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1.2 A obra

1.2.2 Metodologias

É claro que não se deixará de exigir que o historiador se mostre honesto e escrupuloso, ainda assim será preciso que ele se decida. Mesmo que se lhe conceda na origem um certo domínio de interesses, sempre mais ou menos em função da época em que vive, no interior desse domínio ele deverá, aplicando todas as qualidades de seu espírito, escolher e organizar segundo o seu próprio pensamento. Para alcançar o seu objetivo realiza uma obra de criação.

Jacqueline de Romilly, História e Razão em Tucídides.

Tucídides inclui no Livro I três capítulos dedicados à explanação que a crítica moderna denominou como ―arqueologia‖ e ―metodologia‖. Os dois primeiros capítulos (I.20- 1) se detêm na explicação metodológica do estudo do passado da Hélade – material que compõe parte do Livro I e cujo foco é a relação entre Atenas e Esparta e o conflito com os persas, tendo esta tarefa recebido o nome de arqueologia. O terceiro capítulo (I.22), por sua

vez, dedica-se à explanação sobre o método utilizado nas construções das narrativas e dos discursos, tarefa a que foi dado o nome metodologia.

Quanto à arqueologia, entendemos que Tucídides, em uma tentativa de registrar parte da história da Hélade e de buscar as causas da Guerra do Peloponeso, reuniu informações referentes aos povos e regiões envolvidas na contenda e, como vimos, consultou os poemas épicos. Excluindo a possibilidade de a retomada aos poetas objetivar somente a ampliação da importância da guerra em questão32, entende-se que o registro do passado é o necessário aprofundamento para a reflexão das origens do conflito. Com esse método, Tucídides definiu as situações da guerra pela condição de vida de cada povo, suas posses e recursos militares (ROMILLY, 2008). Considerados como digressões do texto, os estudos da arqueologia apresentam a preocupação do autor com o entendimento ampliado da guerra.

As informações dessa natureza também são encontradas em momentos pontuais: nas introduções de capítulos, em momentos de decisão e antecedendo aos discursos. Ao longo da obra, essas breves digressões cumprem a função de suporte à compreensão dos desdobramentos da guerra de modo pleno (ROMILLY, 2008) e permitem o jogo com os discursos proferidos ao longo da obra. Este rol de informações subsidia o entendimento do leitor ao dar sentido às ações dos protagonistas da guerra. É neste jogo entre narrações e digressões de um lado, e discursos, de outro, que percebemos, por exemplo, o despreparo de um comandante ou quando este se utiliza da mentira33.

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Por seu turno, os fatos da guerra, denominados aqui como ―narrativas‖ para diferenciarem-se das digressões, são frutos de uma investigação rigorosa: ―considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de algum informante casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com maior rigor possível‖ (TUCÍDIDES, I.22.10-2). Para tal empreitada, o autor buscou os limitados registros escritos (limitação esta resultante do predomínio da cultura oral nesta conjuntura), e recorreu aos registros não escritos; e para a manutenção da fidedignidade da obra, Tucídides confrontou os relatos que obteve: ―[...] tudo – os debates na assembleia, as embaixadas, as manobras de

32 Cf. Item 1.1.1.

33 É indicado apenas um exemplo, pois essa questão é aprofundada no capítulo 2, por intermédio da análise dos

bastidores, as batalhas – precisava ser reconstruído a partir do que ele ouvira ou testemunhara‖ (FINLEY, 1991, p. 55). Quanto a isso, o historiador antigo escreve sobre as dificuldades de seu trabalho:

O empenho em apurar os fatos se constitui numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. (TUCÍDIDES, I.22.13-8)

Tendo em vista que Tucídides também se refere como testemunha ocular da Guerra do Peloponeso (TUCÍDIDES, I.22.3-4;12-13; V.26.21-22), suas ressalvas podem se estender a si próprio. Nesse caso, consideramos válida a sua intenção de manter-se neutro, evitando pender para uma observação tendenciosa, como exemplo do esforço para constituir um relato fiel. Por outro lado, há dois pontos que precisam ser considerados: primeiro, o registro da memória carrega suas fragilidades inerentes (ADOCK, 1963); e, segundo, por mais que Tucídides reafirme sua tentativa de compor uma obra fiel e exata dos acontecimentos, o que de fato o autor consegue é ―ser um historiador mais imparcial, na medida em que o seu tempo, o seu caráter e a sua formação lho permitiram‖ (BONNARD, 2007, p. 495).

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Quanto aos ―discursos‖, observa-se que foram utilizadas fontes diversas para a sua escrita (TUCÍDIDES, I.22.4). As palavras e o tom apresentados em cada um foram escritos do modo como o orador deveria ter adotado (TUCÍDIDES, I.22.5-6), de acordo com os assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados (TUCÍDIDES, I.22.8-9). Tucídides buscou aderir tanto quanto possível ao sentido geral do que foi dito (TUCÍDIDES, I.22.8-9), mantendo-se próximo daquilo que foi expresso nos discursos ao levar em conta o caráter do orador e as circunstâncias (ROBERT, 1987) – enquanto para Adock (1963) esta fórmula aproximou os discursos da realidade, para Sahlins (2006) o historiador antigo levou em conta apenas o ―temperamento étnico‖ de cada comunidade.

