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A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE NO DIREITO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA

CAPÍTULO 2 O PRINCÍPIO JURÍDICO DA FRATERNIDADE Abordar o tema fraternidade diante da questão do direito social

2.3 A INFLUÊNCIA DO PRINCÍPIO DA FRATERNIDADE NO DIREITO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: UMA

QUESTÃO DE LEGITIMIDADE

O princípio da fraternidade pode ser considerado como um dos alicerces do Estado Democrático de Direito instituído na CRFB/1988. O que implica admiti-lo não somente como um princípio jurídico, mas como um princípio de ordem política, econômica e social. No entanto, inserir a fraternidade no Direito é o que se almeja, intentando evidenciar que o ser humano deve ser “humano”.

Assim, na pós-modernidade, não há se falar em humano, que designa o que é relativo ao indivíduo como espécie, desprovido do fraterno, sem ligações com o outro, apenas preocupado com interesses que não suplantam a esfera particular, ainda que por natureza o seja mais individual do qualquer outro ser. No entanto, no individual ele não pode ser concebido como um exemplar de uma espécie, ao passo que pelo viés do princípio da fraternidade, o “eu” é libertado para o encontro com o outro, exigindo respeito à dignidade humana, transcendendo um cotidiano que é apresentado, muitas vezes, como pronto e acabado.

386

RESTA, E., 2004, p. 14. 387

BONAVIDES em prefácio à obra Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. SARLET, 2006, p. 8.

Para SINGER, o ser humano equivale a muito mais do que pertencer à espécie Homo sapiens, compondo uma lista daquilo denominou “indicadores de humanidade”, em que incluiu a autoconsciência, o autodomínio, o sentido do futuro e do passado, a capacidade de se relacionar com outros, a preocupação pelos outros, a comunicação e a curiosidade.

[...] É este o sentido do termo que temos em mente quando elogiamos alguém dizendo que „é muito humano‟ ou que tem „qualidades verdadeiramente humanas‟. Quando dizemos tal coisa não estamos, é claro, nos referindo ao fato de a pessoa pertencer à espécie Homo sapiens que, como fato biológico, raramente é posto em dúvida; estamos dizendo que os seres humanos possuem tipicamente certas qualidades e que a pessoa em questão as possui em elevado grau.388 Diferentemente da carga valorativa trazido no uso da categoria “indivíduo”, como aclara BAUMAN quando aduz que a apresentação dos membros de uma sociedade como indivíduos, marca registrada da sociedade moderna, é resultado de um processo de individualização que muito difere dos primeiros tempos da era moderna. “[...] Como Tocqueville já suspeitava, libertar as pessoas pode torna-las indiferentes”.389

O termo “indivíduo” se opõe ao termo “cidadão”, em razão do cidadão representar a pessoa que tende a buscar seu bem-estar através do bem-estar da cidade, enquanto o “[...] indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à „causa comum‟ e ao „bem comum‟. [...] Qual é o sentido de „interesses comuns‟ senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses?”390

Ou seja, o vocábulo “indivíduo” anuncia problemas para o “ser humano”, na medida em que sua carga valorativa corrói o espírito do social e do fraterno.

Assim, a identidade dos seres humanos e o acesso a ela é um dos pontos centrais da do princípio da fraternidade, e que justamente se faz necessária na tipologia interna das sociedades pós-modernas, em que o indivíduo carece do outro, do Estado, da democracia e do Direito. E para

388

SINGER, Peter. Ética Prática. Lisboa: Grandiva, 2000, p. 115. 389

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 48.

390

abordar de forma adequada referidas questões, bem como a influência daquela, é fundamental compreender seus conceitos.

O princípio da fraternidade representa, hodiernamente, demanda inevitável. Está no fato de que nos últimos anos, vem surgindo como exigência da própria existência do ser humano e do Direito, “[...] sobretudo a partir da constatação de que a realização dos outros dois princípios que tomamos como referência, a liberdade e a igualdade, ficou incompleta ou mesmo fracassou”.391

Partindo-se do pressuposto que, longe dos debates tradicionais sobre seus significados cristãos, ou de suas ligações com sociedades secretas, ou sobre a impossibilidade de sua imposição, o ser humano, assim como todos os seres vivos, recebe estímulos que fornece respostas, ocorre que a linha entre os estímulos e as respostas incide em sua totalidade, desde o seu "eu" até o mundo que está inserido.

