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1.2 A obra

1.2.1 Objetivo da obra: a posteridade

27 ―Tucídides voltou a Atenas depois de vinte anos, isto é, depois de 404, ano da rendição de Atenas aos

espartanos […] As diferentes versões sobre sua morte, tanto as que a apresentam como natural como as que falam de morte violenta, ou em Atenas ou na Trácia, não merecem fé e não passam de hipóteses levantadas para justificar a interrupção brusca da obra no Livro VIII‖ (ROMILLY, 2008, p. XI). O general Xenofonte nos Livros I e II da obra Helênicas escreve a continuação da narração de Tucídides do ponto em que foi interrompida.

Ao relatar a Guerra do Peloponeso sem a intervenção divina como elemento circunscrito aos acontecimentos da contenda, Tucídides objetiva indicar que a natureza humana é a causa dos êxitos e dos fracassos observados ao longo da história. A guerra, portanto, é um pretexto – e para Bonnard (2007. P. 502) a história que Tucídides contou é do ―[...] nascimento, da formação, do crescimento de um império, o império de Atenas [...] e o seu desmoronamento‖, fenômenos de origem humana28.

O historiador antigo, ao interpretar a realidade adotando o crivo racional como condutor de sua escrita, afasta sua obra da busca pelas grandes competições nas quais estavam envolvidos os poetas, declarando: ―Na verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum prêmio‖ (TUCÍDIDES, I.22.22-25). Nesse excerto há o primeiro indício de que o objetivo da obra não se consome no presente, mas sim, como um legado, o seu foco é a posteridade. Magalhães (2001, p. 51) endossa este ponto de vista, acrescentando que a crença de Tucídides na racionalidade resultou numa obra cujas pretensões estão ancoradas na ―capacidade reflexiva do homem‖ – ou seja, ao aplicar esse juízo na composição da obra, Tucídides apostou na capacidade dos homens em apreender o conteúdo nela presente e em utilizá-lo sob o crivo racional (BONNARD, 2007).

Para Bonnard (2007, p. 500), Tucídides também ―está convencido de que há leis na história e de que essas leis nos são inteligíveis‖, independente da época que são analisadas29. Essa generalização da compreensão está pautada no uso da razão como elemento comum entre os homens e independente do tempo e espaço. No entanto, na avaliação do próprio autor, o quadro é de pessimismo: ―Dessa forma as revoluções trouxeram para as cidades numerosas e terríveis calamidades, como tem acontecido e continuará a acontecer enquanto a natureza humana for a mesma‖ (TUCÍDIDES, III.82.10-2, grifo nosso). Isso significa que existem elementos causadores das calamidades que são inerentes ao homem, já que fazem parte de sua natureza: ―[...] sendo tal força inerente e inseparável da espécie humana, continuará ela a se manifestar desde que persistam os homens em existir‖

28 Cabe ressaltar que este parece ser o objetivo final de Tucídides,não o primeiro. Pois que é fruto da reflexão do

homem que acompanhou a guerra do início ao fim, e para narrá-la aplicou sua capacidade analítica e tirou conclusões sobre o ―jogo das paixões humanas‖ (BONNARD, 2007, p. 501-502).

29 Lembra-nos Jaeger (2010, p. 447) que esta concepção de repetição dos acontecimentos é contrária ao que se

concebeu na modernidade: ―para a consciência histórica, nada na História se repete. O acontecer histórico é absolutamente individual. E na vida individual não entra a repetição‖.

(MAGALHÃES, 2001, P. 59). A História, por essa persistência, será um patrimônio a serviço das gerações vindouras.

O segundo indício de que a obra de Tucídides também se destina à posteridade é a orientação temporal apresentada na obra. Caso o autor tivesse destinado sua narrativa histórica somente aos seus conterrâneos contemporâneos, seriam dispensáveis as indicações do ano, das estações verão e inverno e das referências ao plantio do trigo – para o ateniense do final do século V compreender o período em questão, bastaria apenas a indicação do arcontado:

Nós dizemos que a Guerra do Peloponeso começou em 431 a.C.. Um ateniense teria de dizer que começou no arcontado de Pitodoro, que não teria qualquer significado para um não ateniense, ou mesmo para um ateniense após 20 ou 30 anos, a não ser que este possuísse uma lista dos arcontes (que ocupavam o cargo por apenas um ano) à sua frente. (FINLEY, 1991, p. 59- 60)

Por esta razão, confirma-se que a escolha metodológica30 de Tucídides por esta organização temporal também contribui com seu objetivo e reforça sua crença declarada sobre a natureza humana, pois ao generalizar a abrangência da obra, o historiador antigo reafirma sua esperança em escrever algo que contribua com a humanidade. Trafegando por temas imemoriais abordados por filósofos e poetas (FINLEY, 1991), Tucídides sustenta a finalidade da História, em especial por descrever tipos humanos como Alcibíades. Acredita-se que, ao generalizar o comportamento humano, o autor não apenas expressa seu conceito de humano, como também, num lampejo otimista, deposita nesta crença a possibilidade de seu público ampliado se identificar e encontrar referências em seus escritos, independente do contexto em que estão inseridos31.

