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1.3 Os discursos na obra tucidideana

1.3.2 Os discursos antitéticos

Em sua obra, Tucídides optou por registrar os pontos principais de uma assembleia produzindo dois discursos opostos, os discursos antitéticos (dissoi logoi Ao descrever uma assembleia, o autor procurou as falas que representassem posicionamentos diametralmente opostos, a fim de ilustrar as opiniões e ações em jogo (FINLEY, 1991) – a este recurso também se dá o nome ―antilogia‖ (ROMILLY, 2008; 1998). Segundo Tucídides (III.40.1-2), os discursos antitéticos são caracterizados pelas ―opiniões antagônicas e equipolentes‖, refletindo o modo de vida do ateniense do século V, haja vista que as antilogias são peças fundamentais para a deliberação nas assembleias, uma vez que oferecem a possibilidade de análise e discernimento dos prós e contras de uma situação (ROMILLY, 1998).

Ocupando parte substancial da obra, devido à sua extensão, os discursos antitéticos estão presentes nos momentos cruciais da guerra ―cujo exame exigia uma visão ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva dos acontecimentos para compreensão do presente‖ (ROMILLY, 2008, p. XLIX). Esses debates contrários são uma ―recriação vívida do ambiente de autêntica logocracia que caracterizou Atenas nesta época‖ (VÁRZEA, 2004, p. 280). Nesta recriação, pela escrita direta, o historiador antigo propicia ao leitor um lugar privilegiado ao acompanhar o raciocínio do orador, reduzindo a distância entre o leitor e os acontecimentos narrados pelo autor (VÁRZEAS, 2004).

No entanto, para gerar esse efeito, a escrita tucidideana dos discursos apresenta a maior carga de interferência do autor42, pois, enquanto nas seções narrativas buscou-se assegurar a precisão, utilizando o tom impessoal e não tecendo julgamentos, os discursos proporcionam ao leitor subsídios para analisar e julgar os argumentos dos personagens e até tomar partido de um dos lados do debate (VÁRZEAS, 2004). Neste processo, o leitor não é apenas induzido a tornar-se parcial, como também, posteriormente, acompanha os resultados dessas decisões. Propondo uma relação de causalidade, Tucídides vai moldando os seus leitores ao seu modo de enxergar as ações e reações constituintes da dinâmica da guerra. Quanto a isso, Várzeas (2004, p. 281) reforça essa relação: pelos discursos, Tucídides ―[...] permite-nos perceber o que estava verdadeiramente em causa nas opções que foram tomadas durante a guerra e que determinaram o seu andamento‖.

Observa-se, portanto, que Tucídides ao reconstruir os raciocínios de seus personagens (ROMILLY, 1998) coloca ―a nu o que há por trás da narrativa – as questões políticas e morais, os debates e os desacordos, quanto à ação política, as possibilidades, os enganos e os motivos‖ (FINLEY, 1991, p. 63-4). Neste ponto, a sua escrita é ―mais literária que histórica‖ (VÁRZEAS, 2004, p. 281).

Esta interferência também é comprovada pelo rastro de artificialidade presente nesta forma de expressão. Pois a oposição entre os discursos não está limitada à conclusão oposta, ela se estende para os diversos pontos contrários ao longo das falas, o que resulta em ―construções sistematicamente paralelas e inversas‖ (ROMILLY, 1998, p. 119), ou seja, construções rígidas:

Comparando um [discurso] com outro, opondo argumento a argumento, utilizando a favor de cada um todos os recursos de uma hábil dialética, sublinhando pela própria forma o que poderia haver em cada tese de incompleto e ambíguo, permitindo por meio de paralelos, ecos e retomadas, acompanhar passo a passo o progresso das refutações ou das inversões, ele facilitava ao máximo a tarefa desse árbitro que é o seu leitor. (ROMILLY, 1998, p.152)

Romilly (1998), no excerto, aborda dois pontos relevantes: a técnica empregada por Tucídides e o juízo por parte do leitor, sendo que o primeiro leva ao segundo. Quanto à técnica, é válido ampliar sua descrição, para melhor compreender os discursos que serão submetidos à análise. De início, compreendemos que as antilogias funcionam dentro da lógica dos discursos deliberativos e a partir de manobras discursivas que buscam ―[...] recuperar o que foi possível do adversário, seus fatos, suas ideias, suas palavras e suas distinções‖ (ROMILLY, 1998, p. 129). As técnicas empregadas nesse âmbito objetivavam enfraquecer a argumentação do opositor e até desarmá-lo, deixando-o sem condições de rebater o que foi dito. Segundo Romilly (1998), pelas técnicas desenvolvidas nesse contexto, era possível invalidar o argumento do adversário, anulando-o pela refutação; inverter o argumento, fazendo-o voltar-se contra o opositor, pela inversão; e, pela retorsão, mostrar que a argumentação favorável à causa/polis é, na verdade, favorável aos inimigos.

Assim, acreditamos que os discursos opostos elaborados por Tucídides representam a arte do debate cujo propósito é convencer os ouvintes. O orador entra na disputa pela conquista do ouvinte para seu ponto de vista sobre um mesmo acontecimento (ROMILLY, 1998), buscando ao mesmo tempo em sua fala beneficiar a si próprio e prejudicar o adversário.

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Entendemos que o acréscimo dos discursos aos estudos da arqueologia e às narrações foi a resolução de Tucídides para atingir o objetivo de sua obra: trazer à luz a natureza humana, uma vez que os discursos asseguram a constituição dos modelos, ou seja, as generalizações43, ao relacionar ideias individuais às ações coletivas:

Foi principalmente através dos discursos, expressão do pensamento que regia a execução dos atos, que Tucídides conseguiu completar o relato dos fatos com a análise do presente, com a reflexão sobre o passado e com os planos e prognósticos do futuro. Esse recurso de expressão que a história herdou da tradição épica deu-lhe possibilidade de, a partir do fato concreto e singular, dar a conhecer as ideias que nortearam as ações praticadas na guerra. (ROMILLY, 2008, p. XLIX, grifo nosso)

Neste exercício de construir discursos antagônicos sobre um mesmo tema utilizam-se algumas técnicas, conforme observado anteriormente, e o resultado disso é a possibilidade de serem expostos variados aspectos de uma questão. Ao ouvinte é subsidiada a análise da proposta apresentada, já que as condições para o exame são favoráveis: o ―discurso isolado destaca ideias; os discursos antitéticos, ao opô-las, examinam-nas mais de perto‖ (ROMILLY, 1998, p. 117).

Robert (1987) e Romilly (2008) concordam que, apesar da interferência de Tucídides na escrita dos discursos antitéticos, o autor é impedido de exprimir suas próprias ideias e opiniões por esta forma de expressão. Isso porque, por serem antilogias, os discursos estão em oposição e não tendem a uma opinião ou outra. O julgamento do autor não estaria presente no ―verso e no reverso‖ de uma questão (ROBERT, 1987), pois isso Tucídides guarda para alguns momentos, nos quais explicita, por exemplo: ―causa da guerra: o medo que o progresso da Atenas despertava nos espartanos; influência de Péricles; caráter de Alcibíades‖ (ROBERT, 1987, p. 62).