• Nenhum resultado encontrado

Fragmento da Carta de Província de Minas Geraes, Henrique Gerber, 1862

Fonte: Arquivo Nacional – Rio de Janeiro (apud FERNANDES, 2017, p.24, legenda do autor).

Essas decisões de caráter temporário fomentarão os interesses divergentes e discordâncias em relação aos decretos e decisões tomadas, como podemos observar na completa insatisfação do governo mineiro no que diz respeito à decisão de janeiro de 1863:

E eis ahi como de dous nucleos de população mineira e territorio mineiro fez a conquista espirito santense duas subdelegacias suas com a mão forte do governo imperial. Tão clamorosa extorsão não passou despercebida, antes suscitou os mais vivos protestos da parte de Minas [...] A posse do Espirito Santo nesse territorio resulta de um acto provisorio, emanado de um poder que não tinha competencia para traçar limites entre as provincias [...]” (MEMORIA HISTORICA..., 1904, p.30).

Em outra carta, retirada do relatório do conselheiro mineiro João Chrispiniano Sores39, de 16 de outubro de 1863, podemos verificar o tom de revolta por parte das autoridades mineiras com o que foi decretado, além de ilustrar com clareza o caráter provisório da decisão. Fica evidenciado no documento que as decisões tomadas não seriam respeitadas e as reivindicações permaneceriam:

Esta fixação provisória (a do decreto n. 3043, de 10 janeiro de 1863), tirou a província de Minas uma porção de territorio, que abrange uma area de quatro leguas mais ou menos em sua largura e com numerosa população que todos os dias se augmenta, porque novos emigrantes ahi se estabelecem atrahidos pela fertilidade do solo.” (MEMORIA HISTORICA..., 1904, p.32).

Novas demandas continuaram a surgir na mesma área, três anos após o governo de Minas Gerais emancipar, às margens direitas do rio José Pedro, o município de Manhuassú40. Em 1879, a agitação tomou conta da região quando um vigário da paróquia mineira de São Lourenço “[…] ambicionou aumentar sua paróquia à custa do Espírito Santo. [...] um escrivão de paz de São Lourenço de Manhuassú achou bom aviso seguir-lhe as pegadas” (NOVAES, 1946, p. 5).

As desavenças e acusações persistiram. Em 1890, as autoridades mineiras começaram a questionar novas invasões que estariam sendo cometidas pelo estado do Espírito Santo. Essas invasões, destaca o texto, “[...] ocorrem felizmente por conta e com a responsabilidade de auctoridade subalterna do E. Santo e foram promptamente advertidas e corrigidas [...]” (MEMORIA HISTORICA..., 1904, p.34).

O maior problema encontrado na região e que era também o responsável principal por tais ocorrências, era a questão da cobrança de impostos. Os dois lados, em oposição aberta, passaram a conviver com divergências entre os antagônicos direitos e tutelas sobre a posse jurisdicional da região, tendo a população local, segundo Pontes (2007, p.73), “[...] começado a conviver diuturnamente com a duplicidade de fiscais de mata, fiscais de cobrança de impostos, policiais, juízes de paz, dentre outros”. Podemos aferir tal aspecto no texto abaixo:

Effectivamente, havendo o administrador da recebedoria mineira da Natividade reclamado ao chefe da Policia de Victoria contra um individuo que, inculcando-se subdelegado, impedia a cobrança de impostos mineiros, respondeu aquella auctoridade nos seguintes termos, que patenteam a natureza da invasão e o inconcusso direito de Minas ao territorio [...] Nessa communicação referia o exactor

39 Jurista e político brasileiro. Foi presidente da província de Minas Gerais entre junho de 1863 e abril de 1864. 40 Em alguns momentos iremos notar a nomenclatura Manhuaçú. Depende de como é grafado nos documentos, o que vale salientar que se tratará da mesma região/município. Atualmente, Manhuaçu é um município brasileiro localizado no Estado de Minas Gerais. Foi criado pela lei mineira n. 2.407 de 5 de novembro de 1877. Pela lei n.2.557, em 1881, a sede do município foi transferida para a povoação de São Lourenço.

mineiro que Marcellino da Costa Barros, residente em S. Manoel de Motum, dizendo-se subdelegado de policia do E. Santo, opunha-se á cobrança do imposto mineiro [...] o mesmo administrador da Natividade reiterava ao governo de Minas os seus protestos contra a invasão de auctoridades espirito-santenses naquelle territorio mineiro, numa área que calculava cerca de 240 kilometros á margem direita do rio José Pedro; denunciava ainda a falta de pagamento de imposto mineiro auctorizado por salvo conducto de auctoridades e exactores fiscaes do vizinho Estado.” (MEMORIA HISTORICA..., 1904, p.34-35).

