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CAPÍTULO 6 ATORES SOCIAIS: O MUNDO SOCIAL E SUAS REALIZAÇÕES

6.2 Funcionalização

A funcionalização ocorre quando um participante ou conjunto deles é referido em termos de uma atividade, do que faz, ou da ocupação que desempenham. Tal referência pode ser o resultado de um sufixo adicionado a um nome ou verbo (nome+-eiro); por um nome formado de outro que denote lugar ou ferramenta intimamente associada com a atividade, com o sufixo (piano + ista); ou, ainda, por nomes compostos que denotem lugares ou ferramentas associados com a uma atividade e que sejam categorias altamente generalizadas, como homem, mulher, pessoa, assistente (van Leeuwen, 1993, p. 144 e ss.).

Nos textos analisados, é marcante a funcionalização dos vaqueiros, particularmente se a contrastamos com a nomeação que recebem os cavalos. Os vaqueiros são preferencialmente recontextualizados pela funcionalização. Ao longo da narrativa, a palavra “vaqueiro”, no singular ou no plural ocorre 78 (setenta e oito) vezes. São realizações típicas desses participantes coletivizados, como ilustra o exemplo (145):

(145)

9. vaqueiro que tinha fama 10. foi atrás dele chocou 11. cavalo bom e bonito 12. foi lá porém estancou. (OBM)

Os participantes “vaqueiro” e “cavalo” aparecem em grupos nominais que os avaliam positivamente (a oração encaixada que tinha fama, para o primeiro e dois epítetos para o segundo). Entretanto, aparecem apenas para exaltar a glória do boi. Na primeira oração (vaqueiro que tinha [mas] chocou), há uma relação de contra-expectativa em que, por ter fama,

esperava-se que o vaqueiro o apanhasse. Mas tal expectativa é frustrada, com a recuperação da conjunção (mas). Na seguinte, mecanismo idêntico entra em funcionamento, num paralelismo com a anterior, em que, apesar de se esperar que o cavalo bom e bonito o perseguisse, este (porém) estanca. Enfim, a representação genérica de vaqueiros e cavalos funciona, neste e em muitas outras passagens do romance para engrandecer o Boi Misterioso,um dos propósitos da narrativa.

Para analisar tais categorizações, será de grande valia observarmos como são compostos os grupos nominais dos quais participam. De acordo com Halliday (2004, p. 310 e ss.), a noção de “grupo” como constituinte de uma oração compreende este como uma expansão da palavra, ou como uma palavra complexa, isto é uma combinação de palavras operada com base em um tipo de relação lógica particular. Entretanto, diferentemente da oração, que deve sempre ser vista sob os aspectos experiencial, interpessoal e textual, o grupo nominal pode ser visto em apenas uma operação, em vez de sê-lo em três operações analíticas.

Os grupos podem ser nominais (complexos de nomes), verbais (complexos de verbos) ou adverbiais (complexos de advérbios). Interessa-nos, para esta análise os grupos nominais de que participa a palavra vaqueiro, pois, do ponto de vista experiencial são participantes. Podem participar do grupo nominal os nomes, incluindo adjetivos, os numerais e os pronomes. Uma categorização no interior de uma classe é, segundo Halliday (2004, p. 312) expressa tipicamente por um ou mais destes elementos: Dêitico, Numerativo, Epíteto e Classificador. Esses elementos servem para realizar termos no interior de diferentes cadeias de sistema no grupo nominal.

O dêitico é um elemento que indica se há ou não um subtipo da coisa expressa e, se há, indica qual é. Essa categoria está compreendida no sistema da determinação, cuja distinção primária é entre a) específicos e b) não-específicos. São exemplos de dêiticos, os possessivos (meu, seu, seus, nosso, dela, dele), de caráter pessoal; e também os demonstrativos (o, este, estes, aquele, aqueles). Por sua vez, os não-específicos podem ser totais, parciais, irrestritos, de que são exemplos um, uma, nenhum, cada. Do ponto de vista referencial, a inexistência do dêitico ou presença de um não-específico indica um elemento ainda não conhecido do leitor/ouvinte, como a ausência de dêitico que antecede “vaqueiro” e “cavalo” no exemplo (145). Mas como o boi (referente) já havia sido introduzido, pode ser recuperado com “dele”:

