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Formação por competências: base do modelo de acumulação flexível

Em meados de 1980, acontece uma necessidade de ruptura do modelo de formação por qualificação, devido ao avanço da automatização microeletrônica nas indústrias. A partir desse momento, a demanda pelo aprender a fazer é substituída pelo aprender a aprender.

Mudam-se as formas de organização e gestão do trabalho, o que, por conseguinte, exige uma pedagogia de formação profissional que atenda à reestruturação produtiva. Torna-se necessário formar uma força de trabalho que responda à crescente

111 presença da tecnologia nos processos produtivos. Essa evolução tecnológica, apesar de simplificar as tarefas, acaba por exigir um maior e mais complexo conhecimento do trabalhador. O maquinário de base microeletrônica exige uma formação que vai além do saber fazer, exige o desenvolvimento de recursos superiores ao cognitivo como análise, síntese, comunicação, rapidez de respostas, avaliação, tomada de decisões, criatividade, criticidade, resistência a pressões, gerenciamento de processos, alcance de metas etc.

Podemos verificar a diferença na exigência da formação da força de trabalho a partir da observação de dois anúncios de vagas de emprego (FIG. 1 e 2):

FIGURA 1 – Anúncio de emprego - 1958

Fonte: http://www.scooteriapaulista.com.br/2014/03/vagas-abertas-1958.html Acesso: set. 2015

FIGURA 2 – Anúncio de emprego – 2015

Fonte: http://www.catho.com.br Acesso: set. 2015

Observa-se no primeiro anúncio (FIG. 1) a demanda de uma grande empresa por formação técnica para atividades bem específicas, além de prática em algo

112 característico do taylorismo/ fordismo: a produção em série. No segundo (FIG. 2), os requisitos para preenchimento da vaga são bem maiores. Além do ensino técnico, os candidatos precisam demonstrar uma formação generalista e polivalente. Não bastam os conhecimentos técnico-operacionais; é necessário apresentar, também, conhecimentos relacionados ao saber-ser, característica marcante da acumulação flexível.

Se na formação por qualificação bastava a memorização de procedimentos, uma vez que os processos produtivos eram rígidos, no modelo pedagógico adotado pela acumulação flexível, é imprescindível a utilização do conhecimento formal (científico) para resolver as situações complexas que possam aparecer no dia a dia da fábrica. A memorização perde lugar para a aplicação dos conhecimentos a partir da criação de estratégias multi ou interdisciplinares que permitam a resolução dos problemas. Essa formação é conhecida como formação pelo modelo de competências.

No modelo de qualificação, a força de trabalho era avaliada e gerida de acordo com sua destreza, habilidades gestuais e rapidez na execução de tarefas. No modelo por competências, ela passa a ser gerenciada a partir de seu entendimento acerca do processo de trabalho. “Passar da solicitação do corpo à solicitação do cérebro...” (ZARIFIAN, 2011).

O termo competência teve sua origem no meio empresarial na década de 1970. Zabala; Arnau (2010) definem esse termo como a capacidade que tem um indivíduo para realizar uma tarefa real de forma eficiente. Perrenoud (1999) avança mais na conceituação quando diz que competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações. Esse termo não demorou a cair no gosto dos educadores e tornar-se um modelo pedagógico estruturante de projetos educacionais desde os níveis iniciais do ensino até a educação superior, destacando-se na formação profissional.

A explicação para a forte relação do modelo de competências com a educação profissional reside no fato de as disciplinas convencionais não serem suficientes para a formação da força de trabalho, que, para atender às demandas da reestruturação produtiva, necessita de “competências relacionadas ao saber fazer e ao saber empreender, às quais vale acrescentar todas aquelas relacionadas ao trabalho colaborativo e em equipe” (ZABALA; ARNAU, 2010), fundamentais nesse tipo de formação. Sendo assim, o trabalhador formado a partir do modelo de competências deve ser capaz de mobilizar recursos que envolvam componentes conceituais (o saber propriamente dito, advindo de

113 teorias), procedimentais (o saber fazer relacionado às habilidades muito simples ou às estratégias muito complexas) e atitudinais (formação do ser, ligados a atitudes comportamentais e éticas) para resolver as mais diversas situações complexas que possam surgir não só no seu ambiente de trabalho, como também no decorrer da vida. Esses componentes devem se intercalar (FIG. 3), para que as competências sejam desenvolvidas.

FIGURA 3 – Os saberes no modelo de ensino por Competências

Fonte: Elaboração própria

A utilização do termo competência no âmbito educacional brasileiro deu-se a partir da promulgação da LDB 9394/96. Especificamente para a educação profissional, podemos citar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de Nível Tecnológico, que apontam a importância do ensino profissionalizante a partir do modelo por competências.

A preocupação da LDB era que o Brasil acompanhasse as mudanças no mundo do trabalho, por isso buscou sintonizar a escola com essas transformações. É nesse contexto que a educação passa a se preocupar com a formação de um profissional polivalente, flexível e capaz de desenvolver competências exigidas pelo mercado.

Para Araújo; Frigotto (2015), a Pedagogia das Competências busca desenvolver saberes, habilidades e atitudes que atendam a alguma exigência específica do mercado. Isso a caracteriza como uma pedagogia de conteúdo liberal.

