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A FRATERNIDADE A PARTIR DA REVOLUÇÃO FRANCESA: CAUSAS DA PRETERIÇÃO E A IMPORTÂNCIA DO SEU

CAPÍTULO 2 O PRINCÍPIO JURÍDICO DA FRATERNIDADE Abordar o tema fraternidade diante da questão do direito social

2.1 A FRATERNIDADE A PARTIR DA REVOLUÇÃO FRANCESA: CAUSAS DA PRETERIÇÃO E A IMPORTÂNCIA DO SEU

RESGATE RUMO À PÓS-MODERNIDADE

O ideário da fraternidade, que remonta de raízes cristãs, foi resgatado com grande expressão na Idade Moderna, durante a

Revolução Francesa, por embasar o propósito da união para a construção de um novo Estado. Pode-se afirmar que referida categoria inaugurou no âmbito político, vindo a constituir o célebre lema: “Liberdade, igualdade e fraternidade”.

[...] Esse lema, porém, não era oficial; viria a sê-lo somente na República revolucionária de 1848. Atravessa, em seguida, inúmeras vicissitudes históricas, ora sendo esquecido, ora tendo momentos de fulgor, até voltar a se impor no final do século, com a vitória dos republicanos em 1879. O regime de Vichy deixa-o de lado, substituindo-o pelo lema “Trabalho, família, pátria”; mas continua sendo a divisa dos resistentes. Encontra, finalmente, um lugar definitivo no art. 2º da Constituição de 27 de outubro de 1946.272

Em razão de influências da cultura cristã, a fraternidade se fez presente tanto com significado teológico, ou seja, a fraternidade em Cristo, quanto por amostras práticas como o ato de dar esmolas, por exemplo, em que pese tenha sido por vezes confundida com o vocábulo solidariedade a partir de uma base religiosa. Contudo, falar de referida categoria tendo como marco a Revolução Francesa se deve ao fato de

[...] adquirir uma dimensão política, pela sua aproximação e sua interação com os outros dois princípios que caracterizam as democracias atuais: a liberdade e a igualdade. Porque, de fato, até antes de 1789 fala-se de fraternidade sem a liberdade e a igualdade civis, políticas e sociais; ou fala-se de fraternidade em lugar delas. A trilogia revolucionária arranca a fraternidade do âmbito das interpretações - ainda que bem matizadas - da tradição e insere-a num contexto totalmente novo, ao lado da liberdade e da igualdade, compondo três princípios e ideais

272

BAGGIO, Antonio Maria. A redescoberta da fraternidade na época do “terceiro 1789”. In: BAGGIO, Antonio Maria (org.). O Princípio Esquecido 1. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2008, p. 7.

constitutivos de uma perspectiva política inédita.273

A fraternidade no contexto da Revolução Francesa é disposta em um cenário de desigualdade social, onde, dominada pelo regime de servidão, a sociedade se apresentava estratificada e hierarquizada e o monarca detinha o poder absoluto.

Mister registrar que referida revolução caracterizou-se pelos vieses políticos e expansionistas, pregando seus ideais por toda a Europa com o fim de extinguir os laços medievais para além da França. Na verdade, almejava muito mais do que a abolição do antigo governo, configurou verdadeira doutrina de libertação que partia do rompimento tanto com a filosofia quanto com a igreja que vigiam a época, conforme explica TOCQUEVILLE

[...] Uma das primeiras diligências da Revolução Francesa foi atacar a Igreja e entre as paixões que nasceram desta revolução a primeira a se acender e a última a se extinguir foi a paixão religiosa. [...] considera-se a filosofia do século dezoito como uma das causas principais da Revolução e é bem verdade que esta filosofia é profundamente irreligiosa. Contudo, nela é preciso notar duas partes ao mesmo tempo distintas e separáveis. Numa encontram-se todas as opiniões novas ou rejuvenescidas que se relacionam com as condições das sociedades e os princípios das leis civis e políticas, tais quais, por exemplo, a igualdade natural dos homens e a abolição de todos os privilégios de castas, classes ou profissões que é uma das consequências, a soberania do povo, a soberania do poder social, a uniformidade das regras... [...] Na outra parte de suas doutrinas, os filósofos do século dezoito agrediram com uma espécie de furor a Igreja; atacaram seu clero, sua hierarquia, suas instituições, seus dogmas e, para melhor derrubá-