Nos grupos nominais de que participam, o significado de “vaqueiro” e “cavalo” são completados pelos epítetos “que tinha fama” (uma oração encaixada, que está no mesmo nível do nome) e “bom e bonito”, respectivamente. Nestes dois casos, a inexistência do dêitico antes do nome indica algo como “qualquer vaqueiro” ou “todos os vaqueiros”, um sentido totalizante, o que valoriza ainda mais o poder atribuído ao Boi Misterioso. O mesmo tipo de situação se repete nos

excertos abaixo (146) e (147): (146)

23. Como nunca achou vaqueiro 24. Que em sua cauda pegasse. (OBM)

(147)

27. Vaqueiros que em outros campos 28. Até medalhas ganharam

(OBM)

Já a presença do dêitico não-específico no exemplo (148) funciona para retomar um elemento desconhecido. No contexto, um personagem passageiro, que não merece nomeação. Aparece apenas pela categorização:

(148)

57. Porque um vaqueiro disse 58. Indo uma noite emboscar (OBM)

Esse mesmo participante, no passo seguinte já é conhecido e retomado pelo dêitico específico, em (149):

(149)

67. Dizia o vaqueiro: eu estava 68. Em cima dum arvoredo (OBM)

Ambos os trechos situam na fase de resumo do estágio de Orientação de O Boi Misterioso e têm um sentido generalizante, como se pode ver pela circunstância “nunca”. Nesse estágio, a determinação específica dos vaqueiros ocorre oito vezes, como no trecho (150). O uso do dêitico não-específico “outros” funciona para um processo de associação, uma das maneiras descritas por van Leeuwen para recontextualizar os atores sociais:

217. Voltou então o vaqueiro 218. sem saber o que fizesse, 219. pensando ao chegar em casa 220. então que história dissesse 221. se pegando com os santos, 222. que o coronel não soubesse. 223. Contou a outros vaqueiros 224. o que se tinha passado, (OBM)

Outro elemento do grupo nominal é o numerativo, que indica um traço numérico de um tipo particular de coisa, seja ela de quantidade, ordem, exata ou inexata. Em O Boi Misterioso, os numerativos que acompanham “vaqueiro” têm uma função de identificar um número crescente de perseguidores do boi. Essa estratégia associada à da categorização funciona para reduzir a importância destes perante o boi e, simultaneamente, valorizar esse participante poderoso, como se pode ver em (151), (152), (153) e (154):

(151)

211. Contarei mais adiante 212. como quarenta vaqueiros, 213. correram atrás desse boi 214. quase dois dias inteiros 215. onde perdeu-se o cavalo, 216. flor dos cavalos mineiros. (OBM)

Note-se que nesse trecho (151) se encontra no resumo (antecipado) da história. (152)

229. No outro dia seguiram 230. seis vaqueiros destemidos, 231. em seis cavalos soberbos, 232. dos melhores conhecidos 233. pois só de cinco fazendas 234. poderam ser escolhidos. (OBM)

(153)

391. Quarenta e cinco vaqueiros 392. saíram para pegá-lo, (OBM)

(154)

1226. Cinquenta e nove vaqueiros 1227. às oito horas chegaram (OBM)

Em (152), (153) e (154), observa-se em funcionamento o foco, que faz parte da ferramenta da Avaliatividade. Assim como a gradação tem o poder de elevar ou diminuir o volume das avaliações, aumentando-lhes ou diminuindo-lhes a intensidade, o foco permite criar exatidão ou borrar fronteira. Nos exemplos citados, qual o funcionamento da exatidão? Pode-se interpretar que os números se associam à expressão da intensidade, pois há um crescendo: de seis para quarenta e cinco e, finalmente, para cinquenta e nove vaqueiros. No final das contas, o Boi Misterioso vence a todos, o que só lhe amplia a glória. Nesse caso, o foco serve para reforçar a prosódia de invencibