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‘A sociedade é obra dos indivíduos que fazem a sociedade. A

sociedade é obra do imaginário instituinte. Ao mesmo tempo que fazem e refazem, os indivíduos são feitos pela sociedade

instituída a cada momento: num sentido, são-na’. (Castoriadis, 2003 [1988])

Importa perceber a capacidade das comunidades em criar e dar resposta ao seu próprio devir, desenvolver um fazer resultante de uma intenção imaginada e dita coletivamente pelas pessoas que fazem a Associação.

A fim de instrumentar uma reflexão que permita analisar, do ponto de vista das relações de poder e em diversos tipos de prática, a capacidade/possibilidade de diálogo e de tomada de decisões, recorri ao conceito de instituição. Ele permite observar e pensar as relações que se tecem entre o estabelecido e o novo, entre gestos, práticas, afirmações que se situam ora em sintonia com o ‘instituído’, ou seja, com o que está pré-definido ainda que não explicitado, ou que introduz incoerência e desordem, podendo mesmo tornar-se instituinte, isto é através da criação de uma outra ordem de significados e valores, de definição identitária.

Trata-se, no fundo, de perceber em que medida existe espaço e exercício de autonomia, considerando-a como local em que é possível decidir e definir o curso e o modo do viver da e na Associação e, por extensão, no bairro. O conceito de instituição permite pensar a imaginação e o estabelecimento de uma ordem de pensamento, de significados próprios que orientam modos de ‘fazer’ a vida, neste caso, do Moinho da Juventude.

Deve-se muito ao filósofo Cornelius Castoriadis a ‘construção de uma nova teoria da instituição’ (Ardoino e Lourau, 1994: 119) que a elaborou nos anos 1960 e 70, fundamental para a Análise e a Pedagogia Institucional. O conceito e a abordagem de pesquisa e ação relativa à representação social de grupos enformaram um movimento iniciado em França em meados dos anos 1960 e teve como base três eixos matriciais (idem: 7): a escola de Lewis sobre a dinâmica de grupos; a psicanálise, que conduzirá à identificação dos sujeitos a um mesmo ideal do eu e à intuição de um aparelho psíquico grupal; e finalmente a tradição anarquista, nomeadamente no que concerne à democracia direta e da utopia societária, relevando do grupo auto-gerindo-se.

Pode então entender-se pelo conceito como:

‘a instituição das significações, para cada sociedade, coloca o que é e o que não é, o que vale e o

que não vale, o que pode ser ou valer. É ela que instaura condições e orientações comuns ao realizável e ao representável e, por aí tem reunido, por avanço de indivíduos, de atos, de objetos, de funções, de instituições no segundo sentido e corrente do termo que é de cada vez e concretamente uma sociedade’ (Castoriadis, 1975: 492).

A instituição constitui-se como conjunto de significados que são valor e normas que dizem e ditam a ação, isto é, acontece como ‘organização identitária, do mundo instituído pela sociedade [que se] faz na e pelo legein (distinguir – colocar – escolher – reunir – juntar – contar – dizer). O legein é a dimensão conjuncional do representar/dizer social, como o teukhein (reunir – ajustar – fabricar – construir) é a dimensão conjuncional do fazer social’ (Castoriadis, 1975: 325). A sua materialização dá-se através de uma atribuição simbólica que dá sentido e permite a explicitação e o agir.

Lourau e Ardoino (1994: 26-27) procuraram contribuir, nomeadamente distinguindo o uso corrente e coloquial com que o termo é usado:

‘A instituição é imaterial. Nunca é diretamente apreensível. Apenas pode ser apreendida através

da materialidade das coisas da organização. [Distingue-se da instituição enquanto estabelecimento ou organização que, por sua vez] são os muros, os locais, o mobiliário, tangíveis, visíveis, os agentes com os eventuais uniformes. São também as estruturas da organização, a hierarquia, os horários, o emprego do tempo, os regulamentos, mais abstratos mas ainda assim percetíveis porque são explicitamente significados, afixados, codificados. [...] A instituição deve ser lida enquanto sentido, conjunto de significados... a ‘alma’ da organização’.

Se toda a relação social e se a sociedade é, necessária e intrinsecamente, instituída, tal representa a estabilidade e fixidez que permite aos indivíduos estabelecerem uma relação entre presente e passado, entre si, apreender e perceber tudo o que existe; também é verdade que a humana condição é dotada de um imaginário social radical, que lhe permite estabelecer novas relações, significados, valores, isto é, que ‘torna possíveis todas as sínteses da subjetividade’ (Castoriadis, 1975: 204). O filósofo opõe ao instituído, enquanto ‘norma de identidade a si, inércia e mecanismo de auto-perpetuação’ (idem: 497), o instituinte, ou seja, a capacidade de imaginar e criar novos conjuntos de significados que permitem representar, dizer e fazer o mundo de um outro modo, ‘fonte e origem de alteridade ou de autoalteração perpétua’ (idem: 494).

As dimensões instituídas e instituintes da sociedade estão sempre potencialmente presentes. Nenhuma pode apagar ou aniquilar a outra e ambas existem na condição da existência da outra:

‘A sociedade instituinte, por mais radical que seja a sua criação, opera sempre a partir e sobre o já instituído, está sempre – exceto num ponto de origem inacessível – na história. (...) está sempre presa ao adquirido, portanto sob o peso de uma herança (...) O infrapoder em questão, o poder instituinte é ao mesmo tempo o do imaginário instituinte, da sociedade instituída e de toda a história que neles encontram a sua finalidade passageira. Em certo sentido é, pois, o poder do próprio campo sociohistórico, o poder de utis, de Ninguém’ (2003: 119).

É, assim, na dimensão instituinte que se cria a possibilidade de advir um novo espaço de relações, representações e significados que compõem a autonomia: ‘autónomos (dar-se) a si mesmo as suas leis (...) trata-se de fazer e de instituir (e portanto de dizer). A autonomia é o agir reflexivo de uma razão que se cria num movimento sem fim, como individual e social ao mesmo tempo’ (Castoriadis, 2003: 131). A capacidade de criar composições de relações contrapõem-se a contextos de heteronomia instituída em que estão pré-determinados os valores, papéis e funções.

‘A autonomia surge, como germe, logo que irrompe a interrogação explícita e ilimitada, referindo-se não a ‘fatos’ mas aos significados imaginários sociais e ao seu fundamento possível. Momento de criação, que inaugura quer outro tipo de sociedade, quer outro tipo de indivíduos. Falo de germe porque a autonomia tanto social como individual é um projeto. O surgimento da interrogação ilimitada cria um eidos [forma] histórico novo – a reflexividade no sentido pleno, ou auto-reflexividade, como o indivíduo que a encarna e as instituições em que ela se instrumentar’. (2003: 130)

Autoridade e autonomia no processo formativo

A aplicação do conceito de instituição situou-se, principalmente, nas áreas da psiquiatria e da relação terapêutica – muito ligada aos movimentos anti-psiquiatria; ao nível organizacional, questionando o locus de poder e visando a auto-gestão; e ao nível escolar em que se retrabalhava a (não) diretividade. Quer ao nível organizacional quer ao nível escolar a formação constituiu-se como tema central destas teorias com uma perspetiva de transformação das instituições.

A proposta é intervir e reconstruir determinantes das relações sociais:

‘É necessário instaurar novas relações pela procura prática de novos papéis, novos estatutos, novas regras de vida. Mas a relação dual é regressiva, são as relações coletivas comportando instâncias de mediação que é preciso desenvolver. O mestre é encarnado, não se livra demagogicamente da sua autoridade. Ele a exerce de uma forma que, assegurando a necessária referência à lei, permite a autorização progressiva e crescente dos seus participantes’ (Ardoino e

Lourau, 1994: 17).

Sendo central a questão da autoridade, é necessário criar a possibilidade de deslocar para o grupo a autoridade sobre tudo o que lhe acontece, relegando para um plano diferente a habitual centralidade do professor-mestre-formador. Trata-se de ‘repor na mão dos alunos [participantes] tudo o que é possível repor, não a elaboração dos programas ou a decisão dos exames, que não dependem do professor nem dos seus alunos, mas o conjunto da vida, das atividades e da organização do trabalho no interior deste quadro’ (Lobrot, 1966: 203).

Numa primeira instância, há que cuidar as relações que se estabelecem entre todos e das possibilidades que elas abrem, comportando diversos aspetos (Lobrot, 1966:190-192): 1. a possibilidade da palavra enquanto satisfação, enquanto experiência afetiva, que permita uma nova caracterização da atividade de falar; 2. a possibilidade da elaboração, que vá além da palavra habitual e mecânica que consiste em pedir, opor-se, contradizer, queixar-se, e que pode ser penosa mas também motivo de contentamento; 3. a interação propriamente dita, que através da circulação complexa das ações interindividuais, os participantes descobrem pouco a pouco o prazer de agir sobre outro ou de ser modificado pelo outro, de mover a seu grado as suas atitudes, ideias, reações, sentimentos; 4. as possibilidades de ação em grupo: o poder de influenciar as decisões de um grupo, de lhe dar uma dada fisionomia; 5. as possibilidades de cada um, já que a mais pequena iniciativa requer a iniciativa e o esforço dos participantes, sendo mais uma possibilidade de descobrir o seu próprio poder; 6. as possibilidades do diálogo, atividade difícil de troca de ideias, sua discussão, opor pontos de vista, etc.

O grupo tem entre mãos as instituições que pode, segundo os casos, deixar em suspenso, constituir novos modelos, constituir sobre modelos tradicionais, etc. ... o professor torna-se um instrumento ao serviço do grupo: ‘o princípio é que ele se contente de responder aos pedidos dos alunos [...] que se pode dar em diferentes categorias de intervenção: de análise (explicitar sentimentos, devolver ao grupo a imagem do seu funcionamento, clarificar mensagens); de organização (aconselhar, propor); de conteúdo (dá as suas ideias, faz sínteses, clarifica ideias, faz o ponto de situação sobre determinados temas)’ (idem: 203).

O autor afirma a sua preferência pelo termo autogestão, como objetivo, como direcção. Assume-se não diretividade como forma de pensar a condição da figura do professor- formador, que se pretende que passe ao papel de par ou de técnico ao qual se faz apelo quando necessário, através da etapa da cogestão: ‘a não diretividade exprime-se essencialmente por meio do silêncio, pelo menos a um certo nível, [ele] é a expressão suprema da supressão da Autoridade’ (idem: 205).

O silêncio pretende ser um modo de rutura com as instituições prescritas e, a seu tempo, levar a uma tomada de consciência sobre o processo de assunção da capacidade de decisão, de satisfação dos seus interesses e de compromisso com os do grupo, por via das atividades por ele realizadas. São vários os modelos que se vão alternando e através dos quais o grupo se vai constituindo e assumindo de uma forma autónoma, independente e criativa: o modelo da interpenetração – essencialmente num primeiro momento, vive-se a comunicação por ela mesmo, sobretudo no que tem de mais afetivo, vivem-se os interesses mais espontâneos. O modelo da circulação da palavra – chega-se a propostas concretas ou a uma elaboração comum para encontrar uma fórmula que permita esta circulação em que todos possam exprimir-se. O modelo da organização do trabalho, de modo a procurar chegar a uma organização que satisfaça a todos ou a alguns, inventando, adaptando meios. Finalmente, o modelo do trabalho – simultaneamente sob a forma de elaboração e de criação pessoais e sob a forma de cooperação:

‘a dinâmica do grupo autogerido, como todo o grupo no qual os indivíduos podem exprimir as

suas necessidades essenciais, engendra não apenas satisfação destas necessidades, mas sobretudo a modificação no mundo das necessidades e dos interesses, uma reestruturação da afetividade de base’ (idem: 219)

A análise institucional visa, então, refletir sobre o esforço do grupo para descobrir e/ou criar instituições que lhe sejam originais. No estudo que aqui se desenvolve, cabe então observar o que foi instituído, isto é, que novo tipo de ‘ordem’, sistema de significados, identidade e processo conjuncional foram criados; que condições instrumentais as materializam; que processos instituintes se podem ali encontrar; como se articulam o legein, dimensão conjuncional do representar/dizer social, e o teukhein, dimensão conjuncional do fazer social; que novas composições de figuras-formas foram sendo criadas? Que eidos [formas] estão ali presentes e em permanente alteridade?

Capítulo 3