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Primeiro sonho. Vejo crianças brincando com um caixãozinho branco na piscina. Fico horrorizada e quero tirar o caixão de lá para enterrá-lo.

Segundo sonho. Estou sem um pedaço do pé, mas continuo andado. Fico preocupada, quero ir para o hospital, mas meus pais dizem que não é nada, que posso continuar assim. Vou sozinha ao hospital.

Os sonhos mostram que seus objetos não entram em contato com a morte da criança nela (o verdadeiro self no caixãozinho), nem com a mutilação de aspectos básicos do self (falta um pedaço do pé). No lugar disso, solicitam a hiperadaptação, conseguida à custa do falso self (crianças brincando com o caixãozinho, como se não fosse nada; andar sem um pedaço do pé). Com a mudança de posição subjetiva assinalada, consegue perceber a gravidade da situação e começa a fazer alguma coisa a respeito: vai sozinha ao hospital, quer enterrar o caixãozinho.

Terceiro sonho. Vejo uma procissão de corpos carbonizados. São do acidente da TAM. Todos estão em posição de desespero.

Mais um sonho que dá notícias de sua nova posição subjetiva: ela já não finge que está tudo bem (brincar com o caixão, andar sem um pedaço do pé); com a ajuda de seu novo objeto, começa a fazer um contato genuíno com o tamanho de sua dor (corpos carbonizados em posição de desespero).

***

Sonhei que trabalhava num pronto-socorro e atendia um bebê cujo rosto havia sido mordido por ratos.

Vi num livro de arte sobre a Nazaré Pacheco um berço protegido por um tule feito de giletes. Que horror, o tule, que deveria proteger, feito de giletes!

Nessa nova posição subjetiva, pode falar dos horrores sem medo de desorganizar o objeto.

O processo de simbolização do trauma precoce é retomado no campo transferencial. Uma rede de representações começa a ser tecida para falar do que até então era inominável: o bebê roído por ratos, um berço cercado por giletes, uma criança morta, corpos carbonizados em desespero.

“Interpretação” – São imagens terríveis, essas que você me traz. As crianças, em vez de estarem protegidas, estão expostas a todos os perigos. Tem razão, é uma palavra para cada lágrima.

6

Comecei a ler Clarice Lispector. Ela era uma pessoa muito estranha. Comeu uma barata. Mas ela tem as palavras para aquilo que eu sinto. Também comecei a escrever, tem sido muito importante para mim, até me inscrevi numa oficina de escrita. Vou prestar vestibular para Letras. Por mim, largava tudo e ficava só lendo e escrevendo.

[...] quando eu era criança gostava de escrever. Tinha uma professora que me elogiava muito. Quando escolhi Economia, minha mãe me perguntou mil vezes se era aquilo mesmo que eu queria.

[...] minhas amigas ficam me dizendo que eu estou muito isolada, que estou deprimida, que preciso me tratar. Não tenho vontade de sair com elas, só quero ficar sozinha. Tenho medo de estar ficando louca.

A partir da inscrição de um primeiro objeto continente (Deus, a analista), seu mundo se amplia, e ela passa a procurar cada vez mais objetos continentes para suas experiências subjetivas (a literatura, Clarice Lispector). Mesmo os estados mentais mais estranhos podem ser partilhados com os novos objetos. Apropriando-se de seus estados subjetivos, está e se sente muito mais viva. Está apaixonada pela literatura, o que mostra que está saindo da depressão. Mas as amigas (e, em parte, ela mesma) se assustam com sua alteridade, não sabem como lidar com ela nessa nova posição subjetiva.

Sua vida psíquica vai sendo investida, reconhecida e legitimada pela analista no campo transferencial. As estranhezas (baratas) passam a ter um lugar. A literatura é uma representação do trabalho analítico: ambas lidam com a subjetividade, ambas estão enormemente investidas. Clarice Lispector é uma representação da analista, que a acompanha, com palavras, em seu mundo sombrio. Com isso, a libido volta a fluir e o desejo ressurge com força (“Por mim, largava tudo e ficava só lendo e escrevendo.”). Mas seus objetos ficam assustados com o surgimento e com a afirmação de seu desejo (“Minhas amigas ficam me dizendo que eu estou muito isolada, que estou deprimida, que preciso me tratar.”) e tendem a desqualificá-lo. Talvez porque temam sua autonomia. Minha função, no campo transferencial, é simplesmente ajudá-la a sustentar essa nova posição, ainda incipiente. A tendência a voltar à posição anterior é forte, talvez pelos benefícios narcísicos que auferia por funcionar com a eficiência de uma máquina.

“Interpretação” – Você está redescobrindo, com a Clarice, coisas preciosas: o contato consigo mesma. A paixão pela literatura vem com tanta força que dá até medo. Mas também você está se sentindo mais viva.

7

As minhas amigas vivem para o trabalho, saem do banco às 10 da noite. Eu também vivia assim, mas agora sinto que o banco me sufoca. Preciso ter tempo para mim, nem que seja para não fazer nada. É tão difícil colocar limites, eles sugam tudo o que podem. Estou pensando em pedir demissão e ficar só com aquelas consultorias, que me garantem o básico. Preciso de tempo e de espaço para mim [...]. Eu queria estar presa, na cadeia mesmo, assim ninguém ia poder me pedir nada. Eu ia ficar lá dentro, sossegada, lendo.

Noutro dia, meu chefe veio me dizer, todo feliz, que vou ser efetivada. Ele quer que eu faça parte da nova equipe de qualquer jeito, disse que só confia em mim para mexer com aqueles investimentos. Foi ele que me ensinou tudo o que sei; ele nem imagina que eu não quero ser efetivada. Aliás, vai me achar uma louca, tem mil pessoas querendo essa vaga. Eu gosto dele, mas preciso de tempo livre, senão volto a ficar sem oxigênio, como quando cheguei aqui. Não sei o que fazer, ele não vai entender, vai ficar com raiva de mim, se

sentir traído. E também tenho medo de estar tomando a decisão errada, e isso acabar me prejudicando no futuro.

Na posição subjetiva anterior, ela permitia que seu objeto se sentisse perfeitamente à vontade para despojá-la de seu tempo e espaço, de sua subjetividade. Era natural não ser vista como outro-sujeito, e sim como sua própria extensão (as amigas vivem para o trabalho; o banco quer que ela trabalhe 14 horas por dia).

Em sua nova posição, ela percebe essa demanda, mas já não se presta a atendê-la. Agora deseja ter seu tempo e seu espaço, sua autonomia. Isso, porém, produz um conflito que, até então, não existia: se o chefe a considera, literalmente, seu braço direito, não poderá se separar sem produzir dor, ódio e retaliação. Além, naturalmente, da culpa: como dizer “não” a um chefe que lhe ensinou tudo e lhe oferece as melhores oportunidades?

Ainda está muito frágil para sustentar por si só um desejo próprio. Surge o ponto da falha na triangulação edipiana: há um pedido desesperado de um terceiro objeto (a grade da prisão) que contém a voracidade do objeto e que lhe garante um espaço para o autoerotismo (ficar lendo sossegada).

Seu objeto tem falhas narcísicas, e ela se vê convocada – e se oferece – a sustentar seu narcisismo. É um objeto invasivo, que não lhe concede espaço para o autoerotismo (tempo para “não fazer nada”), pois precisa dela para suas próprias necessidades (ela é extensão do chefe). Percebe-se a intensidade da angústia de engolfamento, de intrusão (trabalhar catorze horas por dia), de onde vêm as imagens frequentes de “falta de oxigênio”. Por outro lado, ela também precisa do objeto (tem medo de pedir demissão e ser prejudicada): é a angústia de separação. Além disso, separar-se é atacar o objeto, mutilá-lo e enfrentar sua fúria (vai se sentir traído), e lidar com sua própria culpa por traí-lo, em sua luta para ter existência própria. Nesse conflito “ou ele ou eu”, ela agora escolhe viver e não se sacrificar pelo objeto. De qualquer modo, está em curso a elaboração da separação sujeito- objeto.

“Interpretação” – É difícil enfrentar essa situação, dizer “não”, sabendo o quanto você vai fazer falta para alguém de quem gosta tanto. Difícil, quando a situação é do tipo “ou ele ou você”.

8

Finalmente criei coragem e disse ao chefe que não vou entrar na equipe dele. Vou sair do banco. Trabalhar só nas consultorias. Foi um alívio. Ele só não ficou bravo porque acha que eu continuo deprimida. Disse que eu devia tomar remédios, para não deixar a depressão estragar minha carreira. Completou dizendo que, quando eu melhorar, as portas estarão abertas para mim.

Perceber a voracidade do objeto e sua incapacidade em vê-la como outro-sujeito a ajuda a se separar psiquicamente dele.

Há um movimento de separação que se efetua, não tanto porque pede demissão, mas porque percebe o funcionamento psíquico do objeto. O essencial é que ela já não está identificada com a injunção materna, segundo a qual “ser diferente de mim é ser louca; estar separada de mim é morrer”. Ela só pode pedir demissão porque já se havia separado dessa voz interna.

“Interpretação” – Uhm... uhm..., mas você não parece achar que está doente, muito pelo contrário.

[5] Publicado originalmente na Revista IDE (2008), com o título “Destinos” e ligeiramente modificado para compor o presente capítulo, este texto foi escrito com a colaboração dos alunos que frequentaram um dos cursos de Psicopatologia na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, ministrado por Marion Minerbo, no segundo semestre de 2007. Seus autores são Marion Minerbo, Any T. Waisbish, Débora S. Seibel, Eliane S. Muszkat, Fátima A. P. da Silva, José Antonio S. de Castro, Ludmila Kloczak, Maria Aparecida Rocha, Maria Beatriz S. Rouco, Remo Rotella Junior, Sibila A. M. de Almeida, Silvia M. Bracco, Simone W. Feferbaum, Sonia S. Terepins e Suzana K. Kruchin. Quando de sua