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Licenciatura de Matemática em Rio Branco: o estranhamento

1.2 A Interiorização da Licenciatura na Ufac: um projeto desafiador

1.2.2 Licenciatura de Matemática em Rio Branco: o estranhamento

Os aspectos descritos no item anterior estiveram presentes na execução do referido projeto, nos distintos municípios atendidos pelo Programa, incluindo Rio Branco, sede deste.

Salientamos que, durante a vigência desse Programa, os discentes7

continuavam desenvolvendo suas atividades docentes. Somente cerca de 20% destes estavam afastados da sala de aula, assumindo outras funções na escola. Essa informação é importante, pois esses professores-discentes foram “convidados”, pela SEE/AC, a assumir salas de aula no início do terceiro ano do curso, não tendo esses professores qualquer experiência com as etapas de ensino a que foram designados para trabalhar como docentes (Capítulo 4).

Por exemplo, houve situações em que os professores-discentes

trabalhavam, no início do curso, com a Educação Infantil ou séries iniciais (1a à 4a

série) e, a partir do 3o ano do curso de Licenciatura, tiveram de exercer suas

atividades docentes nas quatro últimas séries do Ensino Fundamental, ou seja, de

5a a 8a série. E outros, que exerciam, por exemplo, a função de inspetor de ensino

durante toda sua trajetória profissional e tiveram, nesse período, de assumir a sala de aula. Sendo assim, paralela à formação teórica que ora recebiam na

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7 Como os discentes do curso de Licenciatura em Matemática/Ufac eram professores, para não criar confusão entre o

professor do curso com o professor da escola, passamos, doravante, a chamar o docente do curso de “professor- formador” e o professor da escola e discente do curso de “professor-discente”.

Universidade, os professores-discentes iniciavam um novo momento na carreira profissional, com novos desafios e demandas no aprendizado da Matemática.

Nesta parte do contexto narrado, passamos a configurar como protagonistas, pois, por ocasião do início desse Programa, estávamos afastados para qualificação em nível de Mestrado na área de Educação Matemática. Quando retornamos, o Programa estava na metade do seu oferecimento. Portanto, essa narrativa analítica apresenta uma visão particular desta pesquisadora, pautada na nossa inserção no curso de diferentes formas, quer como professora, quer como representante do Colegiado do curso e ainda como Coordenadora do Núcleo de Estudo de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado.

Foi nesse cenário de atividades que fomos convidados para trabalhar no Programa, ministrando a disciplina Prática de Ensino e Estágio Supervisionado (PEES), especificamente com as turmas que funcionavam na cidade de Rio Branco.

Como o Programa havia sido composto prioritariamente por professores- discentes com experiência docente e que, por consequência, poderiam contribuir para o desenvolvimento dessas disciplinas, partimos do princípio que teríamos a abertura para problematizar e ressignificar a prática profissional, constituída com base nos conhecimentos, concepções, crenças e valores relativos à ação docente.

A atividade desenvolvida nas disciplinas forneceu-nos indicações sobre o funcionamento do curso e as dificuldades que os professores-discentes enfrentavam no processo de aprendizagem dos conteúdos das disciplinas.

Em primeiro lugar, as falas recorrentes durante as aulas apresentavam alguns indícios de que havia certa distância entre o projeto de curso proposto, as práticas formativas desenvolvidas por meio das ações implementadas e as necessidades formativas dos professores-discentes. É importante destacar que, no curso oferecido no município de Rio Branco, a maioria dos professores- formadores tinha uma larga experiência no Ensino Superior, pois pertenciam ao quadro funcional da Universidade.

Esses professores-formadores denotavam, no entanto, não considerar as experiências e/ou dificuldades enfrentadas na prática pedagógica dos professores-discentes. Em outras palavras, para os formadores não havia espaço para discussão e análise do trabalho que os professores-discentes estavam realizando em suas salas de aula. Havia, sim, uma reprodução de práticas formativas que vigoravam no curso de Matemática “regular”, ou seja, aulas expositivas com demonstrações de teoremas, sem ênfase na construção conceitual dos objetos matemáticos pelos professores-discentes. Uma hipótese para essa conduta dos formadores pode ser o desconhecimento ou a insegurança deles em discutir o contexto do trabalho dos professores-discentes no desenvolvimento de suas atividades em sala de aula.

Segundo Melo (2010), não se mudam práticas por meio de decreto como a proposição do MEC. Ou seja, não é porque o projeto pedagógico exigia a mudança de práticas, que os professores formadores não constituíram ao longo de seus processos formativos uma prática que pudesse contemplar a compreensão das dificuldades apresentadas pelos professores-discentes. O autor argumenta, ainda, que:

[...] é possível apontar que o aprofundamento na análise do que vimos nos enunciados e no currículo do professor formador é condição indispensável para a constituição de saberes que possibilitem uma compreensão das práticas postas em funcionamento por esse professor formador através de sua atuação dentro do campo de formação, instigando-se a exercer sobre si mesmos uma autocrítica de suas ações. (MELO, 2010, p. 271)

Observamos que a postura dos formadores denotava estar na contramão da discussão teórica sobre formação de professores, pois, de um lado, tínhamos a experiência docente dos discentes fundada na representação de seu trabalho; e, de outro, uma prática formativa desenvolvida no curso que parecia não dar voz para que os professores-discentes elaborassem e produzissem juntamente com os formadores o conhecimento e, por consequência, o internalizassem. Legitimam, nessa postura, uma ação pedagógica que nega a experiência e o sujeito histórico na sua relação com o mundo, e, assim, essa ação é reduzida à transmissão de informações sem reflexão. Ao mesmo tempo, faz-se necessário compreendermos como os professores-formadores se constituíram em suas

formações na definição de uma política pública direcionada à formação do professor-formador e que estejam efetivamente presentes em programas de pós- graduação.

É relevante salientar que a cultura do professor de Matemática, em particular do formador, é a de se centrar nos conteúdos disciplinares, dando pouca, ou nenhuma, importância às experiências formativas. A formação desse formador, portanto, foi realizada em um Instituto ou Departamento de Matemática, cujo principal objetivo era a apropriação da Matemática do ponto de vista do saber científico.

Ao definir um currículo de formação de professores, é importante ser considerado pelos elaboradores dessa política pública que conhecem a “realidade das instituições formativas”, que insiram em sua agenda compromisso de mudança de suas práticas conservadoras e disciplinares a fim de compreender como de fato os formadores de professores são formados, pois denota haver uma “tranquilidade” de mudança de prática formativa do outro. Outro fator é que as instituições de pesquisa, por exemplo, a Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), investem muito na prática científica da Matemática e pouco na prática pedagógica dessa área.

Entendemos que essa prática ocorria pela falta de compreensão dos sujeitos envolvidos em um processo de reformulação e implementação do currículo que o processo formativo se dá de forma contínua. Havia, portanto, a necessidade, nesse projeto de formação, de envolvimento, em particular, dos professores-formadores com o mundo do trabalho dos professores-discentes, de modo a permitirem um estudo sistemático das ações, relações e interações no desenvolvimento do trabalho docente. Havia, além disso, a falta de formação adequada para compreensão desse processo.

As disciplinas pedagógicas denotavam ser entendidas pelos professores- discentes como “não necessárias”, por acreditarem que suas experiências em sala de aula lhes davam condições de responder às questões pedagógicas. Para eles, essas questões se restringiam a ações práticas, muitas das quais burocráticas, tais como o registro de diário de classe, o preenchimento da lista de

presença, do planejamento anual, além de comportamentos de controle, como o de impor aos estudantes silêncios, realização das tarefas e bom comportamento. Essa compreensão foi incorporada, muitas vezes de forma alienada, pelos professores-discentes em suas próprias experiências cotidianas da prática escolar.

Salientamos, ainda, que houve um aligeiramento da formação escolar dos professores-discentes (Capítulo 4) e que a formação profissional deveria “recuperar a base científico-cultural que lhes foi negada pela escolarização básica. [...] que deveria ser subsidiada com verbas públicas” (FIORENTINI, 2008, p. 48). Ou seja, não se pode pensar em um curso de formação de professores para pessoas que já exercem a docência sem atender às atividades que são inerentes a esses profissionais, bem como sem reconhecer a experiência pessoal e profissional como conhecimentos legítimos de um processo histórico que foram, em sua maioria, construídos por meio da subjugação e da exclusão social. O que significa entender que esse processo formativo objeto do presente estudo mobilizou uma aprendizagem que lidasse com a relação dos campos do saber e desenvolvesse a reflexão sobre a complexidade do trabalho docente.

