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A função dos discursos nas assembleias em Atenas – enquadramento histórico

1.3 Os discursos na obra tucidideana

1.3.1 A função dos discursos nas assembleias em Atenas – enquadramento histórico

Antecedendo a análise dos discursos que compõem o debate entre Alcibíades e Nícias (TUCÍDIDES, VI.9-23), opositores políticos, sobre a questão da Expedição à Sicília, vale retomar o ambiente das assembleias em Atenas no século V. E para compreender a função dos discursos nas assembleias é importante resgatar as reformas de Sólon que culminaram na transformação deste organismo em uma ferramenta de gestão democrática.

Em 594, Sólon foi nomeado arconte com objetivo de reformar o Estado nos aspectos econômico, social e político e resgatar os atenienses mergulhados em crise interna, que pôs em conflito as classes mais abastadas e opressoras contras as classes sem posses e desfavorecidas – que se aliavam à recém-surgida classe média. A polis mergulhara nessa crise em razão da ―ausência de uma justiça pública que garantisse os direitos individuais estabelecendo leis iguais para todos e à ideia de que alguns indivíduos, por herança de sangue, são melhores do que outros‖ (BARROS, 1999, P. 99). A balança social de Atenas estava em desequilíbrio, os direitos oligárquicos faziam pender um dos pratos, e disso resultava a opressão dos camponeses, que perdiam suas terras e, por dívidas, tornavam-se a si e às suas famílias, escravos.

Ao atingir um estado agudo de crise, marcado por conflitos armados, em que a ideia de ascensão de um governo tirano ganhava aderência, a população opta por escolher Sólon como arconte, uma vez que tanto nobres quanto as camadas mais baixas depositavam nele a sua confiança: ―os pobres julgavam-no homem excelente e os ricos sabiam-no homem de recursos. Uns e outros esperavam que sua política lhes atendesse aos interesses‖ (BARROS, 1999, p. 101). Como resultado de suas medidas jurídicas, políticas e econômicas (MOSSÉ, 1982), a classe abastada sofreu o revés do engano: ―Sólon não era um homem de sua casta: era um cidadão de Atenas‖ (BONNARD, 2007, p. 111), pois suas reformas não favoreceram um lado ou outro, mas sim o equilíbrio social da polis.

Pensando no que seria melhor para Atenas, a reforma na legislação feita pelo arconte, entre outros pontos, acabou com a escravidão por dívidas e ampliou o conceito de cidadão, retirando o seu vínculo com o nascimento e as posses, de modo a incluir as camadas mais pobres nas decisões políticas. Essas alterações significaram não apenas ―uma profunda alteração na mentalidade, mas também a vontade de Sólon de substituir por novos critérios, os antigos costumes aristocráticos‖ (MOSSÉ, 1982, p. 15). Apenas a possibilidade de conquista de determinados cargos políticos ainda mantinha relação com a riqueza e segregava os

atenienses. Mas o quadro geral já estava modificado, entrava em vigor a instância política que igualava todos os cidadãos: as assembleias, como o ―lugar privilegiado de decisão política‖ (PIRES, 1999, p. 341), uma vez que nelas os nobres e o povo tinham os mesmos direitos de votar e de tomar a palavra. Ao tornar democrática a ferramenta gestora da Cidade-Estado, aos poucos os menos abastados, por serem maioria, legislaram em seu próprio benefício, reduzindo, assim, a desigualdade entre as classes.

Com base na implantação deste conceito de cidadão aliada à forma de gestão democrática, Eurípedes, no verso 405 de As suplicantes, apresenta Atenas como uma cidade livre, ressaltando que no deinós, ricos e pobres possuem igualdade de direitos. Por meio da disputa do logos e da votação na ekklesia confirma-se que o deinós ao invés de ser governado, governa (FERREIRA, 1988). Com o passar do tempo, a assembleia se torna em Atenas o ―órgão essencial da vida pública‖ (BONNARD, 2007, p. 114).

Neste contexto, os discursos recebem destaque nas decisões coletivas:

[…] nos princípios do século VI vemos prefigurar-se essa imagem do povo que, sob o impulso de seus oradores, discutia e decidia de tudo, dos tratados de paz, da construção do Patérnon e dos Propileus, e do resto – esse povo de quem Fénelon nos diz, num resumo eloquente: ―Tudo na Grécia (deveria dizer-se: em Atenas) dependia do povo e o povo dependia da palavra‖. (BONNARD, 2007, p. 115)

A importância cívica da palavra levou os gregos a inventarem a sua arte: a retórica39. Uma vez que é dado a todo cidadão o direito de subir à tribuna para defender ou refutar as ações propostas, a retórica torna-se, nessa conjuntura, o requinte na arte de persuadir. É prova de que essa arte torna-se central pela seguinte consequência: a criação de uma formação voltada para a palavra (DUHOT, 2004) e sustentada pelas famílias mais abastadas40.

Benjamin Constant (1985), em seu estudo sobre a liberdade dos antigos comparada à dos modernos, tangeu a temática da força da palavra na prática das assembleias:

39 A definição adotada para o conceito ―retórica‖ neste trabalho tem como base o estudo de Olivier Reboul

(2004, p. XIV), que, por sua vez, recorreu à Antiguidade para propor uma definição. Segundo o autor, a retórica ―é a arte de persuadir pelo discurso‖, uma técnica aplicável somente em discursos que visam persuadir. O discurso, por sua vez, é qualquer produção verbal, escrita ou oral, composta por frases cuja sequência apresenta começo, meio e fim, além de unidade e sentido (REBOUL, 2004).

40 Quanto a esta nova formação, a sofística, comenta Jaeger (2010, p. 540): ela ―[...] surgira da necessidade de

dar uma nova cultura superior à alta esfera governante, e da elevada valoração dos méritos da inteligência humana. A finalidade prática dos sofistas – formação de homens de Estado e dirigentes da vida pública – favorecera esta nova orientação numa época como aquela, fundamentalmente preocupada com o êxito‖.

[...] como porção do corpo coletivo, ele [o cidadão] interroga, destituí, condena, despoja, exila, atinge mortamente seus magistrados ou seus superiores; como sujeito ao coletivo, ele pode, por sua vez, ser privado de sua posição, despojado de suas honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo ao qual pertence. (CONSTANT, 1985, p. 1-2)

Entende-se que o indivíduo é subordinado à supremacia do corpo social em Atenas (CONSTANT, 1985), poder este advindo também da capacidade retórica daquele que sobe à tribuna para defender ou acusar indivíduos, comunidades ou ideias. Em virtude disso, entre os cidadãos, os oradores receberam destaque na polis, uma vez que os mecanismos de funcionamento das assembleias dependiam da aderência do povo. Dover (1977, p. 86) ilustra essa situação pela figura do advogado moderno, como ―se este se dirigisse a um júri, sem nenhum juiz e sem possibilidade de um interrogatório‖. Assim, o cidadão que pretendesse ter apoio em suas proposições políticas não contava com outro meio senão o de derrotar seu opositor, conquistando a preferência popular: ―[...] o orador empregava a invectiva, o ridículo, o exagero e todos os recursos para despertar a emoção do público e distrair-lhe a atenção de sequências de raciocínio que não fossem interessantes ao orador‖ (DOVER, 1977, p. 86).

A retórica, portanto, era necessária ferramenta de condução das massas nas assembleias, pois a partir de seu uso em um discurso o público era conquistado por uma proposição política ou outra. E, sob este aspecto, vale ressaltar os riscos a que a gestão democrática está sujeita. O primeiro deles é o comportamento de multidão, que deflagra a instabilidade, os conflitos e as inclinações partidárias ou pessoais, resultando em atitudes apaixonadas41. Dessa inconstância popular (BRUNA, s/d; FERREIRA, 1988), tomaram-se decisões que, por vezes, levaram a Atenas a duras consequências. Um segundo risco da utilização da retórica nos discursos durante deliberação em uma assembleia é o seu esvaziamento moral – isso fica patente quando os retores ganham a fama de transformar o argumento mais fraco no mais forte. O que significa dizer que o uso da retórica torna-se um malefício à polis na medida em que os oradores são motivados por interesses mesquinhos e não pelo bem-estar da coletividade, comovendo aqueles que votam as decisões que impactam no futuro de Atenas.

41 Sólon já previa este tipo de problemática nesta forma de gestão, e por isso, recomendou a formação do caráter

do cidadão, a fim de coibir ações desmedidas e individualistas que prejudicariam a polis (BARROS, 1999). No item 3.1 são abordados outros pontos acerca dessa reflexão.