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A constituição das funções psicológicas superiores (FPS), formas mais elaboradas de funcionamento que distinguem o ser humano das demais espécies (VYGOTSKI, 2000), demanda um grau de desenvolvimento psicológico que envolve capacidades, habilidades e competências específicas, de difícil compleição nas pessoas com autismo. A linguagem racional, a atenção voluntária, a memória lógica, a percepção dirigida, dentre outros, são processos que têm caráter social, isto é, dependem de situações sociais específicas das quais o sujeito participa.

As FPS surgem como função da conduta coletiva, como forma de colaboração e interação, ou seja, como categoria interpsicológica. Todos os processos psicológicos superiores se desenvolvem, primeiramente, por intermédio da atividade coletiva (VYGOTSKI, 1997). A interação, assim, é um elemento

necessário à aprendizagem e ao desenvolvimento. É uma relação complexa que se constrói na participação dos sujeitos no contexto histórico-cultural, buscando compreender o que foi socialmente enraizado e historicamente desenvolvido.

Através desta interação, e somente através dela, é que o sujeito incorpora os conteúdos culturais, por meio de um processo denominado internalização, que surge, em segundo plano, através das relações sociais estabelecidas. A internalização é a reconstrução interna, uma adaptação pessoal, uma conduta individual, intrapsicológica, mas que só acontece a partir de uma operação externa com objetos e bens culturais com os quais o sujeito interage.

No caso das pessoas com autismo, a pergunta é: como, na pessoa com autismo, se desenvolverá as FPS, se os estímulos que vêm de fora lhes são estranhos, comprometendo a qualidade da interação social? E a linguagem, é impedida por lesões de ordem cognitiva ou é uma consequência da limitação na reciprocidade ao relacionar-se com o outro? Esta polêmica foi retratada em um dos tópicos anteriores. Não se trata de valorizar, em maior ou menor gradação, os aspectos cognitivos ou afetivos.

Neste momento, a intenção é apenas demonstrar a relevância em considerar o sujeito na sua integralidade. Isto se deve ao movimento dialético imposto pelo próprio desenvolvimento. Neste sentido, o meio afeta o indivíduo, provocando mudanças que serão refletidas nele próprio, recomeçando o ciclo num processo semelhante a uma espiral ascendente. Logo, a aprendizagem é um processo social no qual os sujeitos constroem seus conhecimentos através da interação com o meio e com os outros, numa inter-relação constante entre fatores internos e externos (VYGOTSKI, 2001). O papel do agente externo é fundamental. E, sem a intervenção do outro, não há desenvolvimento.

É a decomposição e a diferenciação da vida psíquica, proporcionada por intermédio da vivência com o outro, que asseguram a riqueza dos modos de perceber a realidade (VYGOTSKI, 1997). Neste sentido, as percepções e as emoções vivenciadas são diferenciadas por meio da utilização efetiva dos complexos sistemas psicológicos. A inadaptação social, muitas vezes, é uma adjacência da insuficiente diferenciação do mundo perceptivo e emotivo.

As manifestações comportamentais das pessoas com autismo demonstram que as FPS exercem um papel muito reduzido nas atividades por eles realizadas. Ao

afastar-se do ambiente de seus coetâneos, indiciam que os distúrbios provocados pelo TEA as colocam em condições sociais inteiramente novas e todo o seu desenvolvimento transcorre em uma direção completamente diferente. O caráter social da coletividade exerce uma influência diferenciada ou muito mais lenta no autismo.

É importante salientar, no entanto, que as crianças típicas e as com deficiência compartilham das mesmas leis do desenvolvimento geral. Em comum, elas têm a complexidade e a heterogeneidade na dinâmica das construções que possibilitam o desenvolvimento e seus distintos elementos. O desenvolvimento não se constitui num desenrolar passivo das particularidades determinadas desde o começo, e, sim, num desenvolvimento que inclui uma série de novas formações. Em particular, a pessoa com deficiência tem manifestações do desenvolvimento atípico qualitativamente peculiar, especificidades que interferem na forma, no tempo e no modo pelo qual buscam chegar ao objetivo. (VYGOTSKI, 1997).

Kretschmer ([entre 1915 a 1934] apud VYGOTSKI, 1997), por exemplo, fez menção às reações primitivas, um comportamento que é comum às pessoas em uma determinada fase do desenvolvimento. As reações primitivas ou manifestações impulsivas instantâneas, provenientes de excitações, mais que de vontade, são entendidas como um grupo de sintomas muito estreitamente ligados ao desenvolvimento incompleto das FPS. Descargas afetivas diretas e emoção, não interpoladas através da estrutura complexa da personalidade, representam, do ponto de vista filo e ontogenético, o nível mais baixo de orientação a um fim. As manifestações afetivas são regularidades do desenvolvimento típico, mas na pessoa com deficiência, podem não ter freio. Nelas, os impulsos afetivos iludem toda a personalidade frágil, primitiva e transformam-se em ação. (VYGOTSKI, 1997).

Nas pessoas com autismo, conforme foi mencionado anteriormente, é comum perceber a falta de atitude crítica, falta de controle das emoções manifestadas por comportamentos inadequados, insuficiente compreensão social, tendência a manter rotinas, interesses restritos, resistência frente a mudanças, dificuldades na obediência a ordens verbais – talvez em função do comprometimento da compreensão da linguagem falada, apego inadequado a determinados objetos, fixação em realizar determinadas atividades, repetição permanentemente de certas

ações, preferência em usar as mesmas roupas, distúrbios na alimentação, ausência de mastigação e paladar bizarro.

Se for considerada a possibilidade dessas reações serem caracterizadas como primitivas, conforme definiu Kretschmer, o comportamento das pessoas com autismo encontra-se numa fase prevista, porém muito primitiva, do desenvolvimento. Kretschmer ([entre 1915 a 1934] apud VYGOTSKI, 1997), diz ainda que as reações primitivas são demonstrações que indicam que o desenvolvimento afetivo e cognitivo estão situados em um nível primário. A este respeito, Vygotski afirmava que “as funções psicológicas superiores são funções intelectualizadas e volitivas, ao mesmo tempo em que a tomada de consciência e o domínio estão de mãos dadas” (VYGOTSKI, 1997, p. 268, tradução pessoal). Estes autores corroboram a visão do desenvolvimento da pessoa em sua integralidade. Julga-se importante chamar atenção para o tema do afeto e cognição quando ele surge, ainda que não seja este o foco do capítulo, para ratificar o que foi comentado anteriormente – quando se falava sobre a tendência teórica desenvolvimentista – à respeito da complementaridade desses aspectos e da necessidade de considerar a dinâmica dialética existente entre eles.