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A saída da posição subjetiva do narcisismo primário rumo ao narcisismo secundário

Os dois autores referenciados neste capítulo, Juignet e Roussillon, usam a expressão narcisismo primário para se referir a coisas diferentes. Juignet chama de narcisismo primário o longo período de constituição das bases, funções e fronteiras do eu. Esse período vai do nascimento à fase fálica, da indiferenciação entre o eu e o objeto primário até a conquista da autonomia, em torno dos quatro anos. Uma perturbação no narcisismo primário produz as estruturas não neuróticas. O narcisismo secundário tem que ver com a consolidação do narcisismo, a partir das identificações edipianas e pós-edipianas com ambos os genitores, com a identidade sexual e com as identificações provenientes da cultura. Tem início na travessia edipiana e continua pela vida afora. Quando Roussillon fala em narcisismo primário, ele se refere ao período de indiferenciação sujeito-objeto, que vai do nascimento até as primeiras formas de conceber o outro, na posição subjetiva oral, quando tem início o narcisismo secundário, entre três e seis meses. Minha opção é por manter a terminologia de cada autor, alertando o leitor para essas diferenças.

Segundo Roussilon, a saída da posição subjetiva do narcisismo primário tem início em torno dos três meses, quando a mãe sai da posição subjetiva da preocupação materna primária. Do ponto de vista do eixo objetal, tem início a fase oral tardia, com todas suas ambivalências.

O sujeito, que até agora era apenas uma pré-concepção de sujeito, poderá ser reconhecido, e reconhecer-se como tal, quando, e se, puder se diferenciar/separar/discriminar/autonomizar com relação ao objeto primário. Para que isso aconteça, a subjetividade terá de abandonar, e fazer o luto, das ilusões que caracterizam o narcisismo primário. Essa ilusão fora sustentada até então pela adaptação suficientemente boa da mãe, em estado de preocupação materna primária. Ela sempre dava um jeito de estar lá, onde era esperada. Funcionava como um objeto criado/achado, o que era essencial à constituição do narcisismo primário.

O que marca a passagem para a posição subjetiva do narcisismo secundário, e que caracteriza uma verdadeira revolução, é que o sujeito já não tem a ilusão de que é o criador do seio, criador de sua própria fonte de vida e de gratificação. Ele passou da pré- concepção à concepção de que a gratificação e mesmo a frustração são experiências que se originam fora dele, de um não-eu. A saída do narcisismo primário é consubstancial à concepção do objeto como não-eu. Ainda haverá, porém, um longo caminho até que advenha um novo sujeito capaz de viver, representar e apreender o outro como outro- sujeito.

Embora o objeto sempre tenha sido percebido como “outro”, até porque há uma pré- concepção da alteridade, isso está longe de significar que pudesse ser concebido como outro-sujeito. A percepção implica uma vivência subjetiva de discriminação e de organização da percepção de que há outro corpo além do meu. Já a concepção implica uma experiência subjetiva mais abstrata e conceitual: conceber aquele outro corpo como um sujeito em si, e não apenas como um não-eu.

A experiência absolutamente fundamental para que essa revolução subjetiva possa acontecer é a experiência da sobrevivência do objeto. Parafraseando Winnicott, para quem a experiência do objeto “criado/achado” funda o narcisismo primário, Roussillon sugere a

expressão “destruído/reencontrado” para descrever a experiência que promove a saída dessa posição e o acesso a uma nova.

A primeira teoria psicanalítica sobre o surgimento do objeto como separado atribuía à frustração e ao limite que a realidade impunha à realização alucinatória do desejo – e, portanto, à onipotência infantil – o movimento que produzia essa mudança subjetiva. É provável que o encontro com o limite tenha seu papel, mas a clínica mostra que, sozinha, a frustração não é capaz de produzir a concepção do objeto. Ela produz, antes, uma experiência de “ilusão negativa” – um sentimento de fracasso e culpa por não ter sido capaz de criar o seio: o seio simplesmente não estava lá, onde era esperado.