No mesmo registro totalizado estavam as diversidades caracterológicas entre os ousados atenienses e os conservadores espartanos, o que supostamente explicava significativas diferenças em suas respectivas estratégias militares e hegemonias imperiais. Ainda assim, foi o sagaz Temístocles quem fez de

Atenas potência marítima, o ambicioso Alcibíades quem concebeu e montou a grandiosa expedição siciliana. (SAHLINS, 2006, p. 121)

Nota-se que há um esforço em manter-se fiel à comunidade que cada discurso representou, e mesmo com a presença da marca pessoal do autor (ROMILLY, 2008), há vozes diferenciadas em cada um deles. Ou seja, os rastros do autor constatados na ―preferência [de Tucídides] pelo uso de palavras abstratas, [na] construção antitética do período, [na] concisão da linguagem‖ (ROMILLY, 2008, p. LI), não apagaram as características comuns de um povo – impressas nos discursos, por exemplo, dos atenienses, representados pela ―[...] ousadia e vigor na argumentação lógica que renúncia aos disfarces e meias palavras‖ (ROMILLY, 2008, p. LI). Recriando, assim, o espírito do logos do orador, em acordo com ideias e convicções que cada partido ou personagem adotava, Tucídides retrata o ethos de seus personagens.

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Após as observações quanto à metodologia adotada por Tucídides, percebe-se que há diferenças entre o manejo das fontes das narrativas e das digressões, por um lado, e as dos discursos, por outro. Para as primeiras, Tucídides ―aplica toda a sua capacidade e disciplina na busca da precisão total‖, ao passo que, nos discursos, o autor ―expõe as questões e os conflitos centrais como ele os via – mas não necessariamente como eram vistos por quem os proferiu, e, sem dúvida, não da maneira exata como foram proferidos‖ (FINLEY, 1991, p. 62). Entendemos, como Várzeas (2004, p. 280), que ―os discursos são os momentos em que, com maior nitidez, a ficção se instaura‖ 34.

Tentando ser fiel aos factos, a verdade é que a sua atitude [de Tucídides] é retórica – não apenas ao nível da expressão, mas também ao nível do arranjo dos elementos de que dispõe, e com cuja exposição pretende produzir um determinado efeito no leitor. (VÁRZEAS, 2004, p. 280)

O resultado deste procedimento pode ser associado ao encanto dos poetas, cujo trabalho também resultava em um impacto embriagante no ouvinte; todavia, o efeito da obra de Tucídides é outro, não é o ritmo que encanta, é o logos que convence. Essa arte é

34 ―Aqui está uma ficção muito coerente, que não se pode compreender a luz do rigor histórico, mas sim pela

influenciada pela eloquência judiciária (ROBERT, 1987), já que a época de Tucídides é a dos sofistas e a da retórica – para Romilly (1998, p. 117), o autor estaria ligado a uma forma específica de expressão: ―debate oratório‖.

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Como último ponto, observa-se que relatar a Guerra do Peloponeso se trata de ilustrar um objeto que extrapola os limites do retratável, pois a guerra é um evento de origem humana, complexo e amplo. Desse modo, o retratista necessita delimitar o que será ilustrado e o que não será. Disso, parte um segundo ponto: todo fato registrado sofre intervenção do autor, pois é submetido ao processo de seleção e organização das informações – entende-se que alguns acontecimentos serão contados, outros não. E por mais adequado que seja o refinamento utilizado como critério de escolha, está implícita no ato de decidir a exclusão. Soma-se a isso outra variante que impacta no registro: a forma como são contados os fatos; disso resulta uma construção na qual tudo ―é proposital, cada palavra, cada desvio, cada silêncio, cada observação, contribui para destacar um significado distinguido e imposto por ele [Tucídides]‖ (ROMILLY, 1998, p. 15).

Assim, como historiador, Tucídides optou por relatar alguns acontecimentos e, inexoravelmente, deixar de lado outros – para Finley (1991, p. 61), Tucídides aplica um critério pessoal nessa escolha, e, seja de modo consciente ou não, o que o norteia são ―suas ideias acerca da natureza política, do comportamento social, em suma, acerca da história‖. Para Sahlins (2006, p. 126-7), ―o contar história histórico é o recontar, desde o começo, de um resultado já conhecido, aquele conhecimento que guia a seleção (dos arquivos) dos sucessivos eventos da narrativa‖. É deste modo que Tucídides também precisou escolher descrever os personagens por um viés e não por outro, deixando inclusive de abarcar sua complexidade como humano. Disto resultam personagens delimitados, quando não modelos a serviço de uma ação educativa.