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Formação via educação: entre uma necessidade do capital e uma vontade eleitoral

CAPÍTULO 2: O PRÉ-1964: EFERVESCÊNCIA E DISPUTAS POLÍTICAS (PROJETOS DE NAÇÃO)

2.4. A EDUCAÇÃO NO GOVERNO GOULART

2.4.1. Formação via educação: entre uma necessidade do capital e uma vontade eleitoral

Para o capitalismo, o sentido utilitarista do ensino é importante. Nesse quesito, podemos associar a intenção de maior participação no campo da educação ou a elevação do processo educacional, como uma estratégia de atrelamento científico ao mundo da produção. Em outras palavras, um melhoramento do instrumento trabalho.

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[...] O capital faz o operário trabalhar, agora, não com a ferramenta manual, mas com a máquina que maneja os próprios instrumentos. Um primeiro exame põe em evidência que a indústria moderna deve aumentar extraordinariamente a produtividade do trabalho, ao incorporar as imensas forças naturais e a ciência ao processo de produção; o que não está claro, entretanto, é se essa elevada produtividade não se realiza à custa de maior dispêndio de trabalho. (MARX, 2002, p. 443)

Acrescentaria que nesse processo de aumento de produtividade, incorporando a ciência ao processo produtivo, será exigida nova qualificação para o trabalho. No caso brasileiro, a educação assumiu função estratégica. A política de substituição de importações, ofereceu à indústria brasileira um salto qualitativo e quantitativo, o que para nós também transferiu ao campo educacional a necessidade de uma política educacional de substituição de importação de mão de obra. Deixar de trazer imigrantes para o trabalho nas indústrias e para formar no Brasil e, assim, oferecer o quadro de trabalhadores necessários às transformações em curso.

São várias as questões somadas nas intenções modernizantes e de transformação cultural e histórica do povo brasileiro. Vários segmentos no campo educacional, principalmente em fins da década de 1950 e início de 1960, tentaram melhor educar o quadro de trabalhadores. Os interesses estavam, obviamente, atrelados às necessidades econômicas. Entretanto, por mais utilitarista que possa parecer, estavam também ligados às teorias da “Revolução Brasileira” e, em muitos casos educacionais, visivelmente posicionados no campo da esquerda. Por exemplo, o Programa Nacional de Alfabetização que considerava que educar não era apenas preparar para o trabalho, mas era, sobretudo, ação libertadora.

Essa contradição, entre a educação utilitária e a educação emancipadora, foi bruscamente rompida após o golpe de 1964. Enquanto a intenção formativa é mantida, e inclusive assiste-se a um processo de radicalização do sentido técnico da educação, o processo formativo é totalmente destituído de sentido político e emancipador.

Lembrando sobre o emprego da maquinaria, que

[...] Esse emprego, como qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, tem por fim baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele dá gratuitamente ao capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais-valia. (MARX, 2002, p. 427)

Nesse sentido, embora afirmemos que as ideias educacionais de início da década de 1960 continham ideologicamente um viés emancipador – permitido pelo ambiente político e os debates sobre a “Revolução Brasileira” à esquerda – e que poderia oferecer do ponto de vista político melhora qualitativa da formação dos trabalhadores brasileiros, sua função não era transformar estruturalmente a sociedade. Enquanto política pública, a educação deveria responder aos problemas práticos da reestruturação produtiva.

A educação no governo João Goulart não fazia a defesa intransigente do capitalismo, mas, com toda certeza, apresentava a defesa do desenvolvimento capitalista no Brasil. Não obstante, seus ministros mantinham posicionamentos marcadamente à esquerda, como Darcy Ribeiro e Paulo de Tarso Santos, por exemplo. As transformações sociais, consequências da diversificação econômica, havia criado novos quadros de empregos em quantidade e qualidade. Alteraram-se, de certa forma, a situação de alguns grupos de trabalhadores situados no ambiente urbano. A educação, paulatinamente, passou a ser uma necessidade tanto para o trabalhador quanto para o empregador capitalista. Entretanto, como já vimos, era mantida a exploração da mão-de-obra como forma de acumulação.

