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3 DE ONDE VEIO E PARA ONDE VAI ?: O LEGADO DA ESCRAVIDÃO NA PÓS ABOLIÇÃO

4 A POPULAÇÃO NEGRA EM ALAGOAS: DA HERANÇA ESCRAVISTA À REALIDADE ATUAL

4.1 A FORMAÇÃO SOCIAL E ECONÔMICA ALAGOANA SOB O PRISMA DA HERANÇA ESCRAVISTA

Alagoas (ainda pertencente à capitania de Pernambuco), como um dos principais estados da região nordeste, ocupava centralidade na produção de cana-de-açúcar, pois, como visto anteriormente, o produto era a fonte principal da economia colonial. De acordo com Carvalho (2016, p. 48-49), o “complexo canavieiro é um dos pilares da história alagoana”, cujo “povoamento regional foi determinado pelos engenhos” e que “marcou para sempre o modelo econômico e social de Alagoas”.

No nordeste, por suas condições de solo e clima e sua proximidade com o principal centro consumidor, a economia colonial localizou a área de expansão ideal para essa empresa agrária [...] a produção rotineira de economia colonial, integrada a expansão do capitalismo mercantil europeu e concentrada basicamente no nordeste, estava baseada no baixo custo da mão de obra escrava, na abundância de terras geradora de latifundiários e na exportação de uma única mercadoria, o açúcar (CARVALHO, 2016, p. 49-50).

Foi a partir das especificidades da expansão econômica interna, que a “empresa agrária” de empreendimento colonial, avançou no campo no transcorrer dos séculos e criou as bases para uma concentração de terras nas mãos de poucos proprietários, tornando-se responsável pela construção das “fortunas das aristocracias agrárias da colônia e do Império (FERNANDES, 2004, p. 422). Em Alagoas, a economia açucareira “formou uma sociedade hierarquizada, de

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castas, escravista, senhorial, de traços feudais, que influencia nossas vidas até hoje” (TENÓRIO; DANTAS, 2010, p.10 apud CARVALHO, 2016, p. 49).

A Abolição da Escravatura em 1888 trouxe grande impacto econômico e social no cenário nordestino (CARVALHO, 2016). Em Alagoas, a substituição do povo negro escravizado pelo trabalhador assalariado deu-se a partir da “proibição do tráfico de escravos” (CARVALHO, 2016, p. 65) por volta dos anos de 1850, e com “o aumento do número de trabalhadores livres”, iniciado nesse mesmo período. Outro fator importante foi a instituição da Lei de Terras, que dificultava o acesso e a posse da terra àqueles que não provessem meios de realizar sua compra. De acordo com Leite (2000),

já a primeira Lei de Terras, escrita e lavrada no Brasil, datada de 1850, excluiu os africanos e seus descendentes da categoria de brasileiros, situando-os numa outra categoria separada, denominada ‘libertos’. Desde então, atingidos por todos os tipos de racismos, arbitrariedades eviolência que a cor da pele anuncia – e denuncia-, os negros foram sistematicamente expulsos ou removidos dos lugares que escolheram para viver, mesmo quando a terra chegou a ser comprada ou herdada de antigos senhores através de testamento lavrado em cartório (LEITE, 2000, p. 335).

Desse modo, a transição do trabalho escravo ao trabalho livre criou uma massa de trabalhadores marginalizados, cujo crescimento acompanhou a centralização e a concentração de terras e engenhos, e em seguida na sua transformação em usinas no estado, mais precisamente a partir de 1892 (CARVALHO, 2016). Essa transformação corresponde com a aglutinação de propriedades de pequeno e médio porte e na extensão da monocultura da cana- de-açúcar, atingindo municípios inteiros, transformando-os em polo central da economia com a centralização política e de mando nas mãos das famílias tradicionais.

[...] Apesar dessas mudanças, a estratificação social e as relações de trabalho no mundo canavieiro continuaram determinadas pelo monopólio da terra, exercido pelos engenhos e dos trabalhadores livres e pobres, transformados em assalariados, os moradores na área canavieira sem autonomia real (CARVALHO, 2016, p. 65). A mão de obra escravizada passa a ser substituída pela mão de obra assalariada e empobrecida, composta por “moradores” (em sua maioria por ex-escravizados), por “lavradores” (brancos ou mestiços) e por “sertanejos” (que se deslocavam periodicamente para as zonas da cana de açúcar) que executavam as tarefas antes realizadas pelos escravizados (CARVALHO, 2016).

No entanto, a mudança nas formas de organização do trabalho e a mudança de status adquirido – de escravizado para trabalhador assalariado – não trouxeram transformações significativas.

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A propriedade da terra, concentrada nas mãos das oligarquias agrárias e o difícil acesso dos trabalhadores a sua posse, tornava-os dependentes dos postos de trabalho nos engenhos, que, mantidos a baixíssimo custo, não concedia nenhuma garantia aos trabalhadores (CARVALHO, 2016). As contínuas mudanças no mundo do trabalho nas décadas seguintes contribuíram para a marginalização de uma quantidade cada vez maior de pessoas. “Os moradores foram sendo expulsos das fazendas e engenhos para as periferias das cidades da zona da mata, completando assim sua proletarização” (DABAT, 2007, p.131 apud CARVALHO, 2016, p. 69).

É essa massa marginalizada e suas gerações posteriores que, ao serem lançadas nas periferias, ocupam as piores estatísticas no estado.Essa realidade contemporânea será discutida mais à frente neste capítulo, a partir de uma análise crítica dos indicadores fornecidos pelo Governo do Estado de Alagoas. No entanto, acreditamos que é pertinente ressaltar que toda essa realidade imposta historicamente à população negra não se efetivou sem que houvesse resistências e lutas por parte desta população. A experiência do Quilombo dos Palmares é um bom exemplo dessa contraposição.

4.1.1 Quilombo dos Palmares: o berço da resistência negra alagoana

Assim como ocorreu em todo território brasileiro durante o sistema escravista, Alagoas também assistiu a secular luta travada entre senhores e escravizados na luta pela liberdade, tendo como palco principal o Quilombo dos Palmares (1630-1695). Situado na Serra da Barriga, o quilombo era pertencente à Capitania de Pernambuco e, atualmente, está localizado no município de União dos Palmares, na região alagoana.

A história do Quilombo dos Palmares e de seus líderes constitui-se alvo de inúmeras pesquisas, no intuito de contar e recontar esse capítulo tão importante do período colonial, não apenas para o entendimento do cenário sociopolítico em que se encontrava a formação e a expansão dos quilombos no país, como também para a compreensão da figura de Zumbi como um dos maiores símbolos da resistência negra contra o sistema escravista.

Nas palavras de Carvalho (2016, p. 95):

O Quilombo dos Palmares foi uma insurreição única. Trata-se da grande rebelião de escravos da América do Sul, a que sobreviveu por mais tempo, um levante nos domínios de uma das potências coloniais da época e que, para ser derrotado, exigiu o maior esforço bélico da história colonial.

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Palmares foi alvo de diversas ofensivas com intuito de destruí-lo totalmente, onde resistiu bravamente durante quase um século. Sendo considerado um dos principais redutos de concentração de uma população marginalizada (negros africanos e seus descendentes, indígenas e brancos pobres) durante o período colonial. Possuía uma organização distinta à sociedade escravista, sendo o mesmo reportado em documentos oficiais, como uma República.

Sávio Almeida (2016) aponta o Quilombo dos Palmares como uma sociedade “alternativa”, de “enfrentamento” e de “guerrilha”, cuja destruição não se tornava imperante apenas pela sua conformação enquanto “Estado” organizado, importa também, a ocupação territorial e sua integração a produção econômica.

