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71 FÜRSTENBERG, 2008 72 CRUZ, 2008.

3.8. Found footage e o machinima

O machinima, termo cunhado para levar à ideia – imprecisa – de um cinema criado por máquinas, quando tomado em sua acepção específica, coloca-se por princípio fora das considerações desta pesquisa, uma vez que designa uma atividade cultural de referenciais completamente distantes e distintos do cinema e das tradições aqui abordadas – o uso da palavra

footage em si já é bastante inapropriado no caso, conforme apontado no subcapítulo anterior. Em

todo caso, também tem sido apontado como uma forma de criação audiovisual baseada em apropriação e remix, motivo que torna necessárias algumas observações.

Essa produção audiovisual – já que produz de fato, diariamente, inúmeros arquivos digitais de imagem e som que são assistidos por alguém – é pautada em found technology,83 não

em found footage; é uma categoria da programação de sistemas e da tecnologia de games, não da produção de imagens da mídia – ou para a mídia. Lida com a apropriação de um conjunto extremamente limitado de elementos – cenários, cores, personagens, estruturas – e de uma linguagem de programação que permita a recombinação de seus elementos. Acima de tudo, é um jogo cujas ferramentas de interação são manipuladas ou apropriadas – e os jogos se distinguem das narrativas, ainda que tenham pontos em comum. Trabalha com a apropriação de outra matéria, que não é a filmagem: é uma linguagem de computador que permite ultrapassar as condições normais de interação com determinado programa, que se torna mais aberto, passa a oferecer mais possibilidades de inserção e condução na interface. Nesse ponto, o machinima é uma forma de apropriação, e até mesmo uma forma de remix, análoga ao remix de programas de computador, mas o que ele produz não é uma obra audiovisual de significado autônomo, e sim apenas um “acréscimo” a uma experiência de interação com um determinado produto da indústria do entretenimento – um jogo. Nesse sentido, cinema e machinima não se misturam. Um esta na esfera dos games, outro no das narrativas audiovisuais.

Por outro lado, quando trabalha de fato com a filmagem, quando é a apropriação não de uma linguagem de programação, um ato de “quebra” de um código para criar novas possibilidade de inserção em uma interface virtual, mas sim uma tomada de imagens de um jogo, captadas de uma tela para posterior recombinação em um narrativa, o procedimento é, de fato,

found footage, em tudo semelhante aos usos e estudos apresentados até aqui, mas já não é mais

machinima, porque já não é mais uma criação na qual a máquina tome parte de fato – não mais do que o aparelho de TV toma parte no processo de criação de um vídeo artista que grave transmissões para posterior montagem. Aqueles vídeos que circulam na internet sob o nome

machinima propriamente aplicado, cuja narrativa se produz, de fato, com máquinas, pela

interação de um usuário com um ambiente virtual gerado e comandado por um programa, e não no plano da montagem de sua imagens, são os únicos que podem ser tomados como machinimas em sentido estrito. Uma boa maneira de perceber isso é comparar a audiência dos machinima que

são machinima com os que não são: os mais vistos são sempre aqueles de jogos muito populares

e vendáveis, mas não necessariamente os que oferecem maior variedade – narrativa, de personagens.

O machinima que de fato é machinima aquele que se manifesta, ainda hoje como uma “cultura de replay de games e screen capture”84 tem por forma de apresentação e por conteúdo

típicos uma seleção de “melhores jogadas” ou momentos particularmente inusitados ou cômicos de interação com uma interface eletrônica virtual. Nesse sentido o machinema é uma forma de registro e compartilhamento de uma experiência subjetiva em um ambiente virtual, mas não uma experiência audiovisual autônoma, como é a de assistir a um filme, ou mesmo a um comercial de televisão. Justamente porque os referencias que se aplicam a suas imagens e situações são estabelecidos com base nos códigos do jogo, e não nos códigos da narrativa audiovisual: não em planos, decupagem, montagem, mas sim em um percurso de ponto de vista e parâmetros limitados. Essa forma típica de mahcinina se apresenta – a partir do momento em que o espectador dá “play” no vídeo no YouTube – como a reapresentação de uma situação em que um ser humano interage com uma máquina determinada, em um jogo determinado, geralmente sob um discurso verbal produzido pelo jogador, que passa a ocupar a faixa de áudio (overdubbing). Na maior parte das vezes, e particularmente em seus casos mais populares e de maior circulação, resume-se à gravação de uma partida, no máximo de uma interação mais “livre” de um usuário com o ambiente virtual de um jogo eletrônico especifico, que é comentada ou complementada pelo áudio, seja com música, seja com a narração desse usuário. Em sua manifestação típica, portanto, o machinima oferece um ponto de vista único, centralizado e imutável – o do jogador – e um determinado cenário de parâmetros rigorosamente limitados – o de um jogo específico.

Apresenta, pois, “cenas de jogo”. Essas imagens não permitem outra leitura: o espectador sabe que está vendo imagens de alguém interagindo com um programa eletrônico, e não a imagens que se propõem à construção de uma narrativa.

Outro tipo de machimina, aquele que é assim impropriamente qualificado, é feito com imagens que são apropriadas de um videogame, mas não necessariamente da “tela de jogo”, e particularmente não de uma “jogada”, e sim de “cenas” extraídas de jogos, que são, da fato, momentos de “não jogadas” – daquilo que nos games funciona precisamente como interlúdios e apresentações, intervalos da partida. Nesse caso, essa apropriação tecnológica do machinima pode se configurar como forma de produção midiática, justamente porque há filmagem. Nesse caso, o autor é quem “grava” é não quem “joga”. Não provém da máquina os eixos centrais da comunicação, ou seja, a narrativa “do jogo” é descartada por princípio. Nesses casos, tomando-se a imagem da tela, e não os códigos do programa, como material apropriado e montado, o

machinema estabelece uma narrativa que tem variedade de pontos de vista e situações, com um

roteiro que não se estabelece apenas a partir de um conjunto de possibilidades predeterminado. Assim, a representação escapa ao plano daquela interface fechada e volta a ser uma imagem da tela da TV – uma cena produzida pela sobreposição de um roteiro e uma montagem a cenas apropriadas de um ou mais jogos eletrônicos. A perspectiva não é mais aquela limitada, destinada ao usuário de uma interface específica, mas sim a mesma de um espectador diante das múltiplas possibilidades de uma tela, onde imagens daquela interface podem ser modificadas a posteriori para produzir uma narrativa, não pela interação com o código do jogo, e sim pela apropriação das manifestações visuais dessa interação – pela gravação de suas imagens.

Aquele machinima propriamente dito, que pode ser designado paradigmaticamente pela expressão filme de Doom – mas poderia ser também filme de Quake, ou filme de Halo, os jogos tidos como exemplos inaugurais dessa forma de produção de “narrativas” pelo jogador no seu interior –, produz no máximo um acréscimo à experiência de jogá-lo. Se a imagem da mídia é autorreferente e a do found footage, a imagem apropriada da mídia, é ainda mais autorreferente, intrinsecamente critica, metacrítica e política, as imagens e sons do videogame representam o cúmulo da autorreferência. Não apenas toda imagem de game chama atenção para o fato de que é uma imagem de game – e vai chamar inevitavelmente ainda por muitas décadas, se não eternamente –, como chama a atenção também para o fato de que é uma imagem de um jogo, de

uma interface especifica. A imagem do Doom não se mistura à do Quake, cada uma é feita para um regime determinado de códigos e um cenário controlado de possibilidades. Se todos os produtos audiovisuais de um determinado gênero tivessem a mesma aparência, o mesmo conjunto de personagens e cenários, dificilmente alguém seria capaz de selecionar ao que assistir. As qualidades discursivas de um filme não podem ser limitadas por sua coerência em relação a um cenário virtual pré-determinado. Nesse sentido, os jogadores de Myst podem realmente se maravilhar com a revelação ou criação de um novo cenário, com o surgimento de um personagem, com a inversão dos valores esperados para aquela configuração. Mas quem não sabe do que se trata aquela interface e como ela se configura em sua normalidade, simplesmente “não entende”. Os criadores e consumidores desses machinimas que são machinimas estão experimentando e trocando experiências sobre um videogame, não sobre um produto audiovisual autônomo e inserido no contexto geral da mídia de imagens e sons – referenciadas, também elas, em seus próprios códigos, mas que são partilhados por um conjunto muito mais universal de indivíduos, como os que têm acesso a TV, os que têm internet, os que vão ao teatro, os que leem jornal, etc.

Ou seja, o problema do machinima é o seu referencial imediato e inescapável: a interface em que se produziu. Em outras palavras, o melhor filme de Doom está sempre preso a essa referência, nunca pode ser um filme “em si”, seu discurso não significa coisa alguma para quem não a compartilha, para quem não é capaz de diferenciar em que momentos a interação com a interface está se dando de acordo com os parâmetros esperados e em que momento escapa a eles. O machinima feito para circulação e consumo na esfera da experiência humana delimitada pelos games é sempre de alcance restrito e seu significado dificilmente extrapola o próprio contexto em direção referenciais mais amplos.

Isso se reflete de maneira bastante ilustrativa na ocorrência absurdamente frequente da palavra “jogo” na descrição do plano de significados de um machinima, mesmo daqueles casos atípicos que propõem cenas e narrativas em vez de “partidas” ou interações limitadas ao ponto de vista do usuário. É o que se pode constatar nos exemplos seguintes, extraídos de parágrafos distintos de uma mesma e única página de texto crítico, em que são descritos vários machinimas distintos: “Piadas internas de cada jogo levadas ao ‘mundo exterior’ como machinima, ainda hoje evidenciam a criatividade e a engenhosidade do gamer, um elemento essencial da cultura in-

game.”85 Como evidência dessa criatividade, é descrito em seguida um machinima que coloca

personagens de determinado jogo em um cenário de paródia de programas de televisão ao estilo

Quem quer ser um milionário? A partir dessa informação, imagina-se que quem assistir ao

resultado daquele machinima sem nenhuma referência do universo virtual de que se apropria, portanto, poderá compreender seu sentido – afinal, supostamente terá diante de si não uma situação que se refere ao mundo do jogo, e sim uma simulação de realidade em que personagens interagem em ambiente cujos signos são reconhecíveis. Porém, explicam os autores que naquele contexto “as personagens agem como versões caricatas do jogo original.”86 O parágrafo seguinte

é ainda mais promissor ao afirmar a possibilidade de se “fazer machinima com humor sem excluir o espectador que desconhece o jogo,”87 mas já em seu terceiro exemplo evidencia que o

discurso novamente não se dirige a espectadores, mas sim a jogadores: “os desenvolvedores buscam introduzir aos potenciais novos jogadores os personagens, enfatizando ações e comportamentos [...] e pistas sobre o passado de cada um.”88 Ou seja: se o machinima se dirige a

uma plateia mais ampla é apenas, ainda, tomando-a como formada por jogadores em potencial. E seguem os autores ainda: “tais escolhas reforçam o humor mórbido que permeia o jogo.”89 E já

no exemplo seguinte de um machinima disposto a franquear o acesso a seu significado a quem não esteja familiarizado com o contexto do jogo, incorrem novamente no mesmo engano: “não é raro encontrar paródias que congregam personagens de diversos jogos interagindo em um contexto inesperado.”90 Mas o contexto só pode ser entendido como inesperado por alguém que

tenha tido acesso ao contexto original do jogo! Logo, mesmo os machinimas mais “inclusivos” seguem ensimesmados em referências ao contexto original daquele jogo do qual aquelas imagens foram retiradas. Aparentemente, não há apropriação efetiva no machinema típico, porque suas imagens nunca “saem”, de fato, do jogo, nunca chegam a ser tomadas e deslocadas de contexto. Quando finalmente apresentam um exemplo em que esse efeito seria plausível, descrevendo um

machinima que dialoga com códigos exteriores ao universo dos games, reencenando um trailer de

filme de Hollywood apenas com imagens de um jogo substituindo atores e cenários do filme, os próprios autores descartam sua eficácia: “em nossa avaliação, esse exemplo se apresenta mais

85 HANNS, NAKAMURA e ABE, 2011, p. 56. 86 Ibid., p. 56.

87 Ibid., p. 56. 88 Ibid., p. 56.

89 HANNS, NAKAMURA e ABE, 2011, p. 56. 90 Ibid., p. 56.

como uma experimentação técnica do que com uma exploração de linguagem.”91

Assim, mesmo uma montagem de imagens e sons de videogames, aquele machinima impropriamente denominado que pode se configurar como uma narrativa verdadeiramente autônoma, encontra dificuldades aparentemente insuperáveis para desenvolver personagens e situações que estabeleçam como espaço da narrativa não um cenário de um jogo, mas sim o “mundo real.” Em todo caso, sabe-se que essa abordagem atípica de filmagem da tela e redublagem de jogos já logrou produzir alguns poucos exemplos de apropriação criativa, com roteiros fundamentados em personagens e situações identificáveis, no que sustentam a apreciação de tais machinimas por um público leigo. Aqui, no campo do machinima que não é machinima, o problema para sua consideração critica não reside mais em sua natureza, mas somente no atual estágio e na qualidade da sua produção. Trata-se de um gênero ainda incipiente, cujo desafio reside em sua aceitação como cinema, nos círculos do cinema. Alguns desses já ultrapassaram a barreira, tornaram-se autônomos, compartilhados por muitos, mas esses exemplos de curtas de

animação de montagem de videogame que tenham alguma pretensão além da demonstração de

sua própria perícia na manipulação dos conjuntos limitados com que trabalham continuam sendo os mesmo já mencionados como os mais populares e criativos usos da técnica há dez anos, quando ela começou a florescer: Male restroom etiquette, criado a partir dos gráficos do jogo Sim

life, e a série Red vs. Blue: the bloody gulch chronicles, que coloca diálogos cotidianos e

pseudofilosóficos “na boca” de soldados futuristas extraídos do jogo Halo – que chegou até mesmo a ser comercializado no formato de DVD. Nesse sentido, eles podem ser tomados como exemplos de uma prática de apropriação para criação de narrativas audiovisuais que pode se consolidar e se tornar autônoma em relação aos videogames – mas é justamente nesse ponto que eles deixam de ser machinimas e passam as ser assistidos, estudados e criticados apenas como casos de uma montagem de sequências animadas que foram extraídas de um jogo, mas que poderiam ter vindo de desenhos animados, da televisão ou de recortes de revistas. São apenas mais um caso particular da criação com base em apropriação e montagem, portanto, uma produção de animação do mesmo tipo da que ocorre, por exemplo, no já mencionado curta- metragem Film noir, de Osbert Parker, ou em Yours truly, do mesmo autor, que procedem à colagem de “recortes” digitais de cenas do cinema clássico hollywoodiano para construir novas

narrativas completamente autônomas.

3.9. Found footage no filme-ensaio: Resnais e Marker, Godard e sua influência no Brasil

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