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Os Descobrimentos e o advento da cultura renascentista e

PARTE I – ADMINISTRAÇÃO E GESTÃO ESCOLAR – EVOLUÇÃO

1. Continuidades e ruturas na gestão da escola pública

1.2. Os Descobrimentos e o advento da cultura renascentista e

O Renascimento e a cultura antropocêntrica marcam uma rutura com a Idade Média e os ideais teocêntricos. O impacto faz-se sentir em todos os setores da sociedade, com incidência também no ensino. A escola perde o papel exclusivo na transmissão do saber, já que, no séc. XV, portugueses abastados contratavam precetores para os seus filhos, outros havia que os enviavam para o estrangeiro para terem aulas, em regime particular, com pedagogos e humanistas de renome. O que é de realçar é uma preocupação emergente por parte da classe nobre, em se instruir e valorizar pela cultura.

4 A petição para a criação de um “Estudo Geral” dirigida ao papa Nicolau IV, em 12 de

novembro de 1288, apenas foi aceite em 1290, apesar de haver indícios de que terá funcionado antes da autorização papal. Saliente-se, a este propósito, a distinção entre “Estudo Geral” (o edifício, a instituição com professores e alunos) e “Universidade” (corporação, assembleia, congregação de mestres e alunos, com personalidade jurídica), designação que viria a vingar com os dois significados. A Universidade de Lisboa seria transferida para Coimbra, em 1308, através de petição de D. Dinis e autorização papal de Clemente V, mas não seria uma transferência definitiva.

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Neste contexto, no reinado de D. João III, ocorreu uma reforma do ensino centrada no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra. De entre as medidas instauradas, salientemos quatro: (i) a criação de Colégios em edifícios independentes, uns destinados à instalação de estudantes e outros para a lecionação de preparatórios, mantendo-se os estudos ministrados no próprio mosteiro; (ii) a separação entre o ensino de base, preparatório e o ensino superior (nas escolas medievais de Estudo Geral podia-se estudar desde as primeiras letras até ao ensino superior, embora se respeitasse a sequência de estudos predefinida); (iii) os curricula; (iv) a pedagogia dos mestres.

Interessante, do ponto de vista da administração, é a criação de uma nova figura de proa para gerir a atividade pedagógica do mosteiro, face a alguns constrangimentos sentidos na implementação da reforma joanina. Com efeito,

“[...] o desencontro entre duas autoridades, reitor e prior de Santa Cruz, era inevitável e D. João viu-se obrigado a criar um novo cargo cujo ocupante teria, por tarefa, a vigilância do funcionamento escolar do mosteiro e intervenção direta na actividade pedagógica, nos programas, nos exames, na escolha dos professores, na disciplina, etc.. O cargo foi criado em 1540, logo três anos depois da transferência da Universidade, e dele incumbido Luís Álvares Cabral, professor no curso de Artes” (Carvalho 1986: 219, 220).

Todavia, a reforma ficou muito aquém do previsto, muito pela dificuldade de quebrar amarras com o pensamento escolástico e a pedagogia medievais, mesmo da parte dos homens mais esclarecidos da época. Além disso, qualquer tentativa de modernização e de equiparação aos exemplos europeus esbarraria na parede erguida pela Igreja contra a Reforma que grassava pelos países do norte da Europa. Em 1539, o Infante D. Henrique é nomeado inquisidor-mor do reino e, em 1540, realiza-se o primeiro auto-de-fé em Lisboa. Como sabemos, em Portugal, o Tribunal do Santo Ofício estenderia a sua ação repressiva por três longos séculos, excedendo em muito a sua duração relativamente a outros reinos na Europa.

Conforme se disse, uma das medidas da reforma joanina foi a criação de colégios, equiparados a escolas secundárias, com o duplo objetivo de cumprir a sua finalidade e de servir de preparatório para o ingresso na universidade, separando, assim, o ensino médio do superior, tornando-os independentes. Em 1547, ainda por ação de D. João III, funda-se, em Coimbra, o Colégio das Artes que, a par das Escolas Gerais e dos conventos, se responsabilizava pelo ensino, dividido, na época, por um primeiro ciclo de instrução primária, um segundo ciclo linguístico e literário, com as tendências humanísticas de vanguarda, e um terceiro ciclo de matérias filosóficas.

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Desta fundação se faz menção pela referência ao corpo diretivo e à hierarquia aí estabelecidos. O rei elegeu um principal do colégio e um subprincipal; ao primeiro atribuía-se-lhe completa autoridade sobre os mestres, com poderes para os suspender ou substituir. Apenas o rei5 e o principal eram responsáveis pela gestão do colégio, estando este independente do reitor da Universidade, situação que se inverteria anos mais tarde.

O célere desenvolvimento económico do séc. XVI aumentou a procura do ensino das primeiras letras, de forma que as escolas já não se podiam confinar às paredes das catedrais e mosteiros, contando-se cerca de 30 estabelecimentos na segunda metade do século. Carvalho (1986) denuncia oportunistas da época que se autonomearam mestres sem as devidas competências, mas que emergiram neste contexto de procura de ensinamentos que completassem a formação do homem renascentista.

