• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – Democraticidade, participação e eleição

2. Da génese do sistema democrático às teorias de democraticidade

2.3. O princípio democrático e o direito de sufrágio na democracia

2.3.4. Formas e finalidades da impugnação

Nem sempre os atos eleitorais decorrem com a linearidade prevista pela legislação, particularmente em cenários altamente politizados, onde se confrontam fações opostas que recorrem a todos os meios, inclusive jurídicos, para fazer valer as suas posições. Neste contexto, é possível observar diferentes pretensões que almejam a invalidade do ato administrativo, recorrendo à impugnação, enquanto mecanismo legal, no âmbito do Direito, que transfere a situação da unidade organizacional para serviços exteriores quer afetos à tutela quer a outros como os tribunais administrativos. Mais uma vez, recorramos ao CPA, que, na sua secção III, Art. 133.º, aponta as várias situações que podem desembocar na invalidade de um ato administrativo e inviabilizar, nomeadamente, a aplicação de um resultado eleitoral.

“São, designadamente, actos nulos:

106

b) os actos estranhos às atribuições dos ministérios ou das pessoas colectivas referidas no artigo 2.º em que o seu autor se integre;

c) os actos cujo objecto seria impossível, ininteligível ou constitua um crime;

d) os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental; e) os actos praticados sob coacção;

f) os actos que careçam em absoluto de forma legal;

g) as deliberações de órgãos colegiais que forem tomadas tumultuosamente ou com inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos;

h) os actos que ofendam os casos julgados;

i) os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente.”

A nulidade do ato administrativo pode ser “invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal” (Art. 134.º), acrescentando, ainda, que o “ acto anulável é susceptível de impugnação perante os tribunais nos termos da legislação reguladora do contencioso administrativo” (Art. 136.º).

Os atos administrativos podem, assim, “ser revogados por iniciativa dos órgãos competentes, ou a pedido dos interessados, mediante reclamação ou recurso administrativo” (Art. 138.º).

Não existindo aceitação do resultado, assiste ao indivíduo a possibilidade legal de impugnar o ato eleitoral. Ao deferimento da impugnação pode suceder um recurso ou reclamação, tendo como “fundamento a ilegalidade ou a inconveniência do ato administrativo impugnado” (Art. 159.º, CPA).

O CPA regulamenta todas as possibilidades de reclamação e seus efeitos, distinguindo entre aquela que não permite recurso para o tribunal, suspendendo os efeitos desse ato, excetuando situações previstas na lei ou se a sua não execução imediata provocar grave prejuízo para o interesse público, e aquela que permite recurso para tribunal, suspendendo os efeitos do ato, excetuando, mais uma vez, as situações em que a lei determina o contrário ou se a execução imediata causar prejuízo irreparável para o interessado (Art. 163.º)53.

53

Elencam-se três tipos de recursos administrativos: (i) hierárquico, dirigido ao superior hierárquico do autor do ato, isto é, a entidade com poderes para lhe dar ordens ou instruções, para que o revogue ou altere; (ii) hierárquico impróprio, apresentado a um órgão da mesma pessoa coletiva que exerça poderes de supervisão sobre o autor do ato, mas sem que entre eles exista relação de hierarquia, isto é, quando aquele não tenha poder para dar ordens ou

107

Consequência da nova legislação que determina a eleição do diretor pelo conselho geral, multiplicaram-se pelo país os casos de impugnações, reclamações e recursos, arrastando o conflito interno provocado por fações opostas para o exterior, prolongando-o no tempo e provocando um significativo desgaste nas forças antagónicas que esgrimem argumentos nas escolas e fora delas, focando esforços e energias na luta política interna. Na atual sociedade tecnológica, bastam-nos alguns “cliques” para encontrarmos acórdãos dos tribunais54

ou notícias de impugnações em

instruções a este, ou ainda, o recurso, que a lei expressamente admita, para um órgão colegial, de atos dos seus membros; e (iii) recurso tutelar, interposto contra atos de pessoa coletiva sujeita a regime de tutela ou superintendência.

54

A título de exemplo, optamos por apresentar um excerto de um Acórdão, comprovando o contencioso associado à eleição do diretor:

“Processo: 02374/09.9BEPRT / Secção: 1ª Secção - Contencioso Administrativo Data do Acórdão: 01/13/2011 / Tribunal: TAF do Porto [...]

Descritores: CONTENCIOSO ELEITORAL ELEIÇÃO DIRECTOR ESCOLA [...]