O ser humano não está, assim, limitado à realidade e às necessidades de uma determinada situação como um animal irracional está. Pode alterar seu modo de agir e pensar. O ser humano não nasce na natureza, nem a partir de elementos hostis como astros e plantas. Nasce do útero materno e é recebido nos braço de uma cultura, portanto nasce em alguém e não em algo. “[...] É amamentado por uma totalidade simbólica. É numa família, num grupo social, numa sociedade, numa época histórica que o homem nasce e cresce, e dentro do qual desenvolverá seu mundo de sentido”.392

Vê-se assim que antes de tudo está o outro, “antes do ser está a realidade do „outro‟, antes está a responsabilidade pelo fraco, por aquele que ainda não é”393

O princípio da é uma das categorias que exprime o ser humano enquanto sujeito de direito em sua plenitude primeira e última. “[...] O mamar, o dar a mão, a carícia suave, a colaboração fraterna, o diálogo amistoso, o beijo apaixonado”394

, proximidades que geram reciprocidades a que todo ser humano está sujeito, segundo DUSSEL. Consequentemente, ainda que seja um risco para muitos viver a fraternidade, esta envolve, reflete, liberta, induz à participação no político e permite criar algo novo que esboçará o amanhã. Neste sentido afirma BAGGIO que

391

BAGGIO, A. M., 2009, p. 11. 392

DUSSEL, Enrique Domingo. Filosofia da Libertação na América Latina. 2. Ed. São Paulo: Loyola/UNIMEP, 1977, p. 24.

393

Idem, ibidem, p. 24. 394

[...] A sociedade contemporânea tem, de fato, uma grande capacidade de transformação, envolvendo muito profundamente a ordem do pensamento. O que quero dizer é que a sociedade sabe produzir novas tríades, combinações inéditas de princípios de ação que, mesmo quando não se apresentam por intermédio de um pensamento fundante ou, quando não desenvolvem uma ideologia explícita, tornam-se na realidade, formidáveis princípios práticos, que normatizam a vida cotidiana.395 Referida capacidade de transformação do ser humano expressa a convicção de que o princípio da fraternidade está relacionada não só à vida individualmente concebida, mas possui uma forte ligação com a construção de “[...] todo o complexo de relações do homem com seus semelhantes”.396

Oportuno lembrar que, da mesma forma o direito social ao trabalho, entendido muitas vezes como fruto de uma busca pessoal, também diz respeito à esfera pública. “[...] Todos entendem que não é possível ser feliz individualmente no interior de uma sociedade infeliz”.397

Do mesmo modo que o ser humano, não há se falar em Estado ao redor do qual se processa a rotação de todo o zelo e ideário - constituindo verdadeiro fim em si mesmo. Desprovido do princípio da fraternidade, se interroga acerca do destino pretendido.

Ressalta-se que a origem do termo Estado advém do substantivo latino “status”, que significa “estar firme”, que sob o enfoque político do Império Romano remete a noção de estabilidade.

Durante o apogeu da expansão de aludido domínio, e mais tarde entre os germânicos invasores, os vocábulos “Imperium” e “Regnum”, então de uso corrente, passaram a exprimir a ideia de Estado, nomeadamente como organização de autoridade e poder. Já na Idade Média, o termo empregado para Estado era “Laender”, fazendo alusão sobretudo à grandeza da extensão do território conquistado.398

Quanto ao aspecto conceitual, BONAVIDES explica que o Estado pode ser definido segundo distintas abordagens científicas. Assim, sob o ponto de vista filosófico, o Estado representa “[...] o

395

BAGGIO, A.M., 2009, p. 13. 396

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 63

397

BAGGIO, A. M., 2009, p. 14. 398

resumo da contradição dialética entre a família e a sociedade, já sob o aspecto jurídico denota a ordem coativa normativa da conduta humana”399

, e sob o viés sociológico e político, é composto pela comunidade humana que “[...] dentro de um determinado território, reivindica para si, de maneira bem sucedida, o monopólio da violência física legítima”.400

Ao analisar os conceito acima, bem como os elementos constitutivos do Estado, constata-se que ambos somente podem ser apreendidos tendo por referência a carga axiológica que os acompanha e se altera no decorrer dos anos. De fato deve-se acrescentar à concepção de Estado, “poderes reconhecidamente legítimos”401

, tanto internamente como pela comunidade internacional, assim como valores, incluindo-se aqui o princípio da fraternidade.

A equação Estado/elementos constitutivos/legitimidade/princípio da fraternidade há muito se relaciona, tendo sido, inclusive, utilizada já no nascimento de novos estados à época da Revolução Francesa. BAGGIO cita experiências importantes do princípio da fraternidade como elemento reconstrutor das relações sociais em situações de “[...] emergência civil devidas a conflitos ou calamidades naturais”. Segundo o autor é propondo outra vez a trilogia que se pode obter uma fundamentação adequada aos direitos humanos, “[...] capaz de vencer a indiferença social e justificar a tomada de responsabilidade”.402

Com efeito, enquanto valor incorporado no sistema jurídico brasileiro sob a forma de princípio - nos moldes do preâmbulo constitucional - a fraternidade sinaliza para uma inversão de prioridades jurídica, política, econômica e social até então existentes.

Do Estado brasileiro constitucionalmente idealizado, passa-se, a partir do texto de 1988, a ter-se consciência constitucional que a prioridade estatal deve ser o ser humano e os relacionamentos que dele decorre, em todas as suas dimensões, como fonte de inspiração e fim último. Não se trata das relações abstratas do Direito, dos Códigos e das Leis, e sim, do relacionamento dos seres humanos de forma concreta. 399 BONAVIDES, P., 2000, p. 74-76. 400 Idem, ibidem, p. 74-76. 401

Cf. BONAVIDES aclara que durante 21 anos – de 1964 a 1985 – não houve no Brasil legitimidade, nem da Constituição escrita, nem da Constituição real. Nesta moldura autoritária a vontade do executivo tecnocrático se sobrepunha sempre à vontade do constituinte. Alargava-se assim o hiato entre a sociedade e o Estado. BONAVIDES, P., 2001, p. 211.

402

[...] Vê-se que normalmente a relação jurídica é caracterizada por uma forte abstração: no mundo das normas não existe a pessoa concreta, com nome e sobrenome, idade, residência, educação, trabalho, experiência de vida e formação psicológica, caracterizada por determinadas condições econômicas e culturais. Existem pelo contrário, figuras abstratas, que entram em relações específicas, segundos os papeis (proprietário, devedor, credor, vendedor, mandante, herdeiro, ator, acordante, etc). [...] Dessas figuras, as normas indicam os comportamentos na forma de direitos e deveres. Entretanto, na experiência prática a relação configurada abstratamente nas normas recebe vida como relação social concreta entre duas ou mais pessoas determinadas,[...] que podem assumir atitudes bem variadas: hostilidade, indiferença, ou, então, justamente fraternidade.403

Centrando a análise em atos jurídicos, como as decisões e procedimentos tomados e adotados pelos atores jurídicos, parece inevitável, em alguns casos, a referência ao princípio da fraternidade. Destarte, a aplicação de referido princípio pode consistir, por exemplo, na facilitação do desempenho dos deveres do ofício de servidores quando “[...] perdem tempo para escutarem as partes”, como ironiza GORIA.404 Também não são raras as atitudes fraternas levarem à revisão de regulamentos e adoções de procedimentos mais rápidos, bem como o envolvimento, em processos administrativos e judiciais, de entidades de assistência, ou de algum modo especializadas em responder a determinadas necessidades dos excluídos. “[...] Parece-me que a fraternidade possa entrar no Direito também como forte impulso à sua eficácia, de acordo com seu papel social”.405

A adoção do princípio da fraternidade pelo Direito do Estado Democrático de Direito implica em afirmar que sua positivação, assim como a enunciação do catálogo de direitos sociais disposto no bojo na

403

GORIA, Fausto. Fraternidade e Direito: algumas reflexões. In: CASO, Giovani et al. (org) Direito e Fraternidade. São Paulo: Cidade Nova: LTr, 2008, p. 28.