No acirrado mercado, está na frente quem detém conhecimentos acerca da ciência e da tecnologia: isso aproxima o capital das instituições escolares. Para avançar em pesquisas, são necessários altos investimentos: isso aproxima as instituições escolares do capital, uma vez que os recursos disponibilizados pelo Estado são precários. Sendo

SABER SABER SER SABER FAZER COMPETÊNCIAS

114 assim, prevalecem os interesses do mercado na produção do conhecimento e na formação da força de trabalho.

Desde a promulgação da LDB 9394/96, toda a legislação educacional passou a ter como base a formação por competências. Especificamente no âmbito da educação profissional, a partir de 1997, com o Decreto 2208, e com as Diretrizes e Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Profissional de Nível Técnico, em 1999, essa modalidade de ensino foi invadida pela noção de competências, tendo sua organização pedagógica alterada para atender às novas exigências da legislação educacional nacional. De acordo com Ramos (2002), a mudança para uma formação profissional baseada em competências atende a dois propósitos: a) redefinir a relação trabalho/educação, desviando o foco dos empregos, das ocupações e das tarefas para o trabalhador, em suas implicações subjetivas com o trabalho; b) criar outras maneiras de formação da força de trabalho a partir de novos códigos profissionais.

Essa reforma na educação brasileira atendia a exigências de agências multilaterais internacionais como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Banco Mundial, OIT (Organização Internacional do Trabalho), CEPAL (Comissão de Estudos Econômicos para a América Latina) e o CINTERFOR (Centro Interamericano para o Desenvolvimento da Formação Profissional). Segundo Lopes (2008), países neoliberais, como o Brasil, tinham suas políticas educacionais submissas aos mecanismos de regulação do mercado. Ao invés de ter como base as reais necessidades da força de trabalho brasileira, o que se percebe é a adoção de uma vertente econômico-política para decidir os rumos da educação profissional.

O SENAC, em 1993, já percebendo as transformações ocorridas no mundo do trabalho e das discussões em torno da nova LDB, publica o documento “Bases para Revisão das Ações de Formação Profissional”. O objetivo era redirecionar a prática pedagógica da instituição para o desenvolvimento das competências exigidas do trabalhador.

Para isso, seria necessário substituir a pedagogia tecnicista por uma nova pedagogia “fundamentada numa concepção mais crítica das relações existentes entre educação, sociedade e trabalho” (SENAC, 1993)

O SENAC considerava necessário oferecer uma formação profissional que extrapolasse os conhecimentos específicos de uma determinada ocupação, o que justificava a adoção de uma Formação Polivalente: “A polivalência é, neste sentido, uma

115 proposta de educação que melhor se adequa à capacitação de recursos humanos num contexto de transformação da organização do trabalho. Além de atentar para as competências técnico-operacionais, a Formação Polivalente privilegia o desenvolvimento das competências cognitivas e sócio-comunicativas” (SENAC, 1993).

Apesar de o documento esclarecer que a proposta de polivalência, a ser adotada pela Instituição “não visa preparar os indivíduos para o desempenho de diversos ofícios. Pretende-se, sim, que os alunos dominem a técnica em nível intelectual, mediante o conhecimento das bases técnico-científicas que fundamentam a sua prática” (SENAC, 1993), é preciso ter atenção ao que o capital quer quando solicita uma formação polivalente.

O conceito de polivalência a partir das mudanças ocorridas no mundo do trabalho aponta para uma força de trabalho capaz de realizar atividades mutáveis e sujeitas a imprevistos. De acordo com Santos; França (2011), “a polivalência nada mais é que o atributo de um profissional possuidor de competências que lhe permitem superar os limites de uma ocupação ou campo de trabalho, para transitar em outros campos ou ocupações da mesma área profissional ou áreas afins. Na prática, o que se impõe é que os trabalhadores sejam multifuncionais e não a oferta de uma formação mais integral, como muitos querem acreditar”. (SANTOS; FRANÇA, 2011)

Com todas as dificuldades apresentadas pela educação básica, não é tarefa fácil para o ensino profissionalizante adotar uma formação que vá além da técnico- operacional. Se considerarmos a baixíssima qualidade da educação pública brasileira – professores mal remunerados, infraestrutura inadequada, alunos que leem e escrevem precariamente, além de terem um raciocínio lógico deficiente; e que são os alunos dessa educação pública, que na sua maioria procuram a educação profissional, não podemos acreditar que competências cognitivas e sócio-comunicativas28 serão plenamente desenvolvidas.

Com o passar dos anos, o discurso da pedagogia de competências foi-se consolidando nos documentos oficiais a partir da atualização de leis, decretos e diretrizes pelo Ministério da Educação e Cultura. Como o SENAC se orienta pela legislação educacional brasileira, o discurso presente em seus documentos também teve a noção de competência cada vez mais forte.

28 As competências cognitivas envolvem, além das habilidades técnicas a capacidade de abstração, de

análise, de síntese e de resolução de problemas; e as sócio-comunicativas estão ligadas a valores e atitudes, que interferem no relacionamento do indivíduo em seu ambiente de trabalho

116 Observemos alguns trechos que confirmam a presença das competências em documentos do SENAC: