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São Paulo, sinfonia e cacofonia: historiografia metacrítica do cinema

5. SÃO PAULO, SINFONIA E CACOFONIA: HISTORIOGRAFIA POÉTICA DO CINEMA

5.5. São Paulo, sinfonia e cacofonia: historiografia metacrítica do cinema

Apresentou-se até aqui, em linhas gerais, o percurso formal e temático desenvolvido por Jean-Claude Bernardet em São Paulo, sinfonia e cacofonia – ou uma das leituras possíveis desse percurso, já que o formato ensaístico do filme o abre justamente à multiplicidade de olhares que seu filme-irmão, São Paulo cinemacidade, sonega ao espectador. Tudo isso, entretanto, ainda no plano de um discurso articulado pelo filme sobre a realidade. Um discurso sociológico e antropológico, pode-se dizer. Um discurso sobre a cidade, seus habitantes, seu processo de urbanização. Mas jamais pode ser perdido de vista o fato de que o filme articula também um discurso sobre essa cidade – e essas questões – tal como vistas pelo cinema feito ali. Como detalha Maria Dora Mourão:

Não se trata de reconstruir uma São Paulo através do olhar de outros cineastas, mas de procurar nos filmes elementos que, organizados a partir de uma montagem, ofereçam ao espectador um novo olhar sobre a cidade imaginaria recriada pelo cinema.144

Não se pode ignorar o fato de que Bernardet não coloca em cena a cidade e seus habitantes em si mesmos. As imagens de seu filme carregam, em todos os momentos, um comentário autorreflexivo sobre sua natureza e apresentação, como é típico de todas as imagens de found footage. Um tipo de imagem que, para retomar as palavras de William Wees, “invite us to recognize it as found footage, as recycled images, and due to that self-referentiality, […] encourage a more analytical reading […] than the footage originally received.”145 O mero fato de

terem sido incluídas nessa compilação, nesse remix realizado por Bernardet, torna essas imagens recicladas do nosso cinema sujeitas a uma nova leitura pelo espectador, uma leitura mais crítica. O discurso do travesti Lola, portanto, assim como os questionamentos do imigrante de Asa

Branca, têm no filme de Bernardet um valor diverso daquele que ostentavam em seus filmes

originais. Não maior ou melhor, mas apenas mais propenso a uma releitura crítica. Ao

144 MOURÃO apud NAGIB e ROSA, 2002, p.111. 145 WEES, 1993, p. 11.

reapresentar essas imagens ao espectador, portanto, Bernardet permite que elas sejam vistas ou revistas criticamente. O próprio olhar desafiante dos personagens para a câmera pode ser encarado como um convite não apenas ao contato social e à solidariedade, mas à contemplação de nosso próprio passado representado pelas imagens e sons do cinema. Como afirma o próprio realizador: “São Paulo, sinfonia e cacofonia não é um filme sobre São Paulo, é um filme em torno do imaginário cinematográfico de São Paulo.”146

É nesse sentido, portanto, que se afirma nessa pesquisa que o filme São Paulo, sinfonia e

cacofonia, ainda que indiretamente ou mesmo que não houvesse essa específica intenção por

parte de seu criador, apresenta necessariamente não só um discurso sobre a cidade e as pessoas de São Paulo, mas também sobre o cinema de São Paulo. Como diz Arlindo Machado, “o tema do filme de Bernardet é o modo como o cinema paulista interpretou a sua própria cidade.”147 Isso é

indissociável de sua apreciação pelos próprios métodos e procedimentos adotados para sua criação. Novamente comentando as similaridades e diferenças entre seu filme e o de Jean-Claude Bernardet, reconhece Aloysio Raulino:

[...] eu os acho parentes, mas ao mesmo tempo bastante diferentes, cada um com suas peculiaridades. Penso que o filme São Paulo Sinfonia e cacofonia é imbuído de um compromisso com o cinema, embrenhado e aprofundado no universo geral do cinema, já que são mais de 100 filmes utilizados e nenhuma imagem nova, ou seja, é uma compilação pura.148

A fala de Raulino deixa clara a implicação metalinguística do trabalho exclusivo com material apropriado e reutilizado. O mero fato de contar também com material captado especificamente para a composição de seu discurso já é suficiente para afastar São Paulo

cinemacidade do caráter necessariamente autorreferente identificado em São Paulo, sinfonia e cacofonia. Para que nele sejam mais dificilmente identificados elementos de um discurso

metacrítico e histórico sobre o cinema paulistano. Como aponta Marco Freitas em seu ensaio, centrado no caráter historiográfico de São Paulo, sinfonia e cacofonia, o filme de Bernardet se coaduna com sua posição enquanto historiador do cinema brasileiro, que trabalhou para uma revisão da forma como a cinematografia brasileira sempre foi encarada – do ponto de vista de seus ciclos e da valoração deles – pelos autores e críticos que se dedicaram a ela. Se Bernardet

146 BERNARDET apud MOURÃO, 2007, p. 16. 147 MACHADO, 2009, p. 32.

sugere em Cinema brasileiro: propostas para uma história a adoção de uma nova metodologia para a historiografia do cinema brasileiro, é provável que São Paulo, sinfonia e cacofonia seja uma expressão dessa nova metodologia em uma linguagem alegadamente mais apropriada para descrever seu objeto do que a linguagem escrita. Uma historiografia audiovisual que se expressa audiovisualmente e metacriticamente, “agregando a ressignificação de imagens – cujo resultado é improvável de ser expresso por outra forma de manifestação do pensamento – à tradição escrita.”149

É assim que São Paulo, sinfonia e cacofonia pode ser encarado também como um comentário crítico – e historiográfico – sobre a representação cinematográfica da cidade, por meio das recorrências e incongruências que destaca na seleção dos filmes e dos planos de que se apropria e na forma como os apresenta. Sob essa perspectiva, pode-se argumentar que não é necessariamente a visão de Bernardet que toma a cidade de São Paulo como opressiva e seus cidadãos como irrecuperáveis solitários: essa é a visão que emerge a partir do cinema feito aqui. Se há uma profusão de planos de movimento, de deslocamentos automobilísticos, de panoramas de edifícios, esses podem ser não necessariamente planos pelos quais Bernardet tem alguma preferência, mas clichês da representação da cidade dos quais o cinema feito aqui não soube se desvencilhar. E assim por diante: a multiplicidade de “centros”, a noite como espaço dos marginais, da violência e da boemia, o imigrante inocente, o isolamento dos apartamentos... Tudo isso pode agora ser destacado não como parte de um discurso de Bernardet sobre São Paulo, mas como parte do discurso do cinema brasileiro sobre a cidade.

É como se Bernardet [...] decidisse fazer um ensaio sobre a maneira como a cidade de São Paulo foi interpretada pelos seus cineastas, mas em lugar de promover um ensaio escrito, preferisse utilizar como metalinguagem a mesma linguagem do seu objeto: o cinema. Temos então aqui um ensaio sobre o cinema construído em forma de cinema, um ensaio verdadeiramente audiovisual, sem recurso a nenhum comentário verbal. [...] São Paulo, sinfonia e cacofonia é uma eloquente demonstração de que se pode construir um ensaio sobre o cinema, usando o próprio cinema como suporte e linguagem.150

Esse discurso metacrítico veiculado pelo filme, vale dizer, não se estabelece tanto a partir da relação do autor com as obras, mas de sua comunicação dessas obras ao público. É, portanto,

149 FREITAS, 2012.

como defendido no capítulo anterior, resultado de um processo de mediação, que só se completa a partir do efeito gerado no receptor. É nesse sentido que São Paulo, sinfonia e cacofonia funciona perfeitamente como um instrumento de historiografia, crítica e mediação, ao “rememorar” para o espectador a trajetória de um cinema paulistano, ou de um cinema brasileiro sobre São Paulo. Um cinema que, como sua narrativa-argumentação demonstra, está pleno de exemplos de trabalhos de grande plasticidade, comprovada pela seleção de determinados planos de impacto, e também de conteúdo relevante, uma vez que soube debruçar-se sobre algumas questões cruciais da vida na metrópole. Na “curadoria” das cenas que vão compor sua montagem cine-historiográfica de cenas de São Paulo no cinema, Bernardet acaba inevitavelmente privilegiando algumas realizações. São Paulo Sociedade Anônima é certamente a obra de onde a maior a quantidade de trechos é extraída, indicando para o espectador que aquele clássico de Luiz Sergio Person pode muito bem ser a representação cinematográfica definitiva da cidade. Mas também O Bandido da Luz Vermelha, A hora da estrela, Gamal – o delírio do sexo, Na senda do

crime, Simão, o caolho, Cidade oculta, Anjos da noite, e ainda outros tantos, aparecem em

diversas sequências do filme – e é difícil negar que estejam entre os exemplos mais significativos da presença da cidade de São Paulo no cinema brasileiro. O efeito que o filme pode ter sobre o espectador, portanto, não se limita a levá-lo a uma reflexão sobre a cidade e a urbanização, mas pode também funcionar como uma apresentação a um passado cinematográfico ao qual ele pode não ter tido acesso. E, o que é ainda melhor, oferecendo ao espectador a chance de estabelecer sua própria leitura crítica daquele acervo. Se Chris Marker ambicionava, com seu Le fond de l’air est rouge, reapresentar a História aos seus verdadeiros autores por meio de uma montagem de

imagens captadas pelo povo – mas às quais, vale lembrar, ele ainda acresce um discurso verbal, o seu próprio comentário sobre as imagens e sobre a História –, então é justo reconhecer que São

Paulo, sinfonia e cacofonia realiza em seus termos uma ambição parecida: reapresenta aos

paulistanos São Paulo e o cinema sobre São Paulo, por meio de uma montagem de imagens captadas por cineastas que a visitaram e filmaram, e exclusivamente por meio dessa visão do outro sobre a cidade. Todo o valor estético, poético e narrativo do filme de Bernardet é apenas o acréscimo de seu brilhantismo a uma obra cuja função pedagógica é ainda maior.

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