Para Lindoso (2005, p. 244), “o Quilombo dos Palmares consolidou-se como um Estado negro de tipo africano do século XVII provavelmente não muito antes de 1630. Constitui-se como mucambos negros confederados”. O autor também aponta o caráter expansionista que continha as investidas ao Quilombo, revelando que não imperava apenas o desejo de extermínio de Palmares por sua organização, havia a necessidade de conquista do espaço não só pela sua extensão como também pela qualidade da terra, como retratado no seguinte texto: “as terras

[...] são de mayor importancia, e valor que se achão hoje em todas aquellas capitanias de Pernambuco, mas pelo abundante dos pastos para o gado, [...] sítios para engenhos, e capacidade para todo gênero de lavouras de mantimentos ((EANES, 1954, p.626 apud,

LINDOSO, 2005, p.246, grifo nosso).

O final da guerra provocou a expansão territorial colonizadora e a dilatação do povoamento com as sesmarias em toda a região palmarina aos vencedores, formando imensos latifúndios nos municípios da atual microrregião Serrana dos Quilombos e localidades vizinhas (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA/BIBLIOTECA PÚBLICA, 1954 apud CARVALHO, 2016, p. 104).

A desumanização dos escravizados para expropriação de sua força de trabalho, a destruição dos quilombos como forma de repressão e reação da sociedade escravista ao que se impunha como contrário a sua forma de organização social, e a consequente liberação das terras quilombolas aos “vencedores”, transformando-as sequencialmente em grandes extensões latifundiárias, passa pela necessidade do discurso repressivo e o do uso da violência letal.

Fato interessante destacado por Lindoso (2005) é a necessidade de um discurso repressor permanente que, ao retirar a humanidade ou apontar a falta de civilidade de determinados grupos que foram marginalizados e que iam de encontro ao poder do Estado Colonial, possibilitava o seu extermínio. Para o autor, seja retratando as rebeliões escravas, indígenas ou de brancos pobres e empobrecidos, esse discurso tende a generalizar os grupos em

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sua condição de vida miserável, e a contestação a esse sistema como passível de destruição. “É uma racionalização em âmbito da mentalidade estamental de um ato de poder massacrante e impiedoso, uma técnica capaz de reduzir um genocídio a uma razão social” (LINDOSO, 2005, p. 257).

Atualmente, toda forma de rebeldia expressa pelos grupos oprimidos, submetidos às diversas formas de desigualdade, violência e opressão, alcançam na contramão das respostas às suas demandas, a atualização desse discurso repressor. São discursos baseados em políticas que buscam, por exemplo, a redução da maioridade penal, a política de combate às drogas (sem tomá-la do ponto de vista da saúde pública) e o consequente encarceramento em massa.

São políticas que, nos grandes centros urbanos, possuem um recorte territorial e racial visivelmente marcado, assim como ocorre no campo, onde os conflitos pela posse da terra culminam em perseguição e morte de lideranças sociais e comunitárias e de ativistas políticos, dos movimentos de pequenos produtores rurais, povos indígenas, quilombolas etc. Ou seja, é uma racionalidade que torna o genocídio uma razão social que atravessa os tempos históricos e se atualiza conforme a formatação do Estado, os interesses de classe, e a manutenção de grupos privilegiados nos espaços de poder.

Tanto a figura de Zumbi quanto a do Quilombo dos Palmares constituem-se como elementos de representatividade e de afirmação da luta do povo negro no Brasil, especialmente em Alagoas. No entanto, algumas críticas são levantadas quanto à forma como tal história tem sido abordada, no momento em que estes são colocados como símbolos suspensos no tempo e no espaço, onde quase não se tem referências de um antes e um depois, onde não é dada visibilidade aos demais sujeitos11 pertencentes à construção do que se constituiu como maior quilombo da história da América (SÁVIO ALMEIDA, 2016; SILVA, 2018).

Mas não somente o histórico de lutas travadas no interior dos quilombos dão a tônica do surgimento do movimento negro no estado de Alagoas (SILVA, 2008), a religiosidade também teve um papel elucidativo no modo como as construções sociopolíticas de resistência negra foram gestadas e como são tratadas ao longo da história, a exemplo do episódio do Quebra de Xangô12 nos terreiros alagoanos, ocorrido em 1912.