A discrepância em relação à cobrança dos impostos não era uma situação circunscrita aos lindes entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais, mas um quadro que atingia todos os outros estados litigantes no Brasil. José Câmara (apud FERNANDES, 2017, p.57) relata em sua análise o problema de limites entre os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte que, em sua percepção, a conversão das antigas províncias em estados, a autonomia redigida ao federalismo e a amplitude na questão dos impostos, fizeram suscitar inúmeras disputas interestaduais.

Essa questão tributária é perceptível no seguinte relato da província mineira,

Na cobrança dos direitos e impostos estaduaes, em geral, todos pagam ao Thesouro de Minas, excepção feita do capitão Sebastião Gonçalves do Nascimento, que mora no municipio de Affonso Claudio, e, negociante de café, compra annualmente milhares de kilogramas do produzido no ribeirão Capim e suas adjacencias, negando-se obstinadamente a pagar os respectivos direitos ao Thesouro do Estado de Minas, porque, affirma elle, o governo do Espirito Santo assim lhe aconselhara; por ser o territorio pertencente ao mesmo Estado. Na cobrança de impostos municipaes, porém, há uma verdadeira anarchia; uns pagam a municipalidades do Estado visinho, outros á S. Lourenço de Manhuassú, isto é, ao Estado de Minas Gerais, e alguns não pagam nem às de um nem ás do outro Estado, allegando que assim procedem por não saberem a qual delles pertencem (MEMORIA HISTORICA..., 1904, p.60, grifo meu).

O alvorecer da República refletiu em toda estrutura político-administrativa das então províncias brasileiras e que, consequentemente, passaram atingir nas relações dos limites interestaduais. Em suma, na questão territorial, tais transformações produziram uma maior autonomia das províncias, que se transformam em estados, devido a descentralização dos podres político-administrativos (SILVA, 1986, p.35).

A constituição de 1891, ao impor o sistema federativo, pôs em pauta os limites dessa autonomia para as unidades federadas. Segundo Marta Zorzal e Silva (1986, p.35) o regime republicano “[...] assegurava a cada Estado o direito de contrair empréstimos no exterior, decretar impostos de exportação, reger-se por suas próprias constituições, ter corpos militares próprios, bem como códigos eleitorais e judiciários [...]”. Com isso, cada estado adquiriu maiores artifícios para imprimir ritmo e sentido ao desenvolvimento de suas regiões de domínio (SILVA, 1986, p.36).

Poucos trabalhos se dedicaram de uma forma incisiva ao período histórico aqui analisado, no que diz respeito aos conflitos limítrofes e fronteiriços. Para não desmerecermos os trabalhos até então publicados, faz jus a menção ao próprio Walace Tarcísio Pontes (2007), aqui citado em vários momentos. Pontes, em sua dissertação identifica, como também foi analisado até aqui, o registro, ao sul do rio Doce, dos primeiros conflitos lindeiros entre ES e MG. Os demais trabalhos, como o de Garcia (2015), Muramatsu (2015) e Pena (2016), não se propuseram, em seus objetivos, a adentrarem na problemática da disputa jurídica e institucional da questão de limites entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais.

