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O “correrio”pode ser visto como um movimento micropolítico, micro e grandioso em sua efetividade. No entanto, diante das microlutas, há cansaço (e não é micro), para exemplificar, lembro de outro momento no qual um dos trabalhadores menciona sobre seu esforço em proporcionar uma escuta (cuidado!) a um dos jovens, a fim de evitar que o mesmo necessitasse de algum medicamento ou até mesmo punição, mas conforme percebia que na troca de turnos seu esforço se esvaía, pois o colega não tinha “paciência” para manter determinada proposta, levando-o a pensar em desistir de suas ações, de sua profissão.

Segundo Foucault (2003, p.231), “[...] há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de força de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo.” É preciso “fôlego” para os pequenos e permanentes enfrentamentos. Na tentativa de minimizar a infâmia, é preciso buscar as rasgaduras, enfrentar mesmo que seja em forma de microlutas, como um dos jovens fez na roda de conversa ao tratarmos sobre o uso do medicamento no castelo:

“Lá funciona assim, quando a gente entra tem que tomar

remédio, mesmo que não use droga.” (Notas do diário de campo,

2015)

O lugar possível para os jovens tornou-se difícil (impossível?), assim como para os trabalhadores que gaguejavam ao tentar explicar por que isso ocorria, sem encontrar as palavras certas. “Essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras” (FOUCAULT, 2003, p. 205). O que o jovem coloca, não diz somente de um desejo de não querer ser medicado, mas, quem sabe, diz de sua vida infame.

Outra evidência nessa trama a qual, nesse momento, mostra-se mais emaranhada, aparece na fala de uma trabalhadora quando tratávamos sobre as singularidades dos jovens, os tempos nas tarefas, na alimentação:

“Fica difícil, porque eu sei que o guri não consegue comer no

tempo, o que fazer? Ou tu dá mais tempo pra todo mundo, ou tu deixa o guri sem comer, ou ainda, se tu deixa só ele comendo, tu arruma um baita de um problema com os outros que também vão querer mais tempo pra ficar fora do alojamento, então vira processo difícil, muito difícil”. (Notas da lembrança, 2017)

Reflito sobre o que deve ser [des]feito em meio a tantas leis, práticas, espaços, capazes de bloquear, constranger, atrasar, medicar o viver dos jovens como poderíamos intervir (mais in[ter]venções?) ou será que precisamos analisar por outra perspectiva? Analisar outras evidências as quais identificam esses sujeitos no lugar de infames. Parar para olhar para outras vozes as quais indicam, falam, informam, sobre esse castelo e todos os demais. Talvez esse seja um caminho possível a ser percorrido, um movimento a ser feito.

Entendo que a experiência indica um caminho rizomático, mais que isso, produções rizomáticas. Produções nas falas, nos cartazes... Produções e caminhos também construídos pelo silêncio, mas um silêncio atento. Na fala finalmente escutada e acolhida. Caminhos que não foram estabelecidos (ou fechados com grades e cadeados), mas permanecem abertos não só aos trabalhadores, mas, aos jovens – a todos os “habitantes” do castelo.

Ao deixar o castelo, saio com a nítida impressão que estive em uma prisão. Mas também, como pesquisadora, saio desse lugar carregando um mapa-cartográfico para me guiar nas visitas de “castelos” dispostos nas legislações e nos ditos midiáticos. Um mapa que ajudará a perceber, analisar (e confirmar?) a intensidade da infâmia, dos ditos sobre os jovens desses castelos e a profundidade do vazio – do vento, das instituições – nas quais são jogados (e esquecidos?) após os instantes de [in]fama, de poder.

5. PUBLIC[AÇÕES] DE UM JORNAL: NOTÍCIAS FORA DO CAS[t]E[lo]

“Adolescente abre buraco em tela de ferro e foge do Case...” Zero Hora, 12/02/2016

19. “Welcome in a new world” Obra de Yann Houri

Histórias. Fatos. Retratos. A cada mergulho um achado. Encontros com ecos longínquos, à procura de notícias sobre nossos jovens. Jovens sem rostos e sem identidades, mas envoltos pelas intensidades que os atravessa. “O cartógrafo, imerso no plano das intensidades, lançado ao aprendizado dos afectos, se abre [e mergulha] ao movimento de um território” (KASTRUP, BARROS, 2014, p.74, inserção minha entre chaves). Além dos espaços já engendrados nesta pesquisa, abro-me para o território “notícias”.

A origem da palavra “notícia” advém do latim: “notitia”, que significa “notoriedade; conhecimento de alguém; noção”. No jornalismo, a definição de “notícia” é discutida de forma recorrente81, não sendo o objetivo deste trabalho entrar nos

meandros teóricos sobre a comunicação de massa, trago as colocações do filósofo Foucault (2003) diante de algumas publicações analisadas por ele:

O termo “notícia” me conviria bastante para designá-los, pela dupla referência que ele indica: a rapidez do relato e a realidade dos acontecimentos relatados; pois tal é, nesses textos, a condensação das coisas ditas, que não se sabe se a intensidade que os atravessa deve-se mais ao clamor das palavras ou à violência dos fatos que neles se encontram (FOUCAULT, 2003, p.203).

Assim eu mergulhei nas notícias, nos relatos rápidos, deixando-me atravessar pelo clamor das palavras (ou seria a violência dos fatos?). A notícia escrita, antes distribuída de mão em mão, pelos jornais impressos, hoje pode ser lida/acessada diante de uma tela, por meio dos jornais on-line, sites e redes sociais, como apontado na metodologia, são essas notícias que ganham meu olhar.

A cada clique, uma espera. Olhos vidrados naquilo que lia, via, enchia-me. O ECA garante a não publicação de qualquer forma de identificação de crianças e jovens envolvidos em atos infracionais82. Nas notícias que eu lia, eles realmente não eram

identificados, porém eu “via” os rostos, nomeava-os, percebendo, sentindo, intensidades. Mergulhei na rede, não como uma internauta qualquer, tratou-se de um

81 Diversos estudos sobre o jornalismo demonstram que os profissionais da área têm uma enorme

dificuldade em explicar o que é notícia e quais são seus critérios noticiosos para além de respostas vagas do tipo ‘o que é importante’ ou ‘o que interessa ao público’. (TRAQUINA, 2008, p. 62).

82 Art. 247. Divulgar, total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação,

nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo a criança ou adolescente a que se atribua ato infracional: Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência. § 1º Incorre na mesma pena quem exibe, total ou parcialmente, fotografia de criança ou adolescente envolvido em ato infracional, ou qualquer ilustração que lhe diga respeito ou se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir sua identificação, direta ou indiretamente.

mergulho nos achados, e também: não simplesmente em dados, mas em novas relíquias, em intensidades.

O que se lerá neste capítulo é exatamente isso: intensidades. Essas não vieram todas juntas, teve respiros, gritos e a necessidade de mais fôlego em diversos momentos. Constituindo-me nas diversas paradas e nos desdobramentos dos movimentos empreendidos.

Para que o leitor possa me acompanhar nessas intensidades, apresento um rizoma de chamadas/títulos de notícias encontradas. Sem estabelecer categorias, dá- se esse emaranhado, trata-se de algumas chamadas de notícias sobre jovens em conflito com a lei e sobre as medidas socioeducativas. Deixando um convite a sentir, ouvir, ler, ver, mergulhar.