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Função social e função ambiental da propriedade

CAPÍTULO III – CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O MEIO

3.3. A relação entre o Meio Ambiente e a estrutura do Estado de

3.3.4. Estrutura material do Estado de Direito: Ordem

3.3.4.2. Função social e função ambiental da propriedade

A função social da propriedade faz parte da estrutura material do Estado de Direito, pois a propriedade é um valor constitutivo da sociedade brasileira fundada no modo capitalista de produção, e o seu uso e gozo não podem visar apenas ao bem estar ou ao lucro individual.

A propriedade, direito real considerado no passado como um verdadeiro direito absoluto372, dá ao proprietário “a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” 373.

Originalmente, a função social da propriedade tinha por objetivo, possibilitar o controle estatal nas relações laborais, contratuais e comerciais por meio de um regime de exploração limitada e condicionada da propriedade, e não a proteção ambiental propriamente dita.

O exercício do direito de propriedade, ditado, segundo a orientação, para o cumprimento de sua função social está consagrado na Constituição Federal de 1988 nos artigos 5º, inciso XXIII (direitos e garantias fundamentais); 170, inciso III (princípios da ordem econômica); 186, inciso II (requisitos da função social da propriedade rural) e 225 (proporcionar uma sadia qualidade de vida).

372 Constituições de 1824 e 1891. 373 Art. 1228 do Código Civil de 2002.

Houve uma modificação da leitura do conteúdo da função social da propriedade, nos termos do espírito da Constituição Federal de 1988, ao reorganizar a destinação dos benefícios e custos ambientais, invertendo-se a sistemática do passado, em que os custos eram individualizados e os prejuízos (ambientais) socializados por muitos.

Álvaro Luiz Valery Mirra374 observa que a função social da propriedade destaca não somente o direito de propriedade, mas a imposição de um dever de exercer esse direito, observando toda a coletividade:

“Quando se diz que propriedade privada tem uma função social, na verdade está se afirmando que ao proprietário se impõe o dever de exercer o seu direito de propriedade, não mais unicamente em seu próprio e exclusivo interesse, mas em beneficio da coletividade, sendo precisamente o cumprimento da função social que legitima o exercício do direito de propriedade pelo seu titular”.

É importante esclarecer que, ao disciplinar o uso da propriedade, é imposto ao proprietário o dever de executar duas funções: a função social e a função ambiental da propriedade.

A função social da propriedade abrange o exercício do uso, gozo e fruição da propriedade sob a ótica social, envolve a imposição de restrições e regras ao direito de propriedade em benefício do bem-estar da sociedade, do respeito a liberdade de todos, da satisfação ajustada às exigências da moral e da ordem pública375.

Já a função ambiental da propriedade engloba a função social, ao envolver a proteção ambiental como meio de exercício daquela, isto é, ao disciplinar que o exercício da função social consiste na proteção do meio ambiente.

374 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ibid., p. 55 e 56. 375 Art. 29 da Declaração dos Direitos dos Homens.

Não é apenas uma limitação ao exercício do direito de propriedade, mas uma imposição ao proprietário de fazer uso da propriedade, sem que prejudique a coletividade e adequado à preservação do meio ambiente, a fim de garantir uma existência digna para todos.

Antonio Herman Benjamin376 fez um estudo comparado dos regimes de proteção constitucional do meio ambiente e constatou, dentre as cinco377 características comuns, o estímulo à atualização do direito de propriedade:

“(…) estimula-se a atualização do direito de propriedade, de forma a torná-lo mais receptivo à proteção do meio ambiente, isto é, reescrevendo-o sob a marca da sustentabilidade. Esboça-se, dessa maneira, em escalas variáveis, uma nova dominialidade dos recursos naturais, seja pela alteração direta do domínio de certos recursos ambientais (água, p. ex.), seja pela mitigação dos exageros degradadores do direito de propriedade, com a ecologização de sua função social, como melhor será visto adiante”.