A ideia quero apresentar é que os relatos de conflitos, violências e excessos praticados na fronteira entre os dois estados são oriundos já do final do século XIX e início do século XX. As disputas não surgiram na fronteira ao norte do rio Doce, mas sim decorrentes desses primeiros encontros ao sul, conforme pode ser aferido no fragmento que segue:

Alguns dos factos que com mais força actuam no animo do povo mineiro desta zona e deixam o seu espirito em duvida em relação a esta questão de limites, é ser o seu territorio occupado por auctoridades espirito-santenses; são as invasões da força armada que, de quando em vez, percorre a zona, sob pretexto de captura de criminosos; são os magistrados judiciarios praticando todos os actos civis e criminaes; são os espancamentos dos nossos vigias nas fronteiras, sem punição por parte do nosso governo; são as ameaças de morte ao juiz de direito da comarca de Manhuassú, e ao delegado de medição de terras neste districto, no cumprimento de seus deveres; e, sobretudo, é a falta de protesto dos governos passados do nosso Estado, que nenhuma importancia têm ligado aos factos [...] (MEMORIA HISTORICA..., 1904, p.60).

No que concerne ao âmbito nacional, segundo Fernandes (2017, p.58), “[...] o sistema federalista foi se adequando as necessidades políticas do período e, dentro dessas necessidades, estava a de resolver as questões de limites internos.” A Constituição Federal em vigor desde 24 de fevereiro de 1891, legislava de forma direta sobre as questões de limites interestaduais. No artigo 4º ressaltava que os estados poderiam “[...] incorporar-se entre si, subdividir-se, ou desmembrar-se, para se anexar a outros ou formar novos estados, mediante aquiescência das respectivas Assembleias Legislativas [...]”. Já no artigo 34, n.10, ao enumerar as atribuições de cada poder, evidenciava que “[...] competia privativamente ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre os limites dos Estados entre si [...]”; já em seu último artigo, excluía o poder executivo e judiciário nacional como meio de resolução, visando uma centralização do Congresso perante às necessidades de resolução das questões lindeiras (BRASIL, 1891).

Contudo, vale salientar e veremos na sequência deste trabalho, essa orientação centralizadora por parte do Congresso não foi realizada de forma satisfatória, já que o judiciário, por

exemplo, teve um papel de destaque como mediador e meio de solução para os problemas limítrofes, como é o caso específico do nosso objeto de estudo. Após buscarem soluções para a indefinição por meio dos decretos, ou seja, por meio de um acordo político direto, as negociações entre os dois estados, bem como as soluções levadas adiante ao longo do tempo foram, em grande medida, substituídas com arbitramento e ações do Supremo Tribunal Federal (STF).

Como salienta Fernandes (2017, p.73):

Essa substituição era feita a partir do momento em que o acordo direto não mais garantia o que se buscava na Constituinte ao colocarem o Congresso, ou seja, a resolução política como meio de dirimir os litígios. Quando o deputado Fellisbelo Freire defendeu o papel central do Congresso, ele pregou que somente essa instituição poderia por fim aos séculos de conflitos. Entretanto, os interesses políticos estaduais e a contínua negociação com o Executivo Nacional e entre as bancadas fez com que o Congresso em diversos momentos se retirasse do debate e dificultasse a resolução pelo meio político.

Na análise de Victor Nunes Leal (2012), a Constituição de 1891 rompeu com o sistema de relação direta entre quem detinha o poder local e o nacional. Os governadores passaram a obter uma gama de poder e a disputarem posições hegemônicas nos cargos em nível regional e federal, além das demandas em troca de apoio político nas eleições. Nesse sentido, as questões de limites e os possíveis acordos também se transformaram em fatores de troca e poder. Fernandes (2017), por exemplo, cita o próprio caso de Rui Barbosa41, intervindo e articulando na resolução de vários conflitos e questões limítrofes no Brasil.

A intranquilidade verificada ao sul do rio Doce em fins do século XIX mobilizou a criação de comissões mistas e ambos os estados, munidos de todas as possíveis documentações, passaram a interpretá-las cada qual ao seu interesse, com fins de justificar o domínio jurisdicional, conforme salientamos até aqui. Assim, afirma Cícero Moraes (1939, p.33):

Dez anos de bonança precederam a tempestade que veiu a culminar em 1914. Em 1892 surge novamente e com mais fôrça, cada vez mais complexa, a questão de limites, pois a zona fronteiriça ao sul do rio Doce, já não era mais a terra despovoada de 1800, mas uma região populosa, produtiva, de economia em franca prosperidade.

41 Ruy Barbosa (Ruy Barbosa de Oliveira), advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador, nasceu em Salvador, BA, em 5 de novembro de 1849, e faleceu em Petrópolis, RJ, em 10 de março de 1923. Membro fundador, escolheu Evaristo da Veiga como patrono da cadeira nº. 10 da Academia Brasileira de Letras. Um dos intelectuais mais brilhantes do seu tempo, foi um dos organizadores da República e coautor da constituição da Primeira República juntamente com Prudente de Moraes. Ruy Barbosa atuou na defesa do federalismo, do abolicionismo e na promoção dos direitos e garantias individuais. Primeiro ministro da Fazenda do regime instaurado em novembro de 1889, sua breve e discutida gestão foi marcada pelo encilhamento, grave crise econômica provocada pelo aumento indiscriminado da emissão de papel-moeda. Foi também deputado e senador.

A semente de 1709, frágil arbusto em 1800, árvore que sombreava a freguezia do Alegre em 1860, era agora árvore frondosa interceptando a luz da tranquilidade a uma área da ordem de quatro milhares de quilômetros quadrados.

Interessante é observarmos a própria linguagem utilizada nesse relato de Cícero Moraes (representante do governo espírito-santense). Usa de uma linguagem literária e até mesmo poética/metafórica para enfatizar os problemas ocorridos ao sul do rio Doce, e que uma possível negociação/tranquilidade difusa de uma boa relação entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais já não ocorria da mesma maneira. O próprio termo “frágil arbusto em 1800”, serve de referência ao Auto de Demarcação de 1800, que já não era mais eficaz e pouco servia de referência para as negociações e definições dos limites.

Os governos capixabas de Muniz Freire (1900-1904) e Henrique Coutinho (1904-1908) empenharam-se na tentativa de uma solução ao caso, firmando junto ao governo mineiro consecutivos convênios. Em 1903, o governo do Espírito Santo designou o deputado Bernardo Horta para negociar com o governo de Minas Gerais sobre a questão de limites, sendo designado pelo lado mineiro o sr. Antonio Augusto de Lima (MORAES, 1939, p.34). Desincumbiram-se da sua missão os dois representantes, lavrando a “Ata das deliberações dos representantes dos estados do Espírito Santo e Minas Gerais sobre as questões de limites respectivos”, em 27 de fevereiro de 1905. Na ocasião, foi apresentada a seguinte proposta:

Adotada a preliminar e respondidos os quesitos, os representantes, de comum acôrdo, propõem a seguinte linha divisória: pelo rio Preto, braço principal do Itabapoana, até a serra do Caparaó ou Chibata; daí pelo ribeirão José Pedro até sua embocadura no Manhuassú; daí pelo serrote divisor das águas dos ribeirões S. Manoel e Capim até a serra do Espigão e desta até o rio Doce, de acôrdo com o auto de 8 de Outubro de 1800. Também para que fique evitada qualquer questão futura de limites ao norte do rio Doce, resolvem, em virtude da cláusula primeira, propor que nessa zona seja a linha divisória a serra dos Aimorés, até o rio Mucurí (MORAES, 1939, p.34).

A preliminar referida seguiu-se:

Acordaram os representantes em que, para efetividade da solução que propõem aos respectivos governos, que se proceda a um exame topográfico por um engenheiro do Estado de Minas, afim de verificar a identidade entre a atual povoação do Príncipe, situada à margem direita do riacho José Pedro e a localidade que, com a mesma denominação, é designada nos roteiros e mapas, desde a abertura da estrada Rubim ou S.Pedro de Alcântra, em 1814 (MORAES, 1939, p.35).

Em oficio de 7 de agosto de 1905, foi apresentado pelo governo do Espírito Santo o esboço de projeto de lei a solução final do litígio:

Art.1º. – Os limites entre os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais são definitivamente fixados de acordo com a presente lei.

§ 2º. – A divisa a leste de Minas Gerais e a oeste do Espírito Santo corre pela serra Geral, desde a serra do Caparaó até o morro do Espigão, separando as vertentes orientais dos rios Itapemirim, Pardo e Guandú, das vertentes ocidentais do José Pedro e Manhuassú.

Art. 2º. – Fica aprovada a linha demarcada pelo decreto n. 3043, de 10 de Janeiro de 1863 (MORAES, 1939, p.35, ver mapa 3 e citação 38).