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Found footage no cinema de ficção e os falsos found footage films

3. DO FILME DE COMPILAÇÃO AO REMIX VIDEO: O FOUND FOOTAGE E SEU ESTUDO

3.1. Found footage no cinema de ficção e os falsos found footage films

Uma vez estabelecidas a bases históricas da criação artística pautada na apropriação e no remix, bem como enfatizado o contexto atual de preponderância desse método de criação em todas as esferas da cultura, a presente exposição pode agora avançar para uma breve descrição histórica do desenvolvimento dos procedimentos de apropriação no campo específico do audiovisual, a qual fornece, paralelamente, um panorama dos mais diversos gêneros associados em que essa prática se manifesta, os quais seguem coexistindo, em diferentes graus de incidência, na produção audiovisual contemporânea. Nesse ponto, é importante ressaltar que nem todo filme que se vale de found footage, da inserção em seu discurso de material audiovisual alheio, é um

found footage film – na verdade, apenas um conjunto de filmes que obedecem a critérios bastante específicos pode ser propriamente denominado found footage films. E, ainda assim, há found

footage films documentais e ficcionais, de curta e longa metragem, feitos para exibição em

galerias, em salas de cinema e, atualmente, também apenas para circulação na internet.

O uso narrativo da imagem de arquivo ou de material audiovisual alheio em filmes de ficção, por exemplo, dificilmente é levado em consideração – ou sequer mencionado – em estudos sobre found footage, mas tem se tornado cada vez mais recorrente no cinema contemporâneo. A despeito de não ser usualmente associado ao conceito geral de found footage, é um uso que se fez presente também desde muito cedo na história do audiovisual e que oferece exemplos ilustres de sua aplicação fora dos parâmetros tradicionais em que ocorre, comumente associada ao cinema documental, ao cinema de vanguarda e, hoje, ao remix digital. Dentre os exemplos históricos de filmes de ficção que fazem uso de imagens produzidas em outro contexto, podemos citar Cidadão Kane, de Orson Welles, com seu famoso prólogo em formato de cinejornal (News on the march), compilado a partir de fontes diversas, e Sweet Movie, de Dusan Makavejev, com sua contraposição radical da anarquia libertária a imagens de arquivo do horror dos regimes totalitários.

recorrer a found footage ou material de arquivo apenas para incluir imagens de valor documental em seus discursos. Quase sempre, as imagens de um filme de ficção alheias ao seu contexto de criação provém de cenas documentais, telejornalísticas, institucionais, científicas. Representam, acima de tudo, um recurso para que o cinema de ficção “converse” com o passado por meio do acervo audiovisual. Isso pode ser feito tanto para inserir a História na trama do filme, com a imagem de arquivo valendo como o que não é particular daqueles personagens, como ilustração da “trama do mundo”, ou para, em sentido contrário, inserir na História os personagens da ficção, como ocorre em Zelig, de Woody Allen, e Forrest Gump – O contador de histórias, de Robert

Zemeckis, por exemplo – nos quais essa inserção é efetivamente concretizada pela intervenção sobre imagens de arquivo históricas.

O espelho é um bom exemplo do emprego do found footage no filme de ficção, no qual as

imagens de arquivo usadas por Andrey Tarkovsky permitem que o filme seja memorialista sem ser personalista, ainda que a trama seja de caráter profundamente pessoal. Imagens de arquivo representam, no filme, uma espécie de memória coletiva, em contraponto à memória do narrador- personagem, representada pelas imagens perfeitamente construídas pelo diretor. Se o que “ele viu” da vida se expressa em seus próprios termos, pelas imagens fabricadas por ele próprio segundo sua visualidade particular, o que os outros – ou “o mundo” – viram durante seu período de vida ele prefere expressar pelas imagens captadas por outros, por imagens “autênticas” da História.

Não por acaso, o uso de found footage no cinema de ficção tende a se fazer mais presente em obras de ambientação dita “de época,” em dramas históricos ou biográficos. O filme Quando

o strip-tease começou (The night they raided Minsky’s), de William Friedkin, por exemplo,

estabelece sua contextualização histórica, apresenta a época em que a trama se situa, apenas por meio de uma montagem de cenas documentais do início do século XX apresentada como prólogo. Nesse sentido, são inúmeros os casos de obras de ficção histórica ambientadas no século XX que recorrem a imagens de arquivo em algum momento da narrativa. Mas nenhum foi capaz de promover uma integração tão profunda e desconcertante entre o material documental e o filmado, nem tão essencial à estrutura de sua narrativa, quanto Overlord, filme de Stuart Cooper sobre a

experiência de um soldado inglês na Segunda Guerra Mundial que combina imagens de arquivo à filmagem original, captada com película e equipamento autênticos da época, para aumentar a

sensação de realismo e realmente integrar seu personagem às cenas históricas do desembarque das tropas aliadas na Normandia.