404

Idem, ibidem, p. 28. 405

CRFB/1988, não revelam mera concessão do legislador constituinte ou “graça” estatal. Ao contrário, representa ponto culminante de um processo histórico, marcado por avanços e retrocessos, que contribuiu para que Estados reconhecessem os direitos do ser humano como expressão de dignidade humana, relacionada tanto com a vida pessoal quanto social. Como bem aponta SALGADO

O Direito no sentido filosófico decorre de um desenvolvimento “racional da sociedade”, desenvolve-se com essa sociedade ou com a “realização da razão” nessa sociedade por meio da história [...] [mas], com a simples mudança da ordem jurídica positiva não se solucionam os problemas da sociedade. As mudanças políticas e sociais vêm em primeiro lugar, enquanto movimento imanente da liberdade ou do Espírito, em que se insere a ordem jurídica.406

Complementando a citação, a questão da legitimidade leva à apreciação das razões de obediência por parte dos indivíduos a determinados modelos estatais, donde surge a distinção entre o bom governante - “[...] que chega ao poder de acordo com as regras previstas para isso, e o exerce com algum grau de consenso da sociedade” - e o tirano, ou seja, “[...] aquele que assume o comendo do Estado em desacordo com as leis estabelecidas para isso e que confia apenas na força para o exercício do poder”.407

Afirmar que o poder é legítimo implica em dizer que de fato suscita consenso e aprovação dos envolvidos.

Dentro da ótica weberiana, a legitimidade refere-se a razões de obediência (entendido como motivos de justificação interior) a um comando dirigido aos dominados, assim o mero poder se transforma em dominação, distinguindo-se da força, repousando na adesão. WEBER concebe os ordenamentos estatais modernos das sociedades ocidentais como formas de poder legal. O poder legal aqui se constitui de um caráter racional, ou seja, de que a legalidade dos ordenamentos estatuídos e a autoridade de quem os exerce possui qualidade distinta da

406

SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, p. 327.

407

CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem garantista. 2. Ed. Campinas/SP: Millenium Editora, 2007, p. 116.

crença do poder da tradição ou do carisma. A racionalidade intrínseca ao Direito confere legitimidade ao poder exercido em formas legais.408

Observa-se que as sociedades ocidentais vivem segundo as normas que o Direito impôs, de forma que a autoridade foi despersonalizada e a fonte do poder é o próprio Direito. No entanto, o culto à legalidade mostrou seu lado perverso e o Estado perdeu sua identidade no momento em que admite ser legal, ainda que injusto.

A identificação do que é o Direito, e como este se diferencia do que não é Direito, deixa em aberto o problema de como será apreendido. Aquela tem como objetivo a tarefa de analisar para, posteriormente, vislumbrar o caráter benéfico da influência exercida pelo princípio da fraternidade no Estado Democrático de Direito.

Na acepção de ARNOLD o Direito

[...] corresponde a certa atitude, uma forma de pensar, uma maneira de se referir às instituições humanas em termos ideais. Trata-se de uma exigência do senso comum, profundamente arraigada, no sentido de que aquelas instituições de governo dos homens e de suas relações simbolizem um sonho, uma projeção ideal, dentro de cujos limites funcionam certos princípios, com independência dos indivíduos.409

A definição com rigor do Direito não é tarefa simples, pois são inúmeras as definições que postulam seu alcance em razão de seu conceito envolver atitude, ideais, exigência do senso comum e limites, que reciprocamente são incompatíveis e, ao mesmo tempo, é um dos fatores responsáveis por certa margem de segurança e estabilidade social.

Para REALE, o Direito é encarado como “experiência jurídica” a qual não pode ser arquitetada como um objeto de contemplação, ou mera sequência de esquemas lógicos pelo meio dos quais se perceba fluir, à distância, “[...] a corrente da experiência social, com todos os problemas a que com tais esquemas se pretendia dar resposta: as suas

408

Cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. II. São Paulo: UNB, 2004, p 62.

