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Formação: refletindo sobre o Currículo

2.1 Formação Profissional: aspectos de uma Constituição

2.1.2 Formação: refletindo sobre o Currículo

Esta subseção apresenta uma reflexão sobre o conceito de currículo, os aspectos legais que orientam a organização do currículo de formação inicial de professores para a Educação Básica no Brasil e a materialização do currículo na prática. Nossa investigação exigiu o estudo desse tema, com base na compreensão que se deve compor um currículo situado em um contexto pautado na experiência de profissionais que constituem uma prática social, “tanto porque o conhecimento e o currículo são pedagogicamente realizados no contexto social, quanto porque são originariamente concebidos e elaborados neste mesmo contexto” (GOODSON, 2003, p. 43).

Muitos conceitos do campo educacional passam por dicotomias entre linguagem discursiva e prática efetiva, como por exemplo, o conceito de currículo. Mesmo sendo seu uso relativamente recente entre nós, se considerarmos a significação que tem em outros contextos culturais e pedagógicos nos quais conta com maior tradição, ainda assim o conceito de currículo assume diferentes significados.

Gimeno Sacristán (1998) alerta sobre o risco que podemos correr ao manejar os conceitos sem o compromisso com a prática, cumprindo, assim, com o rito de mudar aparentemente a realidade com base na manifestação de boas intenções ocultando as misérias.

A relação entre a construção de um conceito e as situações práticas são tão interligadas que o próprio conceito de currículo foi adjetivado de vários modos ao ponto de deixarem de ser meros adjetivos para se constituírem categorias conceituais. Não por acaso os conceitos de currículo oculto, currículo prescritivo, currículo em ação, currículo avaliado, foram cunhados para expressar dada realidade do universo escolar.

Algumas das conceituações atribuídas ao currículo são: conjunto de disciplinas; experiências escolares; cruzamento de práticas diversas; artefato cultural; arena política; território contestado e elemento que dá forma às práticas de ensino mediante um elo entre a intenção e a ação pedagógica (MOREIRA; SILVA, 1999). Essas são algumas das conceituações atribuídas ao currículo pelo autor e que se interrelacionam com a função social da educação, que, por sua vez, também é múltipla, está voltada para contemplar uma formação humanística geral, bem como preparar para o mercado de trabalho, fazendo-se uma prática produtiva e política.

Diante da multiplicidade de conceituações relativas ao conceito de currículo, bem como suas funções sociais, buscamos em diferentes concepções de educação elementos que possam contribuir para nossa compreensão do porquê de tantas conceituações. Saviani (1991) aponta, nesse sentido, como principais concepções educacionais presentes na Educação brasileira: a Tradicional, a Nova, a Tecnicista e a Crítica, pautadas em paradigmas liberais ou progressistas que, por conseguinte, influenciaram também na definição de paradigmas curriculares.

Não é nosso intento explicitá-las nesta tese, mas apenas lembrar que boa parte dos elementos que corroboram para a conceituação do currículo escolar advém das concepções ora apontadas, na medida em que cada uma forjou representações a respeito da função social da educação escolar, da relação professor-aluno, dos objetivos, conteúdos e métodos de ensino e de processos de avaliação da aprendizagem, propiciando distintas conceituações do que pode vir a ser currículo.

Embora o conceito de currículo não possa ser visto como único, nosso olhar sobre o currículo neste estudo enveredará por compreendê-lo como

cruzamento de práticas diversas; assim, o currículo pode ser entendido como elemento responsável pela operação de dar forma às práticas de ensino mediante um elo entre a intenção e a ação pedagógica, entre teoria e prática.

Essa perspectiva de compreensão está pautada nas diversas contribuições dadas por alguns autores à evolução e ao desenvolvimento dos estudos do currículo como campo especializado de produção teórica e de investigação

acadêmica, com destaque para os seguintes estudiosos: Apple (2006), Gimeno Sacristán (1998, 1999, 2007), Moreira e Silva (1999). Com esteio nos ensinamentos desses autores, questionamos a concepção tecnocrática dominante no currículo, constituindo um novo paradigma analítico-conceitual para os estudos no campo do currículo.

No Brasil, no final dos anos 70 da década de XX, emergiu a Teoria Crítica do Currículo, com o início da reabertura política no País, quando passou a circular uma literatura pedagógica de conotação mais crítica e progressista. Até então, o campo do currículo era marcado por influências do tecnicismo, em especial por autores norte-americanos como Bobbit e Tyler, para os quais o currículo é visto basicamente como uma área técnica, vinculado a questões de planejamento, metodologia e processos avaliativos.

O deslocamento das preocupações curriculares de um enfoque técnico- metodológico para uma problematização em torno de questões políticas, econômicas, sociais e culturais contribuiu para ampliar de maneira significativa a análise no campo do currículo, o qual passou a ser considerado em sua dimensão dialética, em sua natureza sociológica, enraizada nas contribuições dos estudos marxistas e neomarxistas. Essas mudanças resultam (cf. SANTOS, 2002) do movimento de reconceptualização curricular ocorrido em países como Estados Unidos e Inglaterra na esteira do movimento denominado Nova Sociologia da Educação que eclodiu no início dos anos 70 do século XX.

