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Uma parte significativa do inquérito procurava saber que trajetos formativos as pessoas identificam na sua passagem ou estadia no Moinho da Juventude. Foram introduzidas questões que estão longe de esgotar o tema mas que interrogam explicitamente sobre momentos, situações, pessoas que fizeram parte do processo formativo pessoal de cada um. Tendo em conta a consideração deste contexto associativo como propiciador de uma formação recíproca, por um processo de socialização, foram não apenas introduzidas questões sobre as aprendizagens mais importantes, mas também sobre como se situam face à formação

de outras pessoas, quer em situação clara de transmissor de um conhecimento, quer no âmbito socializante. Procurou-se desta forma salientar a reversibilidade dos papéis formativos caraterísticos da socialização, em que o lugar de transmissor e de aprendente se vão alternando. Foram então introduzidas as seguintes perguntas:

‘Na sua atividade no Moinho, o que ensina ou que conhecimentos transmite? A quem?’; ‘Na sua atividade no Moinho, quais são os momentos em que mais aprende? Com quem?’; ‘Em que é que a sua experiência de vida o/a ajuda na sua atividade?’;

‘Assinale 3 aprendizagens ou conhecimentos que adquiriu aqui no Moinho da Juventude e como os aprendeu’.

Para analisar as respostas obtidas teve-se em consideração o contexto e, sobretudo as pessoas junto de quem ocorriam. Nota-se, por exemplo, a existência de atitudes e conteúdos diferentes no que se ensina quando os ‘aprendentes’ são crianças, jovens, adultos ou colegas.

O que ensino

O primeiro elemento a salientar no que se refere à questão sobre o modo como as pessoas inquiridas falam do seu lugar de transmissoras, remete-nos para uma atitude coletiva de investimento pessoal, isto é, de incentivo para a tomada de iniciativa, para a descoberta e exploração do mundo, para a curiosidade e para a criação daqueles com quem lidam. Esta atitude verifica-se essencialmente a partir do trabalho com jovens e com adultos, já que com as crianças o foco parece estar no cumprimento da escolaridade e na preocupação com o ‘desvio’, para que ‘não se percam’, conforme referia Artur. Escolaridade e desvio parecem tornar-se como as duas faces da mesma moeda – ou se estuda, ou se envereda pela via da ‘marginalidade’.

É curioso verificar que o referido pelos inquiridos se reporta pouco a conteúdos específicos de uma prática, de um fazer e, sendo-o, são sobretudo mencionados pelas pessoas que não são do bairro (expressão plástica, corporal, quererem sempre aprender e saber mais, etc.). São alvo de maior afirmação aspetos relativos a modos de vida, a título pessoal ou coletivo: investir em si; desenvolver o que se gosta; respeito e responsabilidade; conhecer, afirmar e participar na história do bairro ou na promoção das tradições caboverdianas. Algumas pessoas apontam a globalidade da vida, há uma dimensão existencial e identitária que parece ser assumida com afinco.

Já internamente, sobre a relação entre colegas, apesar de ser a categoria menos referida, aponta-se para o trabalho em equipa, pautado por uma boa disposição e entreajuda, por vezes reforçando-se o caráter de reflexão e aprendizagem conjunta.

Pode então dizer-se que as pessoas assumem uma condição de ‘ensinantes’. Há como que um objeto triangular cujos vértices fazem confluir preocupações e apostas complementares: 1. ‘que não se percam’; 2. que estudem; 3. que invistam em si. São mensagens que têm um caráter individualizado, na medida em que se reportam à vida de cada um. Uma outra dimensão tem um caráter mais coletivo e identitário, que pode ser mais voltado para o bairro, para a ‘caboverdianidade’, ou ainda para a Associação Moinho da Juventude.

O que ensino: ‘que não se percam’, terem estudos completos, investir em si

Estar/Relacionar-se e assegurar a escolaridade parecem estar entre as grandes preocupações relativamente às crianças e aos jovens. Corrigir comportamentos, dizer ‘não’, ensinar valores e regras para que sejam autónomos, ou desenvolver competências a nível social e pessoal são exemplos de expressões utilizadas nas respostas. Também associarei aqui algumas respostas que se reportam a uma relação com o saber: ‘incentivá-las em ter atitudes de aprender e quererem saber sempre mais’ (Elisa) ou ‘refletirem sobre as atividades realizadas’ (Anne Marie).

Alguns inquiridos apresentam-se como exemplo, assumem um papel de autoridade e referência para os mais novos. Algumas destas pessoas tiveram trajetos sinuosos, passaram por situações de marginalidade e de ilegalidade. Desenvolvem agora outra via e pretendem a todo o custo evitar que a sua trajetória se espelhe no futuro dos mais jovens. Pretendem, a partir da sua história pessoal, poupar os mais novos em seguir os mesmos caminhos. Por exemplo, Carlos revela o seu desejo, na mesma ordem de ideias:

‘[...] o que queria mesmo era trabalhar com os de 13/14 anos, que estão na idade de escolher, criar os seus grupos, abandonar a escola ou escolher cursos ... Não vou abandonar o bairro. Por mim levo a camisola e espero fazer esse projeto. Com 13/14 anos, se houvesse uma mãe que me puxasse para trás, eu ia. Mas não. Aos 21 anos fui preso. Por isso é que é uma idade mesmo decisiva. Eu gostaria de trabalhar com crianças nessa fase em que é preciso parar e conversar com eles. Porque vale mais uma boa conversa do que uma bofetada’.