A função ambiental da propriedade impõe a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a própria proteção do meio ambiente, de acordo com o conjunto de prescrições normativas que disciplinam o seu uso, gozo ou fruição.

É justificável, portanto, a intervenção estatal na propriedade privada por meio da elaboração de leis, a fim de disciplinar essas limitações, e os instrumentos e mecanismos para garantir, ao mesmo tempo, o direito de propriedade, e a preservação dos recursos naturais que nela se encontram.

Mas o Estado de Direito não pode ultrapassar os limites constitucionais para intervir na propriedade, sob o fundamento de buscar o exercício da função ambiental da propriedade, como observa Roxana Cardoso Brasileiro Borges378:

376 BENJAMIN, Antonio Herman. “Direito constitucional ambiental brasileiro”. Direito Constitucional

Ambiental Brasileiro / Org. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 67.

377 1) adota-se uma compreensão sistêmica; 2) compromisso ético de não empobrecer a Terra e a

sua biodiversidade; 3) Atualização do direito de propriedade; 4) Opção por processos decisórios abertos; 5) Preocupação com a implementação de certos direitos e deveres relacionados à eficácia do Direito ambiental e dos seus instrumentos.

“Esse conteúdo é determinado apenas através do direito positivo, não se admitindo função ambiental presumida. Equivale a dizer que os deveres do proprietário devem ser impostos por lei (em sentido amplo) e na medida estritamente necessária para a preservação do meio ambiente, não podendo a função ambiental justificar qualquer intervenção do Poder Público no direito de propriedade, que é um poder que Estado tem, mas dentro de limites constitucionais”.

A conscientização da escassez dos recursos naturais é imposta ao proprietário, ao mesmo tempo em que é imposto ao Poder Público o dever de exercer suas funções dentro dos limites legais, não só do poder de intervir na propriedade, mas também na elaboração de leis que disciplinem instrumentos e mecanismos para o cumprimento da função ambiental da propriedade.

Portanto, o exercício do direito de propriedade, além do dever de observar o bem-estar da sociedade, deve também buscar o uso racional dos recursos naturais existentes, a fim de garantir a existência digna de toda a coletividade, presente e futura.

O cumprimento da função social e a função ambiental da propriedade não podem ser vistos como um gasto ou ônus econômico, mas sim, objetivos a serem alcançados por aqueles que detêm o seu direito, e pretendem explorar seus recursos.

Essas imposições caracterizam uma nova forma de exploração da atividade econômica, por meio do uso, gozo ou fruição da propriedade, preocupada não só com o lucro imediato individual, mas de evitar um prejuízo ambiental, e por via de conseqüência econômica, futuro para o particular, a sociedade, o Estado e para as futuras gerações.

3.3.5. Estrutura social do Estado de Direito: Valorização do Trabalho

378 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função ambiental da propriedade rural. São Paulo: LTr,

A Estrutura Social Estado de Direito sofreu reflexos da constitucionalização da proteção ambiental, especificamente a valorização do trabalho humano, considerada indispensável para assegurar a todos a sua existência digna.

No passado, o trabalho contribui para o desenvolvimento econômico da sociedade e foi desenvolvido por meio do uso da mão-de-obra escrava, antes do processo de desenvolvimento e da industrialização379.

As condições de trabalhado já foram extremamente penosas ao trabalhador, pois o que se buscava era o lucro a qualquer preço e o aumento da produção, ignorando os direitos à saúde, e à segurança, que, nessa época, não eram regulamentados ou garantidos a eles.

A valorização do trabalho humano ganhou posição de destaque na Constituição Federal, ao lado da proteção ambiental, por ser um dos objetivos a serem alcançados380:

“O desenvolvimento nacional que cumpre realizar, um dos objetivos da República Federativa do Brasil, e o pleno emprego que impede assegurar supõem economia auto-sustentada, suficientemente equilibrada para permitir ao homem reencontrar-se consigo próprio, como ser humano e não apenas como um dado ou índice econômico”. (grifos do autor)

A Constituição Federal consagrou, ainda, dentre os direitos sociais, o trabalho (art. 6º) os direitos dos trabalhadores (art. 7º), considerados valores fundamentais que constituem um “piso vital mínimo” 381, assegurado pelo Estado para o desfrute de uma sadia qualidade de vida.