No interior desse novo paradigma de análise curricular, ressaltamos o exame das relações entre currículo e cultura, currículo e poder, currículo e ideologia, currículo e controle social, de acordo com o ponto de vista de Apple (2006), para o qual a preocupação é compreender em benefício de quem o currículo trabalha e de que modo é possível fazê-lo trabalhar em prol dos grupos oprimidos. Para tanto, discutimos o que contribui para a produção social tanto no currículo formal, quanto no currículo em uso e no chamado currículo oculto.

Dentre as dimensões centrais da teorização crítica, destacamos a questão da ideologia, da cultura e do poder, razão pela qual pontuamos, para efeito de orientação teórica, as sugestões apresentadas por Beyer e Apple, quando asseveram:

[...] se queremos fazer do currículo um pensamento que trate seriamente a prática, devem-se abordar questões complexas de ordem: epistemológica (o que deve ser considerado como conhecimento), política (quem controla a seleção e distribuição do conhecimento), econômica (como se relaciona o conhecimento com a distribuição desigual de poder, bens e serviços na sociedade), ideológica (que conhecimento é o mais valorizado e a quem pertence, técnica (como tornar exeqüível o conhecimento para os/as alunos/as), estética (como ligar o conhecimento com a experiência e a biografia dos alunos/as), ética (que idéia de moral preside as relações entre professores/as e alunos/as), histórica (com que tradição contamos para abordar estas interrogações e que outros recursos necessitaremos). (BEYER; APPLE, 1988, apud GIMENO SACRISTÁN, 1998, p. 146) Notamos, portanto, ancorados na compreensão do currículo como prática, que, no tocante às questões epistemológicas – o que pode e o que não pode ser considerado conhecimento –, as propostas curriculares em geral têm se apropriado de certos procedimentos e concepções epistemológicas em detrimento de outras.

Nesses limites, o currículo é uma “seleção limitada de cultura” (KLIEBARD, 1989 apud GIMENO SACRISTÁN, 1998, p. 124) – seleção essa que, necessariamente, passa por uma relação de correspondência com o contexto histórico-social no qual se situam as culturas.

Conforme adverte Gimeno Sacristán (1998, p. 128), há ainda por considerar que “a cultura selecionada e organizada dentro do currículo não é a cultura em si mesma, mas uma versão escolarizada em particular”. Ou seja, a

composição de um currículo é feita mediante processos de

apropriação/desapropriação do conhecimento universal para fins de ensino – daí por que a existência das disciplinas escolares, compostas por recortes culturais selecionados com base nas escolhas dos agentes do currículo que compõem as instituições formativas.

Nesta perspectiva, é pertinente recorrer novamente às análises de Gimeno Sacristán (1998) a respeito de alguns elementos do currículo. Parafraseando o autor, é necessário entender o currículo como um instrumento destinado a melhor compreender a cultura que se dá a conhecer; um campo no qual interagem ideias e práticas, situado historicamente, e é selecionado com base nas forças dominantes, mas não apenas com a capacidade de reproduzir, mas também de

incidir nas transformações da sociedade; e, por fim, projeto cultural elaborado que norteia a formação profissional.

Os elementos ora destacados devem, assim, ser princípios balizadores de uma proposta curricular sua condição historicamente situada, que é fruto de processos culturais e de relações teórico-práticas, bem como resultado de intervenções constantes dos sujeitos que participam da elaboração e implementação do currículo.

Reiteramos que a produção teórica sobre currículo não tem hoje um único conceito de currículo. Autores nacionais e estrangeiros o apresentam como um instrumento cultural de amplo alcance no cenário educacional; no entanto, mais que apresentar um conceito universalmente aceito, nossa intenção é entendê-lo com base nas complexidades que o envolvem.

Postas essas observações sobre a multiplicidade e a complexidade relativas à construção do conceito de currículo e sua relação com a função social da educação, passamos a tratar do modo como é composto um currículo de formação de professores.

É preciso considerar, nesse sentido, que quase não existem problemas educativos que não tenham qualquer relação com o currículo e, por essa razão, nós o incluímos neste estudo, uma vez que todo ofício requer uma formação.

Há várias formas pelas quais uma formação pode ser efetivada, como por exemplo:

• pelo predomínio da empiria, que a viabiliza pela troca de experiências

realizadas por meio de processos intergeracionais;

• pela frequência assídua e prolongada às instituições de ensino

ancoradas em bases eruditas;

• nas igrejas, sindicatos e outras instituições de caráter ideológico.

No entanto, assim como não há ofício sem formação, não há formação sem currículo que a organize. Embora haja uma diversidade de formas para a viabilização de uma formação, nesse ponto do estudo enfatizamos a importância

e o significado da formação que se deu mediante o currículo que orientou a formação dos professores-discentes partícipes deste estudo.

Sendo o currículo um cruzamento de práticas diversas que condensam interrelações com outras temáticas educacionais e teorias pedagógicas, qual seria a “primeira prática” da composição do currículo de um curso para professores?