O Brasil precisava de mão-de-obra qualificada106, mas não conseguia superar os problemas do analfabetismo. Para a educação,

[...] as exigências de melhor preparo de mão-de-obra acentuam-se. Quando a

simples alfabetização já não basta, não conseguimos sequer oferecê-la a mais de 25 milhões de brasileiros! Ora, na sociedade industrial a cultura letrada não é apenas condição de ajustamento social, mas também de sobrevivência individual. (REIS FILHO apud RIBEIRO, 2005, p. 161)

No início da década de 1960, 39,5% da população total era analfabeta. Se analisarmos que a constituição de 1946 exigia ser alfabetizado para votar, quase 40% da população estava impedida das decisões políticas. Essa era mais uma questão posta ao governo, que para as

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O governo João Goulart alertou para essa necessidade. O governo buscou estabelecer programas e convênios para a qualificação profissional. Um desses exemplos é o PIPMO (Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-obra). “O PIPMO (Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-obra) foi concebido pelo governo de João Goulart em 1963 e executado durante a ditadura militar até sua extinção em 1982. Correspondia a cursos profissionalizantes, que ocorriam em todo o país, para trabalhadores pouco escolarizados, com encaminhamento para o emprego, durante o idiossincrático Estado de bem-estar social brasileiro. Uma caricatura em relação ao formato genérico do welfare state da Europa Ocidental.” SANTOS, Simone Valdete dos. Educação de 1° Grau na Fábrica: para Além das Competências e da Qualidade Total. Porto Alegre: UFRGS, Dissertação de Mestrado ─ Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.

próximas eleições já havia sinalizado a necessidade de ampliação do eleitorado.107 Dessa relação direta entre a alfabetização e o voto, o governo manifestava a vontade de ampliar o direito de voto aos analfabetos e, para tanto, fez uso do MEC.

Tabela 2: Analfabetismo na Faixa de 15 anos ou mais no Brasil, 1940 – 1980.

Ano Total* Analfabeta* Taxa de

analfabetismo 1920 17.564 11.409 64,96% 1940 23.648 13.629 57,63% 1950 30.188 15.272 50,59% 1960 40.233 15.964 39,68% 1970 53.633 18.100 33,75% 1980 74.600 19.356 25,95% *Valores em milhares Fonte: IBGE – (2016)

Analisando a Tabela 2: Analfabetismo na Faixa de 15 anos ou mais no Brasil, 1940 – 1980., percebe-se que a alfabetização da população brasileira aconteceu de forma gradual, com grandes avanços exatamente no período pós-1950.108

107 Goulart apoiou os movimentos de alfabetização de base, e tratou a questão como política governamental.

Nos seus discursos, sempre que possível, reafirmava a necessidade de emendar a constituição. A extensão do voto ao analfabeto só ocorreu no Brasil em 1985. Em 1981, portanto antes de resolvida a questão da extensão do voto ao analfabeto, José Carlos Brandi Aleixo, então professor da Universidade de Brasília, apresentou um estudo com o título “O Voto do Analfabeto” em razão das discussões sobre a reforma eleitoral daquele ano, onde se colocava radicalmente a favor do voto ao analfabeto. Neste estudo, o autor cita nominalmente membros da Assembleia Nacional Constituinte que se colocavam a favor e contrários à extensão do voto aos analfabetos. Para tanto, acaba incluindo em um conjunto dos contrários ao acesso dos analfabetos grandes nomes internacionais como Adolfo Hitler e Benito Mussolini. “A divisão de opiniões e o calor das polêmicas atestam a complexidade da matéria. Entre os defensores do sufrágio do analfabeto encontramos nomes como os de SALDANHA MARINHO, JOAQUIM NABUCO, ROCHA LAGOA, VICTOR NUNES LEAL, TRISTÃO DE ATAÍDE, BARBOSA LIMA SOBRINHO, PRALO KELLY, JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES, GOMES NETO, GUSTAVO SARIEGO, KARL DEUTSCH, JAMES BRYCE, LUIS B. PRIETO etc. Pronunciaram-se contra o voto do analfabeto JOHN STUART MILL, ARISTIDES CESAR ZAMA, JOSÉ ANTONIO SARAIVA, TAVARES BASTOS, RUI BARBOSA, ASSIS BRASIL, GILBERTO AMADO, LEVI CARNEIRO, EDGARD COSTA, IVAN LINS, BRITO VELHO, GUSTAVO CORÇÃO etc. Naturalmente são também contrários ao voto do analfabeto aqueles como ADOLFO HITLER e BENITO MUSSOLINI, que se opõe a participação do povo em geral na escolha de seus governantes.” (ALEIXO, 1981, s/n, grifos do autor) ALEIXO, Jose Carlos Brandi. (1981) In: Rev. Inf. Legisl. Brasília a. 18, n.71 jul./set. Disponível em:

http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pr-revista-parana-eleitoral-no-009-jose-carlos-brandi-aleixo Último acesso: 13/03/2017.

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Em 2000, ainda temos mais de 25% da população da Região Nordeste não alfabetizada e m grande

percentual de crianças que não frequentam a escola. Fontes do IBGE:

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/tendencias_demograficas/comentarios.pdf.