Sumário: I. Mercê do quadro normativo que se extrai dos arts. 21.º e segs. do DL n.º 75/08 em articulação com a Portaria n.º 604/08 o acto do Director Regional da Educação que homologa a eleição feita para o cargo de director de escola constitui o culminar do respectivo processo eleitoral e como tal do mesmo faz parte integrante.

II. A sua impugnação contenciosa está sujeita ao processo urgente de contencioso eleitoral disciplinado pelos arts. 97.º a 99.º do CPTA, mormente ao seu prazo de instauração previsto no n.º 2 do art. 98.º, sob pena de caducidade do direito de acção.

III. Tal meio contencioso urgente e seu prazo de dedução aplica-se também à impugnação de actos eleitorais que padeçam de ilegalidade sancionada com o desvalor da nulidade.*

* Sumário elaborado pelo Relator [...]

Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional

Decisão: Negado provimento ao recurso [...]

1. RELATÓRIO E..., [...] inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF do Porto, datada de 17.06.2010, que no âmbito da acção administrativa especial pela mesma instaurada contra o MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO e o contra-interessado A… [na qual peticionava, nomeadamente, a anulação do despacho do Sr. Director Regional Adjunto da DREN - prolatado em 19.05.2009 - que havia indeferido o recurso hierárquico por si interposto no âmbito do procedimento concursal de eleição do Director do Agrupamento de Escolas de C…], julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção e consequentemente absolveu o R. da instância.

Formula nas respectivas alegações [...], as seguintes conclusões que se reproduzem:

“A - A homologação do Director executivo efectuado pelo Conselho Geral em plenário dos seus membros que nele votam é um acto administrativo. [...]

N – A recorrente põe em causa a eleição/escolha que levou à indigitação do Prof. mais votado pelo CGT por violação da lei. [...]

“[...] XI. Sintetizando, à pretensão da autora corresponde a forma de processo do contencioso eleitoral, e não tendo a acção sido interposta no prazo de 7 dias a contar da data de notificação do acto de manutenção do acto homologatório da eleição, não se mostra possível mandar seguir a forma adequada, no caso, a do contencioso eleitoral, porquanto já caducou o respectivo direito de acção …”

4. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar total provimento ao recurso jurisdicional interposto pela A. e, em consequência, pelos fundamentos antecedentes, confirmar o julgado absolutório do R. da presente instância.

[...] Valor para efeitos tributários: 5.000,01€ [...]”

108

jornais de referência55 ou em blogues afetos à área da educação, com inúmeros comentários, normalmente de pessoas ligadas às escolas envoltas nos meandros litigiosos.

Convém também salientar que os docentes se veem confrontados com muitas situações de foro legal, no âmbito da gestão administrativa e pedagógica das escolas. Não existe qualquer dotação orçamental que permita a aquisição de serviços prestados por jurisconsultos e o recurso aos serviços ministeriais, através da DGEstE, tem revelado sérios constrangimentos, quer por respostas que se limitam à transcrição de artigos legais, quer por falta de celeridade no processo. Assim, a ausência de formação jurídica, as contantes revisões da lei, o significativo suporte legislativo regulador do quotidiano escolar dificultam sobremaneira as suas ações e decisões e provocam, não raras vezes, atos administrativos nulos e ilegais. Particularmente nos atos eleitorais para o conselho geral ou para a eleição do diretor, constatámos que as muitas impugnações que se verificam pelo país são fruto de interpretações dúbias da lei, muitas vezes usada para favorecer pretensões que não foram conseguidas por via eleitoral. A inobservância das qualidades relativas às reuniões ordinárias ou extraordinárias do conselho geral verificadas, por exemplo, nas convocatórias, prazos de divulgação da ordem do dia ou deliberações, conduz à ilegalidade das resoluções, arrastando procedimentos para lá do tempo inicialmente previsto, com consequências óbvias para a escola e comunidade educativa.

55

A comunicação social dá relevo ao contencioso envolvendo a eleição do diretor, particularmente quando associado à política local, como podemos comprovar por este excerto do jornal Público:

“A votação foi em Maio do ano passado, o processo eleitoral decorreu sem qualquer reclamação ou objecção, mas o Tribunal Central Administrativo do Norte anulou agora as eleições para o cargo de director da Escola... [...] A questão só foi levantada depois de as eleições terem sido decididas pela diferença de um voto, tendo o candidato derrotado optado por impugnar o acto eleitoral pela via judicial. [...] Na altura, tal como o PÚBLICO noticiou, surgiram acusações de que o problema tinha antes raízes políticas, uma vez que o resultado da eleição não seria do agrado do poder político municipal, liderado pelo PSD. Tanto a câmara como o candidato derrotado repudiaram quaisquer ligações, mas o Partido Socialista chegou a divulgar um comunicado denunciando alegadas pressões por parte dos representantes camarários. [...] No total, são sete os casos de eleições para director de escola impugnadas nos tribunais na área da DREN”, in http://www.publico.pt/n1430083 , consultado em 25 de janeiro de 2013.