Ainda quanto ao sistema de datação, nota-se que ao ordenar as informações didaticamente ou na ordem em que ocorreram (TUCÍDIDES, II.1.4-6), o autor criou o encadeamento lógico dos fatos, estabelecendo uma relação causal entre eles. Entendemos que a realidade narrada é mais complexa e menos encadeada logicamente como propõe Tucídides,

30 ―Deve-se contar o tempo de acordo com as divisões naturais do ano, e não pela lista dos nomes dos

governantes em cada lugar, sejam eles arcontes ou outros que, em consequência do exercício de algum cargo, servem para fixar as datas de acontecimentos passados, no pressuposto de que tal método é mais confiável; na realidade ele não é preciso, pois um evento pode ocorrer no início de seu período de exercício do cargo, ou no meio, ou em qualquer outra fase do mesmo. A contagem do tempo por verões e invernos, adotada nesta História – desde que cada divisão corresponda à metade de um ano – indicará que houve dez verões e outros tantos invernos nesta primeira guerra‖ (TUCÍDIDES, V.20.3-12).

31 A ideia de personagens como retratos humanos passíveis de investigação será explorada e ampliada adiante

mas, da mesma forma, entendemos que a fragmentação e a ordenação das informações foram imperativas para a composição de uma obra desta natureza.

[...] a composição da narrativa exigiu uma grande habilidade para que ficasse evidente o encadeamento e o cruzamento das séries de acontecimentos que constituíram a guerra dos peloponésios e atenienses, e não apenas o conjunto dos fatos isolados ocorridos dentre de um limite de tempo num determinado espaço geográfico. (ROMILLY, 2008, p. XLVIII)

Verifica-se, portanto, que há ao menos duas razões para a escolha de Tucídides por esta forma de datação e ordenação dos fatos: (1) um não ateniense que tivesse contato com a obra em anos posteriores à sua escrita compreenderia o período no qual se desdobrou a guerra tão bem quanto um ateniense do final do século V, e, (2) em virtude, da alocação dos fatos em divisões temporais, o leitor encontraria a coerência originada da interpretação tucidideana dos fatos da guerra.

Esse segundo ponto também diz respeito à concepção histórica e política de Tucídides: ao apresentar os acontecimentos ligados a um curso total, ou seja, sem isolá-los, o autor antigo nos apresenta um ―mundo regulado por peculiares leis imanentes‖ (JAEGER, 2010, p. 449). Segundo Jaeger (2010, p.449), o que tornou Tucídides superior aos outros historiadores políticos foi a ―profunda intuição da essência e das leis do acontecer político‖. Entretanto, o que não é possível afirmar é se Tucídides intuiu, de fato, essas leis ou se elas foram regularizando a construção dessa história na medida em que o autor encadeou os fatos políticos e o acontecer da guerra e ao debruçar-se sobre ambos, obteve tais reflexões.

O terceiro e último indício de que a obra destina-se à posteridade, é o relato sobre a peste em Atenas. Ao relatar a epidemia que dizimou parte da população ateniense no início do segundo ano de contenda, o autor reafirma seu desejo de que a obra alcance a posteridade. Por se tratar de uma doença cuja origem e cura os médicos da época não souberam detectar, Tucídides faz um relato detalhado sobre o histórico da doença e seus sintomas; e a razão para tal procedimento é citada na introdução do relato:

[...] descreverei a maneira de ocorrência da doença, detalhando-lhe os sintomas, de tal modo que, estudando-os, alguém mais habilitado por seu conhecimento prévio não deixe de reconhecê-la se algum dia ela voltar a manifestar-se. (TUCÍDIDES, II.48.10-3)

De modo direto e por uma segunda vez, Tucídides expressa o desejo de evitar a repetição de fatos calamitosos. Da primeira vez, o autor mencionou os fatos da guerra, e neste excerto está em foco a epidemia que atingiu Atenas. Verifica-se aí que um desejo clarifica o

outro, pois tanto para a guerra quanto para essa epidemia Tucídides dedica-se a descrever os sintomas de forma detalhada e, em ambos os casos, tinha em vista a posteridade.

Por um lado, a crença nessa repetição dos fatos terríveis, como já pontuamos, é fruto do pessimismo do autor; por outro, o ato de registrar ambos os acontecimentos é uma ação otimista, uma vez que denota a esperança nas decisões das futuras gerações, que, uma vez imbuídas das informações da obra, poderão tomar decisões diferentes quanto à guerra e poderão avançar nos estudos quanto à peste.

Vale ressalvar que Tucídides não, necessariamente, propõe evitar a guerra – a questão moral que a envolve hoje em dia não faz parte do pensamento grego antigo. Naquele período, a guerra, não só era vista como necessária, como fazer mal aos inimigos estava correto, dentro dessa lógica e valores. Nesse caso, portanto, o que o autor buscaria alertar é que as cidades não cometam os mesmos erros que levaram Atenas à ruína. E, por serem os equívocos frutos da natureza humana, seria lícito afirmar que os personagens de Tucídides são o meio pelo qual o autor transmite a sua mensagem.