273

BAGGIO, Antonio Maria. A redescoberta da fraternidade na época do “terceiro 1789”. In: BAGGIO, Antonio Maria (org.). O Princípio Esquecido 1. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2008, p. 8.

los, quiseram arrancar os próprios fundamentos do cristianismo.274

Explica-se que, ainda que a Igreja tenha sido um dos alvos da Revolução, o foco principal eram as questões de ordem política. No entanto, como a Igreja também possuía uma considerável força política, ocupava o lugar de maior privilégio na sociedade, nos quais o alto clero se caracterizava por ser um dos maiores proprietários de terras. Além disso, o ideário pregado pela Igreja à época consistia num confronto de ideologias em que o individualismo se contrapunha a uma percepção hierárquica e holística do mundo social, ou seja, não se tratava de disputas relativas à fé.

Referido individualismo se deve ao fato do caráter habitual das religiões na Idade Moderna conceberem, unicamente, o homem em relação a si e em relação à Deus, sem levar em consideração os outros, as leis, os costumes e as tradições.275

No que se refere à característica do expansionismo, destaca-se que a Revolução Francesa não ficou restrita à França, diferentemente do que se observa em outras revoluções que se encerram em suas próprias fronteiras. Aproximou e apartou indivíduos a despeito das leis, “[...] formando acima de todas as nacionalidades uma pátria intelectual comum da qual os homens de todas as nações podiam tornar-se cidadãos”.276

Referida revolução deu-se, dentre outros motivos, pela da crise da monarquia, do Iluminismo, da desintegração social e da separação das classes privilegiadas. Na verdade, no século XVIII houve a disseminação do ideário iluminista, que determinou a luta de várias nações contra os regimes monárquicos, bem como os contrários ao mecanismo de representação política.

A revolução cultural, decorrente de representantes do Iluminismo, procurava mobilizar o poder da razão a fim de promover reformas em uma sociedade firmada no conhecimento herdado da tradição medieval. Abarcando inúmeras tendências, propunha um conhecimento mais apurado da natureza com o objetivo de torná-la útil ao homem moderno e o intercâmbio intelectual contra a intolerância da Igreja e do Estado.

274

TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. 4. ed. Brasília: UNB, 1997, p. 54-55.

275

Idem, ibidem, p. 58. 276

Paralelo a tal remanejamento do cenário cultural e científico, crescia a crise estatal e os privilégios da nobreza e da burguesia. A lei continha muitas exceções para tais classes, o que resultou por destruir as bases sobre as quais os administradores deveriam trabalhar. Era urgente a efetivação de reformas fiscais, que acabaram não ocorrendo, tendo como consequência verdadeiro "caos total".277

Constata-se que o enfraquecimento do feudalismo empobreceu a nobreza ao passo que empoderou a burguesia. Na política feudal o poder político foi deixando de ser centralizado nos reis, passando a ser dividido com os nobres, que eram grandes proprietários de terras. Estes se fortaleceram ao longo dos anos, dado o aumento dos contratos de vassalagem e pelo fato do rei ceder a eles os feudos, dentre outros motivos, em troca de proteção militar.

Ocorre que com o passar do tempo, em razão do crescimento demográfico, da ampliação das áreas de cultivo, da necessária exploração do metal, do desenvolvimento de novos instrumentos para a prática da agricultura e do aumento da oferta de alimentos, muitos servos passaram a exigir pagamento em dinheiro pelos seus serviços e outros, que resultaram ociosos, tiveram de deixar o campo e partir para outra forma de sobrevivência. Ao mesmo tempo, o aumento da quantidade de produtos disponíveis para o consumo provocou o revigoramento das atividades comerciais.278

O fortalecimento do comércio e das áreas urbanas incentivou o deslocamento de muitas pessoas para as cidades em busca de melhores oportunidades. Assim, com o revigoramento urbano, surgia uma nova e importante classe: a burguesia. Além disso, na França os bens dos nobres eram herdados pelos plebeus, que compunham a classe burguesa e que se tornaram tanto quanto, ou mais ricos, que os nobres, ainda que esses mantivessem certos privilégios, como a isenção de impostos. Registra-se que a burguesia, além do poder econômico, com o passar do tempo, também passou a adquirir referidos privilégios. Inserido no cenário de disparidade existente entre a nobreza e a burguesia, havia o povo que representava a classe mais estigmatizada.279