409

ARNOLD, Thurman Wesley. El derecho como simbolismo. In: Sociologia del derecho. Caracas: Tiempo Nuevo, 1971, p. 47.

normas são deontologicamente inseparáveis do solo da experiência humana”.410

Assim, o Direito age, pois, como um reconhecimento de ideias “[...] que muitas vezes representam o oposto da conduta social real”.411

Manifesta-se como um antagônico mundo de contradições e coerências, pois, em seu nome tanto se têm embasadas as crenças em uma sociedade ordenada, quanto se agitam a revolução. “[...] O Direito contém, ao mesmo tempo, as filosofias da obediência e da revolta, servindo para expressar e produzir a aceitação do status quo, da situação existente, mas aparecendo também como sustentação moral da indignação e da rebelião”.412

Importante ressaltar que para além de normas, um ordenamento jurídico deve contar com princípios e valores, como o princípio da fraternidade, necessário para a existência de uma sociedade realmente livre e igualitária. O princípio da fraternidade estabelece condições para que o Direito identifique-se com o modelo estatal previsto na CRFB/1988 por convocar a todos a deixarem de lado a noção estreita de Direito herdada dos romanos, criando um sentimento de pensar, agir e conviver inclusivista.

Ao se analisar a influência do princípio da fraternidade no Direito, na perspectiva da legitimação de referido modelo estatal, ressalta-se seu reflexo na produção legislativa, na educação jurídica, na participação, na aplicação da norma, por desafiar os limites e o modis agendis até então impostos. Isso porque o Direito à luz do princípio da fraternidade alcança o reconhecimento e a adesão dos interlocutores.

Pode-se afirmar que o Direito é legitimado pelo do princípio da fraternidade, já que esse proporciona a associação entre o conteúdo e a práxis das normas, de forma que o Direito deixa de ser concebido como uma variável independente e superior às demais áreas, ou ainda, como algo fictício.

Na medida em que a concretude ganha o espaço da abstração das normas e a racionalidade jurídica abre espaço para a justificativa de decisões e procedimentos em contextos abertos, ou seja, com base em princípios plasmados da CRFB/1988, do princípio da fraternidade tem o

410

REALE, Miguel. O direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 31.

411

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2003, p. 25.

412

mérito de dotar o direito de autonomia equilibrada. Nem arrogante e autossuficiente, tampouco sabotado pela política e pela economia.

Certo é que a crise e o esgotamento de um modelo estatal autoritário, deslocou o foco para uma nova condição de existência da democracia. Este direcionamento, sobretudo teórico, atinge a temática do princípio da fraternidade como um de seus eixos nodais, a partir de sua carência enquanto práxis. Embora, pois, possa ser considerada a democracia uma temática secular, o princípio da fraternidade, contemporaneamente, apresenta-se com um horizonte laico, enriquecido e atualizado.

Discorrer acerca do princípio da fraternidade no âmbito da democracia implica em conceber esta como algo maior do que a mera “regra da maioria”. De acordo com BOBBIO, pensar acerca da fraternidade envolve “[...] a ampla e segura participação da maior parte dos cidadãos, em forma direta e indireta, nas decisões que interessam a toda coletividade”.413

Em relação à forma indireta de participação, esta ocorre através da democracia representativa, na qual se vota para a escolha de representantes, ou seja, “[...] significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade”.414

Pode-se encontrar uma profunda interdependência entre a democracia e o princípio da fraternidade. Para que essa seja uma forma de governo estável é necessário que seja respeitado o predito pelo ordenamento constitucional, garantindo-se assim, o Estado Democrático de Direito. A democracia só funciona onde o ordenamento constitucional esteja bem alicerçado, onde haja o respeito pela separação de poderes, na qual o princípio da fraternidade impõe limites à legalidade e à regra da maioria.

O elenco das regras procedimentais - cidadania, eleições, partidos políticos, opinião público, processo eleitoral - ocorre no plano do Estado de Direito Democrático, que conforme BOBBIO, corresponde a uma definição mínima de democracia, sintetizada na sua teoria das “regras do jogo” que buscam assegurar a ampla participação dos cidadãos nas decisões que afetam a sociedade. Assim, a democracia estabelece quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.415

413

BOBBIO, Norberto. Qual socialismo? Debate sobre uma alternativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p. 55-56.