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É responsável pelo estabelecimento do princípio de realidade. Quando está bem constituída, como no neurótico, o sujeito reconhece que a realidade não se dobra a seu

desejo nem pode ser criada a partir de sua onipotência. O mundo tem resistência própria e não se confunde com seu desejo ou com sua fantasia.

Costuma-se dizer que o não neurótico tende a confundir realidade e fantasia. É um modo arriscado de colocar as coisas, pois o analista pode se arrogar o direito de dizer como as coisas são “de verdade”. É mais preciso dizer que a realidade é criada a partir da fantasia, isto é, da matriz simbólica a partir da qual o sujeito apreende o mundo e a si mesmo – que é uma matriz bem diferente da do neurótico.

Ainda assim, cabe dizer que a função realitária está mal constituída no não neurótico se estivermos nos referindo a um recorte muito específico da realidade: a realidade da separação do objeto, a concepção do objeto como outro-sujeito. Tal realidade, de fato, não existe para o não neurótico; ele não vê as coisas assim, com todas as consequências dessa forma de enxergar o mundo. Já o neurótico é capaz de conceber esse setor da realidade. Ele vê sujeito e objeto como entidades separadas, o que acarreta outras consequências, outra visão de mundo. No capítulo 5, “Neurose e não neurose: da clínica à teoria”, apresento a visão de mundo do neurótico e do não neurótico.

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Vejamos a construção da realidade pela subjetividade não neurótica:

João, um não neurótico, espera tudo de seu objeto porque o vê como onipotente. Ele não o vê assim porque quer, mas porque precisa: em seu desamparo absoluto, ele não poderia sobreviver sem tal objeto. Percebe-se que “distorcer a realidade”, ver o objeto como onipotente, é uma construção defensiva. Nesse sentido, não adianta contestar a defesa, mostrando ao analisando que o objeto não é onipotente. É preciso criar, no campo transferencial, condições para elaborar as angústias que estão exigindo essa defesa.

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Agora, vejamos a construção da realidade pela subjetividade neurótica:

José, um neurótico, também “distorce a realidade”. Ele sofre de inibições sexuais. A análise mostra que a namorada, por suas características, é vivida como

interditada. Do ponto de vista da “realidade”, a namorada não é a mãe, não há motivo para que seja vivida assim. Do ponto de vista da realidade psíquica, no entanto, provavelmente há pontos de contato entre ambas. De nada adiantaria sugerir que a namorada não é a mãe, corrigindo sua percepção. Ao contrário, é preciso mostrar de que maneira a mãe está na namorada e como esta última pode ter sido desejada precisamente por apresentar certas características maternas.

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Voltemos, porém, ao neurótico e ao princípio de realidade. Se ele entende que esta não se dobra a seu desejo, isso certamente terá consequências. Ele pode julgar, em certas situações, que é preciso adiar a obtenção do prazer, buscar um prazer alternativo ou, mesmo, renunciar a ele. A percepção da realidade como dotada de espessura própria é fonte de conflitos e sofrimentos para o neurótico. Diferentemente do não neurótico, contudo, que tão só negaria a realidade, o neurótico se vê obrigado a fazer renúncias e lutos. É que suas defesas incidem preferencialmente, como veremos, sobre sua vida pulsional – erótica e/ou agressiva – e não sobre a percepção da realidade.

Em termos bionianos, o neurótico não “alucina” o mundo – o que pode acontecer com o não neurótico quando ele vê a realidade de uma forma que a torna intolerável. Isso significa que, por maior que seja a fome, o neurótico não vai ver o seio se ele não estiver ali. Ele é capaz de representar sua experiência de desprazer, bem como a “ausência do seio”. No não neurótico, a representação da “ausência” não se forma. Ou ela é preenchida pela presença invasiva do seio mau ou não pode ser significada pelo sujeito, que fica diante de um sem-sentido, de uma experiência de vazio angustiante.

É essa angústia que faz a função realitária vacilar:

Um analisando borderline foi abandonado pela mulher. Ficou devastado. Nunca imaginou que isso pudesse acontecer. Lidou com isso convencendo-se de que ela ainda o ama e vai voltar. Interpreta seus mínimos gestos como “evidências” disso. Embora continue indo ao trabalho e fazendo tudo o que é preciso, defendeu-se da dor criando um fragmento da realidade a partir de sua onipotência. A função

realitária está mal instalada. Sintetizando:

O neurótico entende emocionalmente que, em certo nível, precisa se adaptar ao mundo, já que este não se adaptará a ele.

O não neurótico até pode entender isso intelectualmente, mas, emocionalmente, isso é inconcebível.

Vejamos o objeto concebido emocionalmente como onipotente:

Outro analisando sente raiva quando a esposa, angustiada, pede que ele a ajude com os filhos. Ele sabe, intelectualmente, que deveria lhe dar apoio − mas sente que ela deveria poupá-lo de seus problemas. É que no regime do tudo ou nada, a partir do qual ele enxerga a realidade, ele vê um objeto que tem capacidade para resolver tudo e ele, nada. Por isso, ela teria a obrigação de não sobrecarregá-lo com tarefas que ele vive como estando acima de suas forças – e, portanto, angustiantes.

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Do ponto de vista do neurótico – quando o princípio de realidade está bem instalado –, a representação do objeto não é absoluta, mas nuançada. Ele é capaz de enxergar a complexidade do objeto sem se desorganizar psiquicamente. Uma analisanda neurótica é capaz de dizer: “Meu pai me diz coisas que me machucam muito, mas sei que ele gosta de mim”. Ela está em pleno contato emocional com a complexidade de seu objeto, mesmo que ele seja fonte de conflito.

O neurótico tolera o conflito, apesar da angústia. O não neurótico, por sua vez, não o tolera.

Não porque não queira, mas porque não tem matriz simbólica para apreender nuanças, nem para conceber a complexidade do objeto. Sua matriz simbólica só apreende extremos: tudo ou nada. Em suma, ele não tem software para processar realidades complexas. Por isso recua, recusa, se angustia e se desorganiza diante de algo que é vivido como sem- sentido. Para quem vê “de fora”, o não neurótico tem ódio à realidade. Para quem vê “de

dentro”, ele tem ódio porque é invadido por angústia quando se percebe incapaz de elaborar estímulos complexos da realidade. Alguém só odeia matemática porque se angustia diante de problemas que precisa resolver sem ter a mínima ideia de como fazer isso.

Vejamos a construção de uma realidade simplificada:

A analisanda não neurótica se queixa de que tem de cuidar de tudo em casa, o marido nunca faz nada. Ela mesma havia afirmado, contudo, em outra ocasião, que ele a ajudava bastante em momentos de desespero. A cada momento, apenas uma parte da realidade é percebida.

A cisão é o mecanismo de defesa que impede as duas percepções (marido que ajuda/marido que não ajuda) de entrarem em contato uma com a outra.

Tudo isso para mostrar que há outro sentido em que se pode dizer que o não neurótico apresenta falhas na função realitária (vimos que ele não percebe, ou melhor, não concebe o objeto como outro-sujeito – a realidade da separação do objeto). Para que ele possa se relacionar com a realidade, ela precisa ser simplificada. Para isso existe a cisão. Assim, embora se diga que o não neurótico “nega a realidade”, seria mais preciso dizer que parte dela não chega a ser percebida.

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