O percurso escolar é outro dos focos de atenção. Sendo a atividade de apoio à infância, complementar à escolaridade, uma área quotidiana e significativa do Moinho da Juventude, eram de esperar as referências neste sentido. Faz-se menção às tarefas de ‘apoio na realização dos TPC’s’, do apoio escolar, de acompanhamento geral a nível pedagógico, e finalmente – correspondendo ao objetivo do estágio dos estudantes da licenciatura em psicopedagogia – de acompanhamento de crianças com necessidades educativas especiais. O interessante está em observar os complementos que justificam essas tarefas. Nomeadamente temos três comentários distintos:

‘Ensino às crianças tudo o que sei e que aprendi ao longo da minha vida, a terem estudos completos e a realizarem os seus sonhos’ (Ivone).

‘Trabalho com 4 crianças dos 0 aos 3 anos, vamos ensinando de tudo um pouco, a serem autónomos. Para quando forem para a pré [jardim de infância] já saberem algumas coisas’ (Camila).

‘Aos miúdos tento apoiar nos TPC’s, para que não desistam dos estudos’ (Beatriz)

Conforme se dizia, assegurar o cumprimento da escolaridade está no centro das atenções, manifestando-se por exemplo por antever níveis seguintes, e pautada pelo receio de uma saída precoce: caso desistam, como é referido, ou caso não prossigam. É Beatriz quem mais refere essa preocupação. Ela conta, aliás, que foi a partir do apoio que teve no Moinho na sua própria escolaridade que decidiu enveredar pela profissão docente: ‘Aprendi muito aqui no Moinho e segui esta área profissional por causa do Moinho’ e, em particular, para trabalhar com as crianças do seu bairro:

‘Por ter crescido no bairro e por ser do bairro. Isso é que me fez seguir esta área. Nem pensava em seguir o mestrado em ensino especial, mas fiz essa escolha para tentar perceber o porquê de tantas dificuldades destas crianças’. (Beatriz)

Já Cláudia aborda a mesma questão, mas de uma outra perspetiva: ‘[ensino] Que é necessário

investir na nossa formação para no futuro termos melhor qualidade de vida. Mais tarde ela explica,

remetendo para a sua própria história: ‘Na formação de mediadores é que comecei a pensar de forma mais rigorosa em ir mais longe, em continuar a estudar e a formar-me [...] Nós (no bairro) estamos mentalizados de que quando chegamos a um certo nível, paramos. E aqui não. Incentivam-nos a continuar e a apostar em nós e na nossa formação’.

No testemunho de Ivone, acima referido, coexistem de forma independente os elementos escolaridade e sonhos pessoais. A realização dos sonhos parece surgir no âmbito de uma possibilidade de se constituir em sujeito de desejos e habilidades que merecem ser atendidos e alvo de iniciativas que os concretizem. Entramos assim no terceiro vértice que alguns designaram como ‘investir em si’. Este é um valor referido por várias pessoas, todas do bairro, que pautam o seu testemunho com expressões como estas:

‘Gosto de saber o que as pessoas fazem para poder desenvolver e valorizar o que as pessoas fazem. [...] Incentivar as pessoas a fazerem coisas. A parte artística...’ (Ermelindo)

‘O meu objetivo geral é quebrar o sentido de dependência. Também trabalho com jovens, mas o meu trabalho é mais com as crianças ... se forem atrás, tiverem determinação, força de vontade e acreditarem que podem sonhar. Quebrar com o pensamento de ‘não vou fazer nada; não vou conseguir, não sei fazer’. Explorarem as suas capacidades e não terem medo de descobrir, não rejeitar o desconhecido’. (Filipa)

São pessoas que encaram na Associação como espaço ‘oportunidade, disponibilidade, novidade’. Vivem-no para si e procuram relacionar-se nessa perspetiva com as pessoas que frequentam a Associação e as suas iniciativas. Situam-se como profissionais que dão aos outros estímulo e ferramentas que materializem as oportunidades. Neste contexto, ainda que não sendo de todo exclusivo, a parte da criação artística assume um papel preponderante por possibilitar a criação de obras, mostras ou outros projetos que são circunscritos no tempo. Isto é, permite realizar um trabalho, encontro, etc. que aconteça por um período limitado, sem exigir uma implicação exclusiva ou de longo termo.