A frustração só pode dar origem à concepção de objeto outro-sujeito se for consequência de um primeiro movimento subjetivo da mãe, quando esta passa de mãe a mulher. Quando o bebê tem em torno de três meses, ela sai do estado de preocupação materna primária e volta a investir seus outros objetos de desejo, que tinham ficado entre parênteses. Ela deixa de se adaptar suficientemente ao bebê, como vinha fazendo até então. Não se coloca mais exatamente lá, onde é esperada; deixa o bebê esperar um pouco, não faz tudo o que ele quer. Em outros termos, deixa de sustentar a onipotência infantil.

O bebê irá reagir, em primeiro lugar, a essa desadaptação da mãe em seus cuidados com sua autoconservação. Ele vai perceber que a mãe falha, e vai sentir raiva por ter de esperar pela mamada, por não ser pego no colo assim que chora. Ele vai reagir principalmente à mudança de posição subjetiva da mãe que essa desadaptação sinaliza. De alguma forma − talvez em razão da pré-concepção da alteridade −, ele vai sentir, antes mesmo de compreender o que está acontecendo, que ela falhou porque quis, deixou-o sofrer porque quis. E então é invadido por uma raiva impotente. E, como nessa posição subjetiva ele sente que tudo provém dele, interpreta a falha materna como produto de seu próprio ódio. De seu ponto de vista, ele destruiu sua capacidade de criar/achar o objeto de sua plena satisfação. O seio perfeito está perdido. O passo mais delicado, como veremos, vai ser “se conformar” em perder de vez esse objeto, aceitando em seu lugar objetos substitutos, mesmo que imperfeitos.

seus outros objetos, abrindo espaço para a mulher que ela também é. Até que depara com a raiva do bebê por seu movimento de autonomia. Ela vai, então, reagir à reação do bebê. Sua reação irá depender, por um lado, do modo pelo qual interpreta a raiva do bebê; por outro, de seus próprios conflitos entre as representações de si como mãe e como mulher. A possibilidade de o bebê se conformar em perder a mãe do narcisismo primário e se satisfazer com a outra − esta que não vive apenas para ele − dependerá, em grande medida, das reações da mãe à raiva do bebê.

Ela pode interpretar a raiva do bebê como tirania. Se for esse o sentido que ela atribuir ao choro do bebê, pode ficar com raiva do bebê-tirano e puni-lo, deixando-o chorar mais tempo do que o necessário ou sendo menos carinhosa com ele. Em suma, ela pode “romper” com ele, ainda que temporariamente.

Ela pode ainda interpretar o choro como acusação, e se sentir culpada por ter outros desejos além do bebê. Pode não aguentar a culpa e recuar, voltando à dedicação exclusiva. Será, contudo, uma mãe ressentida: estará presente, fará tudo o que tem que ser feito, sem que seu coração esteja lá. Além de ressentida, ela pode ficar deprimida por ter tido de abandonar seus outros objetos do desejo. É outra forma de “romper” com ele.

Em uma terceira possibilidade, ela pode interpretar o choro do bebê como um sofrimento intolerável por parte dele. Pode sentir que está fazendo muito mal a seu bebê e tentar compensar sua ausência reparando danos imaginários.

Essas três maneiras de reagir à raiva do bebê mostram que ela não conseguiu sobreviver psiquicamente. Em sua fragilidade, ela não conseguiu manter o vínculo bom com ele, fora do idílio da preocupação materna primária. Então, ele tem a experiência subjetiva de encontrar, “fora”, a mãe má que ele havia criado “dentro”, a partir de sua raiva e decepção. É a experiência da ilusão negativa. Esse encontro do mal dentro com o mal fora confirma, do ponto de vista do bebê, sua onipotência; não como antes, em sua capacidade de criar seu próprio prazer, mas em sua capacidade de criar seu próprio desprazer. A ilusão de que ele é a origem de tudo não se altera: ele continua na posição subjetiva do narcisismo primário.

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