Desde o início do século XX a educação já se impunha como uma condição para o desenvolvimento brasileiro. A república e a ideia de educação nacional surgem de forma concomitante. Em 1932, com o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, a discussão sobre democracia passava pela “reconstrução” da educação, e sua efetivação deveria passar por “um plano com sentido unitário e de bases científicas”.109

O Manifesto dos Pioneiros teve grande repercussão e fomentou a inclusão da problemática inclusive na constituição brasileira de 1934. Os artigos 150 e 152 determinavam que seria da competência da União de fixar o plano nacional em todo território brasileiro, além de, entre outras responsabilidades, organizar e elaborar o plano através de um Conselho Nacional de Educação.

Art. 150 - Compete à União: a) fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em todo o território do País; [...] Art. 152 - Compete precipuamente ao Conselho Nacional de Educação, organizado na forma da lei, elaborar o plano nacional de educação para ser aprovado pelo Poder Legislativo e sugerir ao Governo as medidas que julgar necessárias para a melhor solução dos problemas educativos bem como a distribuição adequada dos fundos especiais. (BRASIL, Constituição da Republica dos Estados Unidos do Brasil – de 16 de julho de 1934)110

A importância desses eventos nunca foi abandonada em nenhuma constituição após 1934, exceto em 1937 com Getúlio Vargas, quando foi declarado estado de sítio111. Entretanto, de forma prática, mesmo que a ideia de um Plano Nacional voltado à educação nunca tivesse sido abandonada, somente em 1962 é que o primeiro Plano foi realizado.112

Em 1962 um grupo de estudantes universitários católicos ligado à UNE e integrantes da equipe de assessoria do Ministro do Trabalho, Almiro Afonso, tentou encontrar nesse ministério alguma verba que possibilitasse o desenvolvimento de um trabalho de educação de adultos. Verificaram então que uma parcela do Imposto Sindical era destinada à educação através dos

109Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932. Disponível em:

http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf Último acesso 07-04-2016.

110Constituição da Republica dos Estados Unidos do Brasil – de 16 de julho de 1934. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm. Acesso em 04 Mai 2016. 111

Sob o pretexto de que havia uma conspiração comunista em curso para a tomada de poder (Plano Cohen), Getúlio Vargas interditou o Congresso. Fixou uma nova Constituição seguindo o modelo Constituição da Polônia, com aproximação fascista. Essa Constituição foi apelidada posteriormente como "Polaca". Sobre o Plano Cohen ver: SILVA, Hélio (1980). A ameaça vermelha: o plano Cohen. Rio Grande do Sul: rpm.

112 Sobre isso ver: SAVIANI, Dermeval. “Sistema Nacional de Educação articulado ao Plano Nacional de Educação”. In: Revista Brasileira de Educação v. 15 n. 44 maio/ago. 2010. Ver também (PAIVA, 2015, p. 283 – 286)

sindicatos e que seu emprego se fazia através da promoção de cursos de corte e costura, bordados, etc. Foi então discutida a possibilidade de reorientar a sua aplicação, canalizando tais recursos para um trabalho educativo de massa através do método Paulo Freire. Entretanto, a saída de Almiro Afonso do Ministério não permitiu a concretização desses planos. Durante a gestão de Paulo de Tarso no Ministério da Educação o mesmo grupo católico integrou-se em sua assessoria, logrando convencer o Ministro da oportunidade de um plano de educação de adultos sob a coordenação federal [...] O próprio Ministro, sensível ao problema da educação dos adultos, já havia tomado algumas iniciativas nessa matéria criando a Comissão de Cultura Popular [...] Já no final de sua gestão, a assessoria do Ministro formalizou a proposta de um programa extensivo de educação de adultos. O governo federal entraria com os recursos financeiros e a assistência técnica, ficando sua implementação a cargo dos sindicatos e entidades estudantis [...] (PAIVA, 2015, p. 283 – 284)

Com essa iniciativa dava-se o início ao primeiro Plano Nacional de Alfabetização. A ideia de que o Plano Nacional fosse atrelado às leis sempre esteve presente. Em 1962 ele não veio como Lei de fato, apresentou-se como um indicativo do Ministério da Educação e Cultura, quando já estava em vigência a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei 4.024/61.

O PNA representava a incorporação, a nível ministerial e em termos práticos, da orientação indicada pelos grupos que desde 1962 desenvolviam atividades ligadas à educação dos adultos. Em relação aos objetivos de recomposição do poder político e das estruturas socioeconômicas, o

programa mesmo mais importante que a luta em favor do voto do analfabeto. [...]

A educação era mais que a multiplicação do número de eleitores, mas, de fato, também era isso.