11 A exemplo da pouca visibilidade dada à participação feminina na organização dos quilombos e na construção de levantes, revoltas e insurreições.

12 [...] “acontecimento extraordinário que culminou com a invasão e destruição dos principais terreiros de xangô da capital do estado. Os terreiros foram invadidos por populares capitaneados pelos sócios da Liga dos Republicanos Combatentes, misto de guarda civil e milícia particular criada com a finalidade de espalhar o terror entre os correligionários do Partido Republicano de Alagoas, cujo chefe político, o governador Euclides Malta, se encontrava no exercício do seu terceiro mandato e ameaçava ratificar um candidato seu no pleito que se

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Além da experiência histórica do Quilombo dos Palmares e da resistência empreendida no campo das religiões afro-brasileiras, a história da atuação política da população negra em Alagoas também está marcada pela formação de instituições representativas do movimento negro. Conforme Silva (2008, p. 14), seu surgimento ocorre no contexto em que

[...] as organizações negras [...] seriam influenciadas pelos movimentos de libertação nacional dos países africanos, junto com a luta dos afro-norte-americanos pelos direitos civis e a luta anti-Apartheid na África do Sul, assim como também pela emergência dos novos movimentos sociais no contexto da ‘abertura política’ brasileira.

Desse modo, as primeiras entidades negras em Alagoas surgem a partir de 1979 com a “Associação Cultural Zumbi, [...] a União das Mulheres de Maceió (UMMA), representando a luta da mulher em Alagoas” [...], como também, a partir do “processo de discussão referente ao tombamento da Serra da Barriga” (SILVA, 2008, p.14), no contexto de redemocratização no país. Essas e as demais organizações citadas por Silva (2008) mantinham e/ou ainda mantêm como eixos de suas mobilizações a valorização e “desenvolvimento da identidade negra e seus valores culturais” (SILVA, 2008, p.14), o reconhecimento de Zumbi, do Quilombo dos Palmares e o combate as diversas formas de discriminação, seja através da musicalidade, da ligação com as religiões de matriz africana, por meio de grupos de estudo, dentre outros.

Se de um lado percebe-se o crescimento e o reconhecimento unificado da importante representação que Zumbi e o Quilombo dos Palmares tem para a formação e consolidação de grupos representantes do movimento negro, a aceitação desses símbolos pelos espaços institucionalizados é posta por vezes como mera representação cultural, que são cooptados como meio de amortizar as reivindicações do movimento negro (SILVA, 2008). No entanto, diversos grupos veem apontando, atualmente, uma agenda de mobilizações que extrapolam o Novembro Negro e que vem pautando as condições de vida da população negra, buscando respostas frente a atuação governamental. Tais iniciativas serão apresentadas mais adiante.

aproximava” (RAFAEL, 2010, p. 290). Havia a associação do governado Euclides Malta e a longevidade de seu mandato ao culto afro-religioso. [...] “Na capital e em outros municípios do interior, vez por outra, eram encaminhadas às autoridades competentes solicitações para que fosse garantida a realização dos cultos, bem como a integridade física dos seus praticantes, constantemente ameaçadas pela população local. Ao que tudo indica, o governador de Alagoas no período considerado parece ter dedicado bastante atenção a essas práticas, ou, pelo menos, fez valer as Constituições Federal e Estadual, garantindo através dos seus destacamentos o funcionamento desses cultos. Essa é a impressão que se tem com relação aos xangôs, pois a atitude das autoridades constituídas em Alagoas para com essa modalidade religiosa específica parece ter sido também bastante complacente, razão pela qual, talvez, tenham surgido as acusações que mais tarde os adversários políticos de Euclides Malta fariam quanto a uma possível ligação sua com os terreiros da cidade, onde, segundo se dizia, ele buscava proteção para se manter por tanto tempo no poder” (RAFAEL, 2010, p.297).

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4.2 RACISMO INSTITUCIONAL: A PRODUÇÃO DA INVISIBILIDADE RACIAL NOS

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