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Fui, no perpassar inexorável do tempo, obreiro de fé e esperança,

DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS RECURSOS RETÓRICO-ARGUMENTATIVOS Eu sou estas casas

3.3 O discurso retórico

3.5.3 Fui, no perpassar inexorável do tempo, obreiro de fé e esperança,

como fui, também, imagem viva de desesperança, revolta e sofrimento.Revolta pela gritante desigualdade existente entre os seres humanos – criação sublime de um mesmo Deus e rebanho sofredor de um mesmo Pastor. Trilhei, no passado distante – vivência que se me incrustou no sensível coração de caboclo – muitos ermos e muitas paragens. Fui surrado da vida e sofrido do destino. Mas os olhos indagadores estiveram sempre voltados para o Alto, porque é do Alto, da casa do Senhor, que vêm a força, a verdade e a luz.

Eu vim, em verdade, dos charcos e da poeira revolvente dos tempos, mas com o conforto grandiloqüente de ter sido guiado por essa luz mirífica que é o farol divino que indica, neste tormentoso vale de lágrimas, aos bons e aos puros de espírito, o caminho certo da vida. (Da linha 33-50, doc. original p. 146)

O terceiro bloco (3.5.3), que vai desde Fui no perpassar inexorável do tempo..., até ...o caminho certo da vida, é bastante significativo da condição humana através da visão cristã para qual o homem deve buscar a virtude através da dor e do sofrimento a fim de alcançar a salvação. Imbuído dessa mentalidade, o orador em estudo evoca um poder superior para discorrer sobre a sua estirpe denotando que sua origem liga-se à origem dos demais seres humanos frutos da mesma criação e descendência divinas. A escolha do léxico e a pertinência do intertexto bíblico criam uma atmosfera de onde emerge a tonalidade cristã que perpassa todo o texto. E é justamente essa aparência de humildade impregnada da essência divina que empresta credibilidade às convicções e às refutações externadas nesta tópica da linhagem.

Faz parte do modo de composição serejeana trabalhar com oposições, conforme já foi dito. Nesta perspectiva, é interessante destacar que o emprego do passado verbal assume feições diferentes criando um novo efeito de sentido, cuja diferença encontra-se na oposição do papel do sujeito, ora agente, ora paciente. Em expressões como “fui (...) obreiro; (...) fui (...) imagem viva; (...) trilhei (...) muitos ermos e paragens” tem-se a clara imagem do sujeito desempenhando uma série de papéis simultâneos: ele fez as obras e ao executá-las chamou para si os reflexos negativos que a ausência delas concretiza. Na expressão: “Fui surrado da vida e sofrido do destino” é o inverso, o sujeito passa a ser passivo, como se esses momentos já estivessem determinados e contra os quais não se houvera que lutar. É uma visão conformista, provavelmente, ditada pela crença e religiosidade que fortalece, edifica, orienta e a tudo sublima.

A seleção lexical neste fragmento é predominantemente do discurso religioso. Há diversas lexias que remetem ao texto bíblico, donde emergem tanto ações que, segundo o Evangelho, foram praticadas por Jesus em favor dos homens, como imagens que sugerem os passos da paixão de Cristo. A título de exemplo, a transcrição de algumas unidades lexicais ilustram a ambiência e os sentimentos de punição e resignação que criam as cenas da vida e morte do filho do Homem e, de um período de tempo da vida do orador que descreve viver à sua imagem e semelhança. De um lado, o lado ativo: “obreiro, fé, esperança, imagem, sublime, paragens, Pastor, Alto, força, em verdade, luz, farol, casa do Senhor, bons e puros de espírito, o caminho, a verdade, a vida”; por outro lado, o lado

passivo: “sofrimento, criação, surrado e sofrido, olhos indagadores, sido guiado, neste tormentoso vale de lágrimas”. Fica claro que o orador é, por herança, descendente de linhagem de Deus. Mas isto não é motivo de soberba, novamente a pequenez humana encontra amparo na grandiosidade divina evidenciando a incessante busca pelas sendas do bem e do justo.

No entanto, o tom de profecia emergente ao texto é prenúncio da nota persuasiva que se detecta, por exemplo, na expressão: “em verdade” que são palavras portadoras de consenso, pois remetem a um jargão empregado por Cristo ao se voltar aos seus ouvintes no início da sua pregação. E em “conforto grandiloqüente” há uma menção às qualidades recebidas. Grande e eloqüente são dois determinantes altamente positivos. Loquaz, do latim loquace, designa a propriedade de ser falante; eloqüência segundo Tringali (1988, p. 12) “constrói-se sobre o adjetivo eloquens = eloqüente e se liga ao verbo eloqui = falar, falar com arte, com elegância, com riqueza”. Marques (2003, p. 62), ao tecer considerações sobre a importância de Ullmann (1977) para os estudos do significado, assegura que:

No sentido conotativo das formas lingüísticas, incluem-se os valores de significado que elas adquirem no contexto ou situação de uso: combinatória lingüística, circunstâncias e finalidades, funções e intenções de seu emprego, fatores intersubjetivos presentes no ato de comunicação. Destacam-se, nesse plano, matizes de significado que uma palavra passa a ter por associação de semelhança ou de contigüidade com os demais elementos do sistema da língua, com o referente, com a mensagem em si, com a situação de uso, modalidades de registro e variação dialetal.

Esses elementos do significado são também chamados de associativos, por oposição ao significado denotativo, de natureza conceitual e abstrata. Toda a seleção lexical anteriormente descrita e a subseqüente rede de associações semânticas sinalizam para a criação de um argumento de força, de forma a sustentar o tecido do discurso. O raciocínio encetado cria uma atmosfera de verdade, a argumentação fecha as possibilidades contestatórias, a idéia é concretizada por meio de argumentos de autoridade. Os argumentos de fé se querem por si sós incontroversos. Apenas uns poucos se atrevem a contestar as Escrituras Sagradas. De acordo com a técnica retórica, neste momento, o orador valeu-se do raciocínio apodítico para estruturar a sua verdade. Neste fragmento, é possível lembrar-se dos persuasivos Sermões de Vieira. Não porque nele se

encontre o rebuscamento dos jogos lingüísticos cultistas, antes porque valoriza a atitude intelectual que se concretiza, no discurso, pela matéria, raciocínio e argumentos apresentados.