De acordo com Heller (apud Caldeira, 1995, p. 7), é incorporado “o indivíduo da vida cotidiana, um indivíduo alienado, e apropriar-se dos usos e costumes de determinado mundo “dado” significa apropriar-se da alienação”.

Posto isso, ressaltamos que a aprendizagem proporcionada pela prática e que vai se consolidando como um corpo de conhecimento – com base no qual os professores-discentes descrevem e justificam a sua ação – não deve ser entendida como destituída de sentido e nem se esgotar no praticismo, mas configurar-se como um conjunto de referências cognitivas e de experiências passadas que os professores-discentes reelaboram para orientar sua ação.

As disciplinas pedagógicas ofertadas pareciam assumir um apêndice na formação. Isso pode ter contribuído para manter com a visão “conteudista” que pairava no curso e, por consequência, a não superação da dicotomia no currículo, ainda presente nos cursos de Licenciatura de Matemática da Ufac. Ou seja, uma organização disciplinar e/ou prática formativa que reflete essa dicotomia: disciplinas de Matemática, de um lado, disciplinas pedagógicas, de outro; e um

número reduzido de disciplinas na área de Educação Matemática, as quais, além de constituírem um campo fundamental de conhecimento profissional, talvez pudessem auxiliar no rompimento dessa dicotomia.

De acordo com Castro, essa visão:

[...] não se reduz apenas à tensão bipolar entre conteúdo e forma ou entre teoria e prática, ou ainda entre conhecimento específico e pedagógico. Na verdade, teoria e prática constituem uma unidade dialética e complexa, permeada por múltiplas relações e determinações, em que uma determina e ressignifica permanentemente a outra. (CASTRO, 2002, p. 19)

É nesse processo que entendemos haver uma disposição teórica e metodológica para o desenvolvimento de um currículo que atenda às necessidades específicas de uma formação profissional. Na interlocução como professora no curso, esta pesquisadora pôde perceber que o currículo proposto e executado denotava prescrever o modelo de formação que admite formar técnicos, sem autonomia intelectual e profissional, que apenas aplicam conhecimento. Por consequência, o ato de ensinar pode ser entendido como transmissão de um conjunto de conhecimentos, que assume um caráter prescritivo e contribui para a dicotomia entre teoria e prática.

Temos, de um lado, um currículo que denotava privilegiar uma formação profissional pautada em saberes prescritivos e valores acadêmicos ou técnico- científicos, concebidos e desenvolvidos em situações idealizadas, sem nenhuma relação com a atividade prática desse grupo de professores-discentes. Notamos, de outro lado, a preocupação dos professores-discentes em obter sucesso no curso, do ponto de vista dos conteúdos matemáticos tratados, os quais contavam com apoio dos próprios pares que tinham experiência no ensino de Matemática,

nos anos finais (5a à 8a) do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Para

“sobrevivência” desses professores-discentes no curso, havia uma interação do grupo, tendo por objetivo que todos lograssem aprovação nas disciplinas.

As dificuldades no trato com o conteúdo de Matemática, no entanto, ficaram mais evidentes durante o planejamento de ensino e de regência, trabalhado na disciplina Prática de Ensino e Estágio Supervisionado, sob nossa responsabilidade e de outros pares dos departamentos de Educação e

Matemática. Os professores-discentes tentavam justificar o porquê dessas dificuldades, fundados em afirmações como:

[...] Professora, estávamos há muito tempo parado, sem estudar, e agora é muito conteúdo para aprender.

[...] Nunca gostei de Matemática, porque sempre tive dificuldade. Mas queria fazer um curso superior e o primeiro que a Ufac e o estado apresentaram como possibilidade foi o de Matemática, agora preciso terminar.

[...] O que foi ensinado não irá aplicar na escola, a Matemática da escola é bem diferente.

[...] Ainda tenho dificuldade de ensinar o conteúdo de Matemática, tive que assumir quatro salas de 5a série e estou “ralando muito”, estudar para

dar aula e estudar para a Universidade.