A existência digna do homem envolve o poder de se auto-sustentar e morar dignamente à custa de seu salário, bem como, poder exercer sua atividade

379 ROSSITII, Liliana Allodi. O meio ambiente de trabalho no direito ambiental brasileiro. São

Paulo: LTr, 2001, p. 72.

380 GRAU, Eros Roberto. Ibid., p. 252.

laboral em ambiente seguro, saudável e higiênico, para o trabalhador e toda a sociedade ao redor.

Em síntese, a Constituição Federal considerou o trabalho como um dos fundamentos382 da República; direito social383; apoio da ordem econômica384; base para ordem social385; tutelado pelo sistema único de saúde386, e a educação deverá estar voltada para o desenvolvimento da pessoa e sua qualificação do trabalho387.

Todo esse sistema constitucional de proteção ao empregado e ao seu meio ambiente do trabalho não parece admitir atividades insalubres, perigosas ou penosas, que causem riscos ao direito de vida digna, pois qualquer pagamento adicional seria admitir a monetização do risco388.

Entretanto, é preciso reconhecer que existem atividades cuja exposição ao risco é intrínseca a certas profissões, ou ainda, que sua execução é extremamente necessária pela sua própria natureza, por isso lhes são assegurados esses adicionais.

Não se trata de monetização do risco389, ao contrário, é uma exceção à regra em nome da coletividade, assegurar à existência digna de todos o pagamento desses adicionais que significam a compensação pela execução dessas atividades essenciais, ao mesmo tempo que expõem ao risco da vida de algumas pessoas.

Excepcionalmente, em alguns casos como esses, podem ser admitidos esses tipos de trabalho, sendo considerada regra a proibição de atividades laborais que exponham a vida e a existência digna do trabalhador, e poluição do meio ambiente do trabalho em locais que prejudiquem o bem-estar, a saúde e a segurança de toda a população.

382 Art. 1º, inciso IV da Constituição Federal de 1988. 383 Art. 6º da Constituição Federal de 1988.

384 Art. 200, VIII da Constituição Federal de 1988. 385 Art. 170 da Constituição Federal de 1988. 386 Art. 193 da Constituição Federal de 1988. 387 Art. 205 da Constituição Federal de 1988.

388 ROCHA, Julio César de Sá. Direito ambiental do trabalho. São Paulo: Ltr, 2002, p. 134.

389 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Direito ambiental a saúde dos trabalhadores. São

A poluição que altera a qualidade da saúde, segurança e bem-estar é combatida pelo nosso ordenamento jurídico, posto que o que se procura é o desenvolvimento tecnológico para minimizar qualquer impacto ou exposição da vida humana, como observa Guilherme José Purvin de Figueiredo390:

“O rol dos riscos ambientais e de métodos inadequados de organização do trabalho, na realidade, é praticamente inesgotável e amplia-se a cada dia, em face da introdução de novas tecnologias e manipulação de novos produtos químicos. O Direito Ambiental está hoje muito mais bem aparelhado do que qualquer outro ramo do Direito para a redução desses riscos e a substituição de tais métodos”.

A valorização do trabalho, além de garantir um salário suficiente para a subsistência, objetiva também fiscalizar e proibir atividades insalubres, perigosas, penosas, que expõem o trabalhador e toda a sociedade e, ainda, estimular o investimento de novas técnicas e equipamentos para a redução dos riscos e a oferecer uma existência digna e saudável.

Esses objetivos resultaram na prática de ações globais, a fim de possibilitar um trabalho digno aos seres humanos, resultado da consagração constitucional da proteção ambiental, no âmbito da estrutura social do Estado de Direito, com vistas a valorizar o trabalho e garantir uma sadia qualidade de vida ao trabalhador e a toda sociedade.