109 CONCLUSÃO

O conceito de democracia foi evoluindo ao longo dos tempos, desde a sua génese clássica, implicando a intervenção direta dos cidadãos, passando pelo pensamento antidemocrático do liberalismo burguês que valorizava sobretudo o individualismo expresso na célebre máxima de Diderot “c’ est la propriété qui fait le citoyen”. É, aliás, na antidemocracia e no liberalismo que muitos autores veem a génese das denominadas “teorias restritivas da democracia”, no fundo, um sistema político representativo e uma forma de domínio. Uma outra corrente, assente na teoria rousseauniana da “volonté générale” e no jacobinismo, acentuaria o poder de decisão soberano do “corps du peuple”, considerando a participação de todos os cidadãos na formação da vontade política da Nação. Robespierre reclamaria um poder vindo do povo, um poder absoluto e a “vontade do povo não se podia representar”. Além de apontar para uma certa concepção identitária de democracia (identidade entre governantes e governados) em desfavor da ideia representativa, o radicalismo democrático chegou a ultrapassar a ideia de democracia como forma de estado e propor uma democracia social, comprometida na criação dos pressupostos existenciais dos cidadãos (Canotilho, 1993: 399, 400).

A teoria do governo e da democracia representativa acabou por impor-se quando, nos finais do séc. XIX e início do séc. XX, o sufrágio passou a ser praticamente universal. A teoria da soberania nacional ou popular não era totalmente abandonada, mas impôs-se também, como padrão, o sistema representativo contra as teorias identitárias, e o mandato livre dos representantes contra o mandato imperativo dos comissários do povo, característica que se mantém na atualidade.

Das diversas teorias da democracia, assumem particular relevância a teoria elitista, no conceito de Schumpeter que a apresenta como um método de obter o apoio do povo pela concorrência, numa clara forma de domínio, no que se aproximará da teoria das elites do poder concetualizada por Mosca e Pareto, para quem a democracia não é o poder do povo, mas o poder das elites para o povo que se limita a escolher as elites, e a teoria da democracia participativa, assente na ideia de democracia como poder do povo e que hoje defende a formação da vontade política de “baixo para cima”, num processo de estrutura de decisões com a participação de todos os cidadãos, fenómeno mais exequível em organizações de reduzida dimensão como a escola ou a empresa, no que se acredita ser um modelo capaz de transformar a apatia, passividade ou indiferença dos cidadãos e colaboradores numa postura mais interventiva, ativa e mobilizadora.

110

Certo é que os conceitos de democracia e participação, no contexto organizacional, se assumem como fenómenos complexos e multifacetados, marcados por diversas formas, graus e manifestações. A participação manifesta-se como uma ação inerente ao processo democrático, mas constatámos que a democracia política nem sempre tem correspondência no mundo organizacional e administrativo. Analisando alguns modelos e movimentos organizacionais, ao longo dos tempos, comprovamos que houve uma evolução na valorização do indivíduo: se começámos pelo enfoque nas tarefas, característico da primeira fase da Administração Científica, e pela importância da estrutura organizacional, comum à Teoria da Burocracia e da Teoria Estruturalista, passou-se ao ênfase colocado nos indivíduos, princípio advogado pela Teoria das Relações Humanas e Teoria Comportamental. Porém, se a participação se assume como um direito inalienável e compatível com o sistema das democracias atuais do mundo ocidental, a realidade vem provar que nem sempre os normativos legais implicam as transformações sociais desejadas pelos legisladores.