[...] Professora, eu não tenho condições para dar aula no Ensino Médio, o conteúdo é mais difícil. (CASTRO, Anotações de aula, 2002)8

Esses depoimentos tinham por objetivo justificar o porquê das fragilidades teórico-metodológicas e conceituais desses professores no ensino de Matemática, apresentadas pelos professores-discentes durante o desenvolvimento das disciplinas. Ao mesmo tempo, os professores-formadores não se responsabilizavam por essas “fragilidades”.

Corroborando nossa reflexão, Ponte e Oliveira (2002) expõem que o desenvolvimento profissional do professor se dá em dois campos:

Por um lado, envolve o crescimento do conhecimento e competência profissionais, habilitando-o tanto a desenvolver as atividades de rotina como a resolver problemas complexos que lhe surgem numa variedade de domínios. Por outro lado, refere-se à formação e afirmação da identidade profissional que constitui uma parte especialmente importante da identidade social do professor. (PONTE; OLIVEIRA, 2002, p. 145) Nossa proposta, trabalhada à época, foi, assim, a de desenvolver um estudo paralelo concernente às metodologias de ensino de Matemática,

relacionando-as com o conteúdo específico nos anos finais (5a à 8a série) do

Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Para essa atividade, contamos com o apoio dos professores-discentes que já trabalhavam com o ensino de Matemática. Essa experiência teve grande importância para no processo de interação do

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nosso trabalho, pois esse grupo denotava ter desenvolvido uma dinâmica interna

no percurso do curso – um por todos e todos por um.

Segundo Tardif e Raymond, é preciso haver uma formação prática aliada à formação teórica, envolvendo uma experiência direta do trabalho:

(...) a aprendizagem do trabalho passa por uma escolarização mais ou menos longa, cuja função é fornecer aos futuros trabalhadores conhecimentos teóricos e técnicos preparatórios para o trabalho. Mas, mesmo assim, raramente acontece que essa formação teórica não tenha de ser completada com uma formação prática, isto é, com uma experiência direta do trabalho, experiência essa de duração variável e graças à qual o trabalhador se familiariza com seu ambiente e assimila progressivamente os saberes necessários à realização de suas tarefas. (TARDIF; RAYMOND, 2000, p. 210)

Ainda que a formação teórica careça de um complemento advindo da experiência, nossa inserção no Programa Especial de Formação de Professores para Educação Básica – Licenciatura em Matemática trouxe novos elementos para análise. Foi-nos revelado que a maioria dos professores-discentes do curso possuía, em média, 15 anos de experiência no magistério (Capítulo 4), e que, no entanto, em um primeiro momento, o inverso poderia ser “verdadeiro”, ou seja, os professores-discentes que tinham experiências profissionais complementariam a formação teórica, ressignificando o processo formativo. Esse grupo de

professores-discentes representa o inverso do modelo 3 1+ ; tínhamos, agora, a

experiência + formação acadêmica (campos do saber divididos em específicos e pedagógicos).

Diante desse quadro, passamos a entender que o processo de formação profissional desenvolvido no Programa e o modo como este foi internalizado, mobilizado e ressignificado pelos professores-discentes precisavam ser investigados a fim de compreendê-los em suas nuanças, pois, conforme adverte Imbernón:

A formação terá como base uma reflexão dos sujeitos sobre sua prática docente, de modo a permitir que examinem suas teorias implícitas, seus esquemas de funcionamento, suas atitudes etc., realizando um processo constante de auto-avaliação que oriente seu trabalho. (IMBERNÓN, 2000, p. 48-49)

Para compreender a formação, é despertado o interesse, por parte dos pesquisadores, na área da Educação Matemática, em investigar a formação acadêmica e sua relação com a experiência profissional e como isso perpassa o mundo do trabalho. Compartilhamos, assim, nossa inquietação com os pesquisadores quando tratamos da formação de professor.

Salientamos que nosso estudo parte de um olhar sobre como são construídas “lógicas de formação que valorizem o professor na experiência com o aluno, com a instituição e a profissionalização” (NÓVOA, 1992, p. 23), de modo que as relações entre familiar e não familiar possam gerar estranhamentos que

propiciem a reflexão na e sobre a ação.