Corrobora TOCQUEVILLE ao aduzir que

[...] Estas míseras prerrogativas enchiam de inveja aqueles que delas não gozavam e de orgulho 277 TOCQUEVILLE, A., 1997, p. 59-62. 278 Idem, ibidem, p. 111. 279 Idem, ibidem, p. 112.

aqueles que as possuíam. Nada é mais visível em todo o decorrer do século XVIII, que a hostilidade dos burgueses das cidades contra os camponeses de seus subúrbios e o ciúme do subúrbio contra a cidade.280

Ocorre que a burguesia não queria ser confundida com o povo e almejava, na verdade, ser cada vez mais equiparada aos nobres, especialmente no que tange aos privilégios. O individualismo era a regra, de forma que cada indivíduo só se preocupava com a sua situação. [...] Cada um dos milhares de grupinhos que compunham a sociedade francesa só pensavam em si próprio. Era uma espécie de individualismo coletivo que preparava as almas para o verdadeiro individualismo que conhecemos. O que há de mais estranho é que todos os homens que permaneciam tão afastados uns dos outros tinham se tornado tão semelhantes que era difícil distingui-los uns dos outros. Mais do que isso, quem sondasse seus espíritos descobriria que eles mesmos achavam as pequenas barreiras que dividiam gente tão parecida, tão contrária ao interesse público quanto ao bom senso e que, em teoria, já adoravam a unidade. Cada um só dava importância a sua condição particular. Mas estavam todos dispostos a confundir-se na mesma massa, contanto que ninguém nela tivesse alguma vantagem própria ou nela ultrapassasse o nível comum.281

Além dos motivos acima apresentados, mencionam-se também a crise financeira pela qual atravessava a monarquia, em razão de uma estrutura administrativa e fiscal ultrapassada - esta concedia muitas isenções tributárias (nobres e burgueses). Também o fato de se ter uma produção agrícola e manufatureira rudimentar e abandonada paralelo ao crescente interesse da compra de cargos públicos. Tais causas fecundaram o espírito revolucionário e a tomada da Bastilha em 14 de julho de 1789. 280 TOCQUEVILLE, A., 1997, p. 115. 281 Idem, ibidem, p. 116.

TOCQUEVILLE observa o contraste entre a brandura das teorias e a violência dos atos revolucionários, pois o que se viu foi uma “revolução sangrenta e desumana”. Nunca a tolerância em matéria de religião, a doçura no comando, a humanidade e até mesmo a benevolência foram pregadas com tanta insistência e aparentemente melhor admitidas que no século XVIII.

[...] E foi do seio de costumes tão doces que sairia a revolução mais desumana! Entretanto, todo este abrandamento dos hábitos não era uma falsa aparência, pois, logo que o furor da Revolução amorteceu, vimos esta mesma doçura espalhar-se em todas as leis e penetrar em todos os hábitos políticos.282

Vê-se que a fraternidade teve um papel importante no reestabelecimento da ordem pós-revolução, suplantando o lema. Contudo, tanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, quanto a Declaração de Independência das treze colônias, em 1776, só concederam o tratamento de princípio à liberdade e à igualdade. A fraternidade somente veio a ser mencionada, pela primeira vez, e não como princípio jurídico, mas antes como virtude cívica, na Constituição Francesa de 1791, tendo o texto constitucional da segunda república francesa, em 1848, vindo a declarar oficialmente a tríade.

[...] O que se deu [com a fraternidade], à época, foi a laicização de uma ideia força tipicamente cristã. Ao cristianismo se deve, efetivamente, o decisivo influxo na implantação e difusão desta convicção e aspiração: a convicção de que os homens são verdadeiramente irmãos e a aspiração a que todos se considerem e tratem como tais.283 Ocorre que enquanto a liberdade e a igualdade foram prósperas na condição de categorias políticas, e posteriormente como princípios jurídicos, a fraternidade manteve-se à margem dos acontecimentos da ordem política e jurídica, não obstante o termo tenha tido a mesma conotação daquelas à época.

282

TOCQUEVILLE, A., 1997, p. 125. 283

CABRAL, Roque. Fraternidade. In POLIS: Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado. Lisboa: Verbo, 1994, p. 78.

