo no decurso daquela década. Humberto Gessinger recompõe com seus versos as peças políticas e sociais que moldaram a sua geração, matizando-as com a verve contestadora que caracteriza o rock como estilo de música apto a dar voz

198 Ibid., p. 111.

aos anseios e descaminhos comumente percebidos apenas pelos mais jovens.

Em síntese, suas letras tematizam o caos de uma civilização urbana, industrial, periférica e subdesenvolvida, como era a civilização brasileira dos anos oitenta e, ao mesmo tempo, abre portas para expressar um regionalismo remanescente, apesar de estar em acelerado processo de intersecção, ou fragmentação, em uma ação que Néstor García Canclini pontua como uma espécie de hibridismo cultural199, explorando os interstícios que se abriam naquele contexto de intensas mudanças sociais. É portanto dentro deste quadro que as letras de Humberto Gessinger dialogam com os dilemas do cotidiano estéril de seu tempo.

Com Humberto Gessinger o rock brasileiro dos anos oitenta entende o mundo sob um olhar que o enquadra como um elemento adverso e por isso incapaz de satisfazer qualquer vontade, validando com isso a principal máxima do pessimismo shopenhauriano. Dentro da lógica – talvez proposta – do rock, as letras dos Engenheiros do Hawaii e, sobretudo do seu líder, apresentaram uma postura que desde o início acabou estigmatizando a banda e, talvez, não dando-lhe o mesmo status de outras do eixo Rio – São Paulo, o que, segundo o próprio Humberto Gessinger, teria sido uma escolha consciente, seguindo assim a postura primeira do rock como um estilo e mesmo uma atitude não sujeita às exigências do mercado, já quê:

Esse negócio de rock‟n‟roll, música de massa, que mistura grana e jet-set, é muito perigoso. O Engenheiros nunca assumiu essa postura. Sempre tivemos nossas opiniões – mas, já de saída, também deixamos claro que estávamos

199

Refletindo sobre as constantes influências culturais a que as sociedades modernas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, estabelecem entre si, Néstor García Canclini acentua que o termo hibridismo seria aquele mais apto a nomear essas fusões culturais já que outros termos, tais como mestiçagem, sincretismo e crioulização têm outros referenciais, não exatamente ligados às fusões culturais que a modernidade propicia por meio das tecnologias de informação. Para o autor, esses velhos termos da bibliografia antropológica são insuficientes uma vez que “como designar as fusões entre culturas de bairro e midiáticas,

entre estilos de consumo de gerações diferentes, entre músicas locais e transnacionais, que ocorrem nas fronteiras e nas grandes cidades (não somente ali)? A palavra hibridação aparece mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também a de produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós- modernos.” CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da

modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p. XXIX.

carregando junto as nossas incoerências e dúvidas. Isso é fundamental na coisa da música: sempre fomos autoirônicos. E, quando a banda começou a acontecer, isso subiu um pouco mais de tom. Acredito que continuamos assim. E nunca tivemos um discurso heróico – apesar de nos acusarem um pouco disso.200

Conceituando a sua banda como uma das poucas a não adotar táticas de marketing que a tornassem mais assimilada pelo público, Humberto Gessinger parece ter consciência do caminho que escolheu seguir, levando adiante uma independência que marca geralmente o início de uma banda de rock, mas não toda a sua trajetória. Sobretudo quando já inserida dentro da indústria fonográfica. Quando considera perigoso o mercado e as relações que nascem a partir dele, o líder dos Engenheiros do Hawaii demarca uma linha que separa o seu trabalho de uma instrumentalização a que geralmente outros artistas, por variadas motivações, acabam por sucumbir.

Essa postura acentua a percepção de que Humberto Gessinger legitima os devires de desilusão e descrença que pontuam muitas de suas letras de música, demonstrando assim, ao que nos parece, o conhecimento dos agenciamentos complexos201 que delimitam qualquer postura em busca de uma difícil coerência entre vida e obra. Nas letras de sua autoria que integram o corpus deste trabalho acadêmico percebe- se essa não submissão à lógica imperativa daquilo que ele mesmo denuncia como formas de poder.

Como exemplos da densidade pessimista com a qual Humberto Gessinger tece a sua poética musical estão aqui as letras de: Toda Forma de Poder, Infinita Highway, Somos Quem Podemos Ser e Muros e Grades, todas elas com os referenciais, como acreditamos, da concepção negativa202 com a qual Schopenhauer caracterizava as

200 Depoimento de Humberto Gessinger. In: AVILA, Alisson. Gauleses Irredutíveis: causos e atitudes do rock gaúcho. Alisson Avila, Cristiano Bastos, Eduardo Müller. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2001, p. 160.

201

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 2 /Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 54. 202

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 241: “O pessimismo de Shopenhauer é

caracterizado exatamente por essa concepção negativa do indivíduo e das limitações de sua experiência. Há apenas uma maneira de superá-las, segundo ele: através da arte e da experiência estética, sobretudo da música, que Schopenhauer valorizava particularmente. Na música se ouve a vontade se expressando, não a vontade particular do indivíduo, mas a vontade, e desse modo podemos experimentar a eternidade.”

experiências do indivíduo, tentando por meio da música estabelecer uma possibilidade de sublimação ante às mazelas do mundo.