De acordo com Gimeno Sacristán (2000), essa primeira fase seria aquela por ele denominada currículo prescrito, que se caracteriza pela regulamentação e normatização de uma política curricular. O autor argumenta que:

A regulação curricular que se refere a conteúdos e códigos pedagógicos e a própria ordenação administrativa do currículo para um determinado nível escolar acabam tendo uma expressão concreta num formato de currículo. [...] expressa opções de política curricular, formas de entender orientação ou intervenção técnica no sistema educativo e de exercer o controle em cada caso. (GIMENO SACRISTÁN, 2000, p. 123)

Estando o ordenamento dado a formatação de um currículo em consonância com a política que o define, nesse sentido, regulamenta e orienta um grau de ensino. Vejamos, assim, qual teria sido a política curricular que orientou a organização do currículo do PEFPEB/LM.

A primeira observação que fazemos se refere ao fato de que o PEFPEB/LM compunha uma agenda de pauta do Governo do Estado do Acre que, em parceria com a Ufac, procurava formar professores em todas as áreas do núcleo comum da Educação Básica em atendimento às disposições legais e, com isso, suprir a carência de profissionais qualificados nessas áreas, em especial, professores para o ensino de Matemática, Física e Ciências Biológicas.

As bases legais para a orientação dessa organização curricular pautou-se,

assim, na legislação sobre formação de professores no Brasil: LDBEN no

9.394/96, DCNFP/2000 e, no caso específico da formação de Professores de Matemática, DCM/2001, que regulamentaram o currículo do curso em análise.

É oportuno reiterar que o Programa em comento foi proposto para formar profissionais da educação, mas que já exerciam a docência. A ordenação curricular tinha, desse modo, como finalidade qualificar esses profissionais, ou seja, “o formato desse currículo é a expressão formal das funções que pretende

desempenhar desde o ponto de vista da política curricular” (GIMENO SACRISTÁN, 2000, p. 123).

O modelo de organização curricular do PEFPEB/LM apresenta em sua estrutura as competências e habilidades requeridas ao exercício profissional com base na formação básica, comum e específica. A tentativa de inovações desse modelo não rompe com o modelo disciplinar e adota uma centralidade no caráter técnico e prescritivo na formação do conhecimento profissional necessário ao professor de Matemática.

Embora a política curricular apresente como foco a melhoria da qualidade do ensino, observamos que essa assume o papel também de regulador, o qual modela o sujeito em formação e, por consequência, elege os conhecimentos necessários à formação profissional. O que o faz assumir os princípios da lógica do mercado no tocante a qualificar o maior número de profissionais para atender às demandas com eficiência na atividade profissional.

Conforme assevera Gimeno Sacristán (1998), os currículos são a expressão do equilíbrio de interesses e forças que gravitam sobre o sistema educativo em um dado momento, enquanto por meio dele se realizam os fins da educação no ensino escolarizado. Por isso, entendemos que a redução dos problemas relevantes do ensino à problemática técnica de instrumentar o currículo desconsidera os conflitos e os interesses nele contidos.

Como campo de estudo singularizado, as análises sobre o currículo não surgem como problemas definidos para se resolver, com uma metodologia e algumas derivações práticas, como ocorre em outras áreas de conhecimento e pesquisa sobre a educação, mas como uma tarefa de gestão administrativa, algo que um administrador tem aresponsabilidade de organizar e governar. (GIMENO SACRISTÁN, 2000, p. 32)

Podemos dizer, portanto, que a validação de dado esboço curricular dependerá de um conjunto de elementos que extrapolam também os aspectos políticos e econômicos determinados pelos responsáveis em organizar e fazer cumprir um texto curricular que represente de forma significativa os melhores resultados e lhes permita compreender e intervir nas políticas educativas. Nesta perspectiva, entendemos que o texto curricular:

[...] é a expressão de uma intenção e do conteúdo; os êxitos das ações são a realidade, a qual não pode ser prevista, a não ser em termos bem amplos. Esse texto é uma espécie de partitura que representa uma música, mas não é música. Deve ser traduzida na prática por executantes e com instrumentos apropriados; a música depende disso. (GIMENO SACRISTÁN, 2007, p. 119)

Ao entender o currículo como uma “partitura que representa uma música, mas não é música” (GIMENO SACRISTÁN, 2007, p. 119), evidenciamos a existência de certo distanciamento entre os conteúdos das prescrições e os das discussões e codificações expressas no projeto curricular do curso, e, mais ainda, certo distanciamento dos conteúdos, formas e significados no momento de implementá-lo.

Os pontos arrolados resultaram de experiências adquiridas em nossa prática particular – prática essa que mobilizou indagações sobre o currículo prescrito e o currículo em ação, das quais participamos ao ingressarmos nesta viagem. Fomos, assim, integrantes de um processo que permitiu a procura do esclarecimento de algo que fazemos parte na experiência histórica e social na constituição da prática profissional. Observar o currículo proposto para a formação de professores da perspectiva do professor é, desse modo, fator primordial na relação de aproximação e reconhecimento do trabalho docente.