Estabelecemos como consensual o cumprimento do princípio democrático aplicado à escola, exemplificado com o direito ao sufrágio conducente a uma forma de democracia representativa, capaz de eleger os representantes de vários corpos, mais concretamente do pessoal docente e não docente e dos alunos. Esta tendência de participação ativa no mundo organizacional é visível nas novas tendências das lideranças partilhadas e das culturas empresariais, onde todos os colaboradores se sentem envolvidos na dinâmica organizacional e, em consequência, se sentem altamente motivados para a prossecução de objetivos comuns. Em termos da organização escolar, indubitavelmente, que a colaboração de todos os atores educativos é indissociável do sucesso escolar dos discentes, mas constatámos que uma organização eminentemente burocrática e refém de uma racionalidade instrumental não é favorável à participação e à tomada de decisão emancipatória. Por outro lado, quando o líder, neste caso, o diretor, não é eleito diretamente pelos seus pares, carece de uma base de suporte e apoio alargada, que pode dificultar o cumprimento do seu plano estratégico, no que acaba por ser uma realidade oposta aos critérios que levaram à sua designação. Este cenário pode produzir professores menos dinâmicos, menos interventivos, menos envolvidos pela cultura escolar, o que, obviamente, terá impacto nas práticas de ensino-aprendizagem. É relevante recordar que “a eficácia de uma liderança é determinada pela situação onde essa liderança se exerce e que, no limite, podemos afirmar que ela encerra uma dimensão empática e dinamizadora” (Carvalho, 2012a: 198), capaz de suscitar nos outros o compromisso e a vontade de trilhar um rumo comum visando a prossecução de metas em benefício último do aluno.

111

Sabemos que a escola, enquanto instituição organizacional, se assume como um microcosmos hierarquizado, potenciador de relações diversificadas, onde o modelo político emerge com força crescente. Apesar da diversificação de papéis, responsabilidades, direitos e deveres, apesar dos diferentes graus e formas de participação é inquestionável o valor da participação nas organizações. Este é um dos aspetos mais focados na contestação ao atual modelo de gestão, particularmente por aqueles que apontam um défice de participação na gestão da escola ou na eleição do diretor, processo do qual a maior parte dos membros da comunidade se encontra arredada, levantando questões associadas à legitimidade do poder e à capacidade de influência dos principais envolvidos no quotidiano escolar. É certo que a “participação dos atores nas diferentes tomadas de decisão na organização escolar é um dos aspetos que mais evidencia a sua configuração democrática” (Carvalho, 2012b: 119), mas a alteração de forças desestabilizou o sistema, pois a participação democrática só é valorizada quando consubstancia “uma prática crítica e fundamentada que resista aos ditames da ideologia neoliberal que insiste na sua manipulação e no seu controlo” (Carvalho, 2012b: 119). Efetivamente, a perda de poder dos professores a par do poder crescente das forças exteriores, condiciona sobremaneira o ambiente entre todos os elementos da comunidade, pondo em causa o valor dessa participação.

As impugnações e os recursos testemunham o ambiente hostil em certos estabelecimentos de ensino, onde é possível verificar uma rutura entre fações opostas, quer por ampliação do poder político-partidário que se introduziu nas escolas, quer pela junção em agrupamentos ou mega-agrupamentos, já que muitas escolas se veem afastadas do órgão máximo de gestão, proximidade que lhes garantia algum poder decisório ou de influência. O diretor torna-se, cada vez mais, um órgão distante, uma figura desconhecida, arredado dos problemas e das situações concretas de cada estabelecimento. Neste cenário muitos se interrogam sobre as diferenças entre o diretor, como se configura no Decreto-lei n.º75/2008, e um gestor nomeado a nível autárquico ou governamental. Outra perspetiva mais radicalizada, que não partilhamos, é a comparação entre o diretor do séc. XXI e o reitor do Estado Novo, papéis amplamente afastados pelos níveis de democraticidade e participação da sociedade atual.

Consideramos, ainda, que o atual modelo de gestão foi implementado no terreno com fortes resistências, sendo possível testemunhar o aumento e amplificação do conflito e litígio político. Regra geral, as críticas que se fizeram ouvir desde a proposta do modelo mantêm-se com a sua implementação, agora mais sustentadas na prática das escolas. Aliás, o Decreto-Lei n.º 137/2012, de 2 de julho, com uma revisão significativa do Decreto-Lei n.º 75/2008, ilustra a necessidade de rever e legislar

112

procedimentos que se revelaram problemáticos com o anterior normativo. No preâmbulo do primeiro decreto é possível ler que a vontade legislativa é de proceder ao “reajustamento do processo eleitoral do diretor, conferindo-lhe maior legitimidade através do reforço da exigência dos requisitos para o exercício da função”.

Perante esta nova conjuntura manifestada em termos estruturais, políticos, educativos e sociais, torna-se imperativo analisar a escola enquanto unidade organizacional multifacetada, cada vez mais complexa, cada vez mais ambígua, onde se conjugam diversas vertentes, numa complexa teia de jogos de poder, interesses, conflitos, estratégias e coligações, num enquadramento congruente com o modelo organizacional político.

113