A expansão da reforma protestante e a sua ação contaminadora abalou profundamente o status quo, levando ao Concílio de Trento (1545-1563). Em Portugal, erguiam-se vozes indignadas nos púlpitos das igrejas e nas cátedras das escolas. D. João III tomou conhecimento da nova Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loiola (1491-1556) e pensou em enviar missionários jesuítas para o Oriente em serviço de evangelização. Não tendo cumprido, pelo menos na totalidade, esta promessa, proporcionou-lhes um edifício em Lisboa e, mais tarde, em Coimbra, onde fundaram o Colégio de Jesus, a 2 de julho de 1542, com o objetivo de preparar futuros missionários. O primeiro reitor do colégio foi um jesuíta espanhol, Diogo Mirão. A ascendência e prosperidade dos jesuítas facilmente se comprovam pela incumbência de assegurarem o ensino das letras e da fé cristã ao príncipe D. João, então com nove anos. A sua expansão e influência no ensino ultrapassaram, certamente, as suas próprias expectativas, pois

“o êxito surpreendente da actuação dos jesuítas nos locais em que se iam instalando fez-lhes considerar a conveniência de eles próprios criarem as suas escolas públicas, ou seja, escolas suas onde fosse permitida a frequência de

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A correspondência assídua de D. João III com as pessoas responsáveis pelo ensino bem como documentos de Estado coevos denunciam a educação como uma prioridade do rei, que chegava ao ponto de se interessar por casos individuais de alunos, como ilustra um alvará de 1539: “Sou informado que um estudante dessa universidade que se chama Araújo é homem que não vive honestamente nem estuda como deve fazer e dispende mal o que lhe seu pai dá, e porque isto além de ser perda para ele é mau exemplo para os outros, encomendo que o mandeis chamar e admoestai e aconselhai que se emende e estude como bom estudante deve fazer, por que, não se emendando, eu proverei nisso como houver por bem e mandarei que não esteja no estudo nem na cidade” (Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, I, 478, citado por Carvalho: 1986: 220).

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estudantes não jesuítas, nas quais eles, jesuítas, fossem os mestres“ (Carvalho, 1986: 292).

Em 1551, Inácio de Loiola manda criar o ensino público em várias cidades de Portugal, com incidência nas cidades de Lisboa e Évora, cumprindo um vasto plano de educação e de ensino com impacto em todos os lugares onde a Companhia se ia instalando. Como resultado, as escolas públicas com orientação pedagógica da Companhia de Jesus cresceram extraordinariamente, não só no continente e nos arquipélagos da Madeira e dos Açores, mas também nos territórios ocupados no Oriente e em África.

Em termos de administração, o reitor, jesuíta nomeado pela própria Companhia, ocupava-se das tarefas de caráter pedagógico e didático, como a criação dos curricula, e elaborava e executava as normas de orientação e funcionamento dos Colégios. Em 1598, foi promulgado o Ratio Studiorum, documento de referência onde constavam as normas pedagógicas a serem seguidas por todas as escolas da Companhia e que estaria em vigor até 1832.

Efetivamente, a insinuação dos jesuítas na corte, desenvolvendo estratégias de aproximação ao rei e seus próximos, permitiu-lhes dominar, em completa segurança, o ensino em Portugal, durante dois séculos, coexistindo, é certo, com um também crescente número de escolas particulares. Aliás, o monopólio da instrução pública é confirmado pela bula de Paulo V, publicada em 29 de maio de 1568, que impede o próprio rei de interferir na recente fundação da Universidade de Évora da responsabilidade dos jesuítas. Todavia, a crescente procura do ensino e o mais que significativo aumento do número de alunos não pode ser associado simplesmente à influência apostólica dos jesuítas, mas entendido no contexto da excitação dos Descobrimentos, do interesse pelos negócios e da promoção do homem do Renascimento. Porém, é inegável que a Companhia de Jesus viu e usou o ensino como uma arma de influência e transformação social, capaz de moldar mentalidades e combater, à época, as heresias provenientes das crescentes contestações religiosas.

Mesmo a ocupação castelhana e a perda de independência no séc. XVII não abalaram o papel de relevo da Companhia de Jesus e da sua ação pedagógica na nação, o que se compreende pelo facto dos curricula não incluírem qualquer noção de pátria, aprendendo-se no reino o que se aprenderia em qualquer outra escola jesuítica da Europa.

Em síntese, constata-se que, particularmente ao longo dos séc.s XVI e XVII, a organização da instrução se manteve apanágio dos educadores religiosos, com destaque para as Ordens dos jesuítas, dos oratorianos e mesmo dos jansenistas

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(Marques, 1980). Assim, durante séculos, apenas uma minoria privilegiada tinha acesso a aulas de ler e escrever, ensinamentos transmitidos, a título particular, pela família, por precetores ou mestres em regime domiciliário e individual6, em aulas coletivas em escolas clericais, ou, a título público, em colégios destinados ao ensino secundário e nas Universidades de Coimbra ou Évora.

1.3. Protagonistas educativos durante a monarquia absolutista e o Iluminismo – A