Nos últimos anos, essa prática tem sido utilizada com intensidade e frequência ate então inéditas. O filme chileno NO, de Pablo Larraín, por exemplo, foi todo rodado em antigas câmera de vídeo U-Matic para permitir a total integração e indistinção entre cenas criadas para o próprio filme e imagens apropriadas da campanha televisiva do plebiscito realizado pelo general Pinochet. Boa parte de suas imagens são “de arquivo” e essa estratégia representa justamente o que filme apresenta de mais notório enquanto recurso de linguagem. Hannah Arendt, de Margarethe Von Trotta, recente cinebiografia da filósofa alemã, também faz com que as imagens reais do julgamento de Eichmann interajam com as imagens filmadas: os personagens assistem ao julgamento, mas o contraplano de seu olhar é sempre dado por imagens documentais. Em contrapartida, em Vincere, o diretor Marco Bellocchio substitui o personagem Mussolini interpretado por um ator pelo uso exclusivo de imagens de arquivo do tirano no momento da narrativa em que ele ascende ao poder. Aqui, o uso da imagem de arquivo não busca promover a integração ao material filmado, pelo contrário: estabelece dois ambientes distintos de narrativa e significado, o plano da História e o da história.

Ainda no campo do cinema biográfico, mas não necessariamente histórico, há uma tendência que tem se acentuado em anos recentes, certamente como reflexo do número crescente de filmes biográficos ou “baseados em fatos reais”. Se o uso de imagens de arquivo sempre foi comum para ressaltar o aspecto histórico de obras de ficção, virou uma espécie de atestado de autenticidade para filmes biográficos, em que têm se tornado frequente a inclusão, quase sempre como take final, de uma cena de arquivo, preferencialmente de home movie, das pessoas retratadas no filme, tal com ocorre em Ray, de Taylor Hackford, 127 horas, de Danny Boyle, e O

vencedor, de David O. Russell. No cinema brasileiro atual, esse recurso é utilizado, por exemplo,

em Gonzaga, de pai para filho, de Breno Silveira, em que a caracterização impressionante dos atores é “comentada” em momentos pontuais, nos quais imagens dos artistas reais são integradas ao fluxo narrativo do filme, até que os atores deixem-se substituir, justamente no final, pelas imagens autênticas da apresentação musical que reuniu Gonzaga pai e filho no palco para cantarem juntos pela primeira vez.

documental: pode também recorrer ao próprio acervo de imagens do cinema de ficção para extrair dali cenas específicas que dialoguem com sua narrativa. É o caso, por exemplo, de O

Espírito da Colmeia, de Victor Erice, que se apropria de uma cena icônica do Frankenstein de

James Whale para apresentá-la como metáfora para o subtexto da trama. Os filmes de ficção podem, inclusive, pautar-se nessa apropriação de outras imagens da ficção e até mesmo se valerem apenas – ou essencialmente delas – para constituir seu discurso, apresentando-se como exemplos de autênticos found footage films no cinema de ficção. O caso mais notório é o de

What’s up, Tiger Lily?, primeira direção de Woody Allen, no qual um filme japonês de

espionagem é submetido a reedição e overdub para efeitos cômicos – sem que haja qualquer cena filmada originalmente para a obra, com exceção de um prólogo. É o caso também, ainda que não de uso exclusivo de found footage para sua criação, de Cliente morto não paga, de Rob Reiner, no qual a inclusão de cenas extraídas de filmes noir clássicos permite a Barbra Stanywick e James Cagney, e inclusive a intérpretes já falecidos quando da realização do filme, como Humphery Bogart, Joan Crawford e Charles Laughton – em “papeis” que não existem mais do que como a reunião das múltiplas personas encarnadas por esse atores nos filmes daquele gênero – contracenar com o ator Steve Martin, filmado em preto e branco, e também em figurinos e cenários que permitam a montagem com aquelas cenas sampleadas em contraplanos “forjados” por Reiner.

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