O que ensino: a dizer o bairro

O bairro atravessa, desde há vários anos, uma turbulência quanto ao seu futuro, por se confrontar com a vontade de responsáveis políticos em desmantelá-lo e realojar a população em habitação vertical. Além disso, os seus moradores debatem-se em permanência com a má fama difundida pelos meios de comunicação social. Neste sentido, o que se ensina parece transformar-se numa atitude afirmativa:

‘O lado positivo do bairro, a quem mora no bairro e a quem mora fora dele’ (Júlio)

‘A Cova tem para mim uma representação diferente. A Associação sabe que eu digo sempre o que penso que se está a passar’. (Amílcar)

‘Nós todos no [Kova M] festival18 passámos mensagem: o interesse que temos pela população,

demos dois dias de divertimento, reunimos as pessoas, reunimos amizades no mesmo recinto. Demos uma imagem diferente, porque as pessoas têm um pensamento negativo em relação à Buraca’. (Renato)

Os quatro testemunhos são de adultos de perto de uns 30 anos. Estão empenhados em defender o bairro como pertença, em mostrar realidades do bairro que não são difundidas na comunicação social. Renato e Júlio assumem um discurso mais suave e valorizante, como o ‘reunir amizades’ e outros ‘lados positivos do bairro’. Já os discursos de Artur e de Amílcar assumem um tom mais assertivo, a sua defesa do bairro passa por afirmar as injustiças. Artur

– tal como Amílcar – é músico e nas suas composições aborda as várias formas de injustiça

social de que são alvo os moradores da Cova da Moura, como de outros bairros similares, nomeadamente onde se concentram populações negras.

Amílcar está muito empenhado em reivindicar o bairro perante a ameaça que não se define nem desaparece de desagregar o bairro. Ele inclusive renegoceia a sua identidade e atitude dentro da Associação, definindo para si próprio quando pode ou não exprimir tudo o que pensa. E é no contacto com os moradores que ele dá azo à sua expressão total, debatendo a sua interpretação e apelando à defesa do bairro.

Uma das fundadoras, novamente Lucinda, é quem parece fazer uma síntese, ao afirmar que o ‘Moinho é para a proteção da nossa comunidade’.

O que ensino: integrar-se na história da Associação e manter tradições de Cabo Verde

Voltadas para uma mensagem de ordem identitária, de pertença a uma comunidade e em sua defesa, encontram-se as dimensões de Associação e Cabo Verde. A dimensão da Associação foi a menos mencionada no quadro da mensagem expressa que se transmite, embora tenha força quando, inversamente, os inquiridos se referem ao muito que ali aprenderam. São duas as mulheres que perante a questão ‘o que ensina’ respondem por referência ao Moinho. A                                                                                                                          

18 Kova M Festival: organizado pela Associação Moinho da Juventude de 2 a 7 de Abril de 2012, agregando manifestações artísticas (residências de músicos, exposição de fotografias, espetáculos musicais, workshop dança, etc.), de desporto (torneios de futsal), debates sobre temas sociais e políticos.

Nancy conta que ‘já tenho ido contar a história da Associação às crianças’; mas é Lucinda que afirma perentória:

‘que o Moinho não é de ninguém, é nosso, é de toda a gente. Tem de se saber isso!’

A outra dimensão tem a ver com o manter vivas as tradições de Cabo Verde. O Moinho da Juventude assegura algumas práticas comuns, como seja o Kola San Jon de que atualmente se prepara a candidatura a património imaterial em Portugal; mas também como é o batuque através do bem conhecido grupo de mulheres Finka Pé, para apontar os mais emblemáticos. É neste sentido que Lúcia responde: ‘Pelas festas que fazemos em Cabo Verde que temos acompanhado, são hábitos que na minha terra festejamos sempre e o Moinho não nos deixa esquecer a tradição e a nossa cultura’. O Moinho constitui-se assim como um bastião da memória e prática da cultura caboverdiana. Tomé testemunha a passagem entre gerações desta memória, ele conta:

‘Há muitos putos que já entraram no grupo do S. João. A Lieve falou comigo para eu dispensar umas horas a ensinar porque já estou a envelhecer e os outros colegas também. Tudo isso é progresso’. (Tomé)

Outros há que apontam o seu papel de transmissão desta cultura a nível do quotidiano, apontando como referência a ‘educação dos nossos ancestrais’ (Amílcar), traduzidas em práticas quotidianas que definem relações, prioridades, mas também momentos e festividades. É também nesta perspetiva que se percebe o testemunho de uma ama, a Elisa, que afirma: Elas [mães] falam crioulo com eles [os meninos] e eu falo o português’ ou seja, o facto de ela ensinar a língua portuguesa às criança, liberta as mães dessa responsabilidade para poderem lidar com os filhos na língua e cultura do seu país de origem.

O que ensino: tudo o que sei e aprendi ao longo da vida

Uma nota para o enfoque existencial, geracional, comunitário, contida nas expressões (coincidentes) de Teodoro e Ivone:

‘ensino tudo o que sei e aprendi ao longo da vida’ (Ivone).

É a globalidade da vida que se transmite com tudo o que ela comporta de vida individual e coletiva, associativa e cultural. De referir que estas pessoas estão fortemente comprometidas com o projeto da Associação, uma delas, a Ivone, assumindo um cargo da direção há vários