As causas do preterimento da fraternidade são trazidas por BAGGIO: o excesso de ambição humana; as raízes cristãs do conceito de fraternidade; a ambiguidade de seu significado, sendo por vezes, como já citada, associada à solidariedade; bem como as dificuldades do uso da terminologia “irmão” no contexto democrático pós-revolução.284

Debatendo as razões enumeradas por BAGGIO, incialmente tem- se o excesso de ambição humana, ou talvez o termo correto a ser utilizado fosse a ganância humana, ambos sentimentos que acompanham o ser humano, ora fazendo parte de seu aprimoramento, ora de sua degradação.

Contudo, enquanto a ambição humana pode ser considerada um sentimento positivo, se analisarmos o favorecimento ao crescimento e à superação em todas as dimensões da vida que ela proporciona, a ganância humana incorpora perigos e riscos aliados a um hiper- individualismo, que torna instável as relações sociais. Não se trata de anular a participação no coletivo mas sim de alterar o seu teor quando referida participação se der sob a lógica individualista por trazer consigo valores tais como o egoísmo, a violência, a intolerância, a exclusão, a desigualdade e a discriminação.

ROUSSEAU, inclusive, já havia criticado o uso da fraternidade por diminuir a coesão cívica, devendo ela ser direcionada, em sua visão, apenas aos concidadãos e contribuir para reforçar a união dentro do Estado. Vê-se uma fraternidade que só vai até a fronteira da França, dentre outros limites que lhe foram impostos, dos quais se destacam a ganância e o individualismo.285

Tanto que a ideia da fraternidade trazida pela Revolução Francesa diferiu quando de sua aplicação em duas revoluções: a da França, propriamente dita, em 1789, e a do Haiti, em 1791. A fraternidade não foi vivida por todos da mesma forma. Isto porque a França não reconheceu aos negros o direito de aplicar no Haiti os princípios da trilogia, tanto por questões econômicas (dado o auxílio econômica das colônias), quanto por questões culturais (acreditava-se na inferioridade natural do povo africano). Assim, afirma BAGGIO que “[...] a Revolução haitiana pode ser considerada, sob muitos aspectos, a outra face da Revolução Francesa”.286

284

Cf. BAGGIO, A. M., 2008, p. 11-13. 285

Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Editora Ridendo Castigat Moraes. Versão para e-book. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org.

286

Por outro lado, RESTA apresenta uma fraternidade que se afasta da concepção egoísta de “união dentro do Estado”, tematizando a comunhão de pactos entre indivíduos concretos e diferentes entre si. Para o autor, a fraternidade foi, inicialmente, um indicativo de solidariedade entre as nações, ao pressupor uma comunidade política fundada nos princípios dos Estados nacionais, confirmando o sentimento de pertencer do ser humano “[...] ligava separando, incluía excluindo”.287

Assim, a fraternidade “[...] deslocava a ênfase da singular linha da amizade da política para um compartilhamento de um sentimento de proximidade, alargando a ideia de próximo, abrindo temporal e espacialmente os limites”.288

No que tange às raízes cristãs da concepção da categoria fraternidade, também apontadas por BAGGIO como uma das causas do preterimento da fraternidade, esclarece-se que foram os cristãos os responsáveis por incluírem no “[...] circuito da cultura europeia os princípios da trilogia”.289

Contudo, os iluministas trataram de fundamentá-los em uma cultura racional por conta da intensa batalha que se travava contra a Igreja. Quem mais resultou prejudicado foi o princípio da fraternidade por ser de origem por demais claramente cristã. Isso porque, dentre os ideários da Revolução, estava o de romper com a Igreja e com o Cristianismo “[...] não porque a Igreja não podia tomar um lugar na nova sociedade que ia se fundar; mas porque ocupava até então o lugar mais privilegiado na velha sociedade que era preciso reduzir às cinzas”.290

Assim, a analogia da fraternidade com o cristianismo não era bem vista diante do choque com o ideário de rompimento com o antigo regime, ou seja, com a desigualdade e a discriminação. TOCQUEVILLE esclarece que

[...] Como o objetivo da Revolução Francesa não era tão-somente mudar o governo mas abolir a antiga forma de sociedade, teve de atacar-se, ao mesmo tempo, a todos os poderes estabelecidos, arruinar todas as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os hábitos e esvaziar, de certa maneira, o espírito humano de

287

RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 10. 288 Idem, ibidem, p. 10. 289 BAGGIO, A. M., 2008, p. 39. 290 TOCQUEVILLE, A., 1997, p. 56.

todas as ideias sobre as quais se assentavam até então o respeito e a obediência.291

A Revolução Francesa, dentre todas as revoluções contemporâneas, foi uma das únicas ecumênica. HOBSBAWN explica que os princípios católicos não eram aceitos. Assim, com o fim de acabar com as estruturas feudais, ainda vigentes em 1792, e estruturar a nova república, tanto a Assembleia Constituinte quanto a Constituição Civil do Clero, tomaram medidas que desagradaram o Clero por suprimirem o dízimo e confiscarem seus bens para saldar o déficit nacional.292

Um dos objetivos era o de substituir o culto religioso por um culto revolucionário, ou seja, um culto à razão, exaltando a vitória da razão sobre a dominação dos dogmas da Igreja.

Em relação à causa da ambiguidade do significado da categoria fraternidade e o fato de ser associada à solidariedade, BAGGIO assevera que

[...] a fraternidade teve certa aplicação política, embora parcial, com a ideia de solidariedade. Tivemos um progressivo reconhecimento dos direitos sociais em alguns regimes políticos, dando origem a políticas do bem-estar social, ou seja, a políticas que tentaram realizar a dimensão social da cidadania. De fato, a solidariedade dá uma aplicação parcial aos conteúdos da fraternidade. Mas esta, creio eu, tem um significado específico que não pode ser reduzido a todos os outros significados, ainda que bons e positivos, pelos quais se procura dar-lhes uma aplicação. Por exemplo, a solidariedade tem sido muitas vezes realizada - permite que se faça o bem aos outros embora mantendo uma posição de força, uma relação „vertical‟ que vai do forte ao fraco. A fraternidade, porém, pressupõe um relacionamento „horizontal‟, a divisão dos bens e dos poderes, tanto que cada vez mais se está elaborando - na teoria e na prática - a ideia de uma „solidariedade horizontal‟, em referência à ajuda recíproca entre sujeitos diferentes, seja

291

TOCQUEVILLE, A., 1997, p. 56. 292

pertencentes ao âmbito social, seja do mesmo nível institucional.293

Importante registrar que as categorias fraternidade e solidariedade não se confundem. A caracterização da fraternidade como o relacionamento „horizontal entre iguais‟ também é explica por PIZZOLATO

[...] Consideramos ser possível definir a fraternidade como uma forma intensa de solidariedade que une pessoas que, por se identificarem por algo profundo, sentem-se „irmãs‟. O ponto mais relevante: tratar-se-ia de uma forma de solidariedade que se realiza entre „iguais‟, ou seja, entre elementos que se colocam em um mesmo plano. Realmente, parecia contraditório falar de fraternidade para descrever o socorro que um pai presta ao seu filho, bem como, de maneira mais geral, as manifestações de solidariedade que brotam do paternalismo de quem está numa posição de supremacia e benevolamente para quem está numa posição de sujeição.294

Neste sentido é possível também afirmar que a fraternidade parece uma forma de solidariedade, talvez por isso a confusão dos termos, no entanto, a situação em que se encontram os sujeitos é diversa e nem sempre os caracterizará como irmãos.

Ressalta-se que no contexto da Revolução, a fraternidade possuía notável circulação em 1790, embora variassem os conteúdos que lhes eram atribuídos, mas a “[...] ideia predominante era a de uma fraternidade que vinculasse todos os franceses, ou seja, que caracterizasse as relações entre os cidadãos”.295

O ideário da solidariedade comporta diferentes matizes social, política, econômica, jurídica, entre outras áreas. Por exemplo,

293

BAGGIO, A. M., 2008, p. 22. 294

PIZZOLATO, Filippo. A Fraternidade no Ordenamento Jurídico Italiano. In: BAGGIO, Antonio Maria. A redescoberta da fraternidade na época do “terceiro 1789”. In BAGGIO, Antonio Maria (org.). O Princípio Esquecido 1. Vargem Grande Paulista: Cidade Nova, 2008, p. 113.

295

etimologicamente, o termo solidariedade origina-se do latim com o significado de sólido, inteiro, completo, provém do conceito jurídico romano obligatio in solidum, embora também se afirme sua origem na fraternidade bíblica, de forma que esta antecede aquela. Neste sentido COMPARATO explica que

[...] O substantivo solidum, em latim, significa a totalidade de uma soma; solidus tem o sentido de inteiro ou completo. A solidariedade não diz respeito, portanto, a uma unidade isolada, nem a uma proporção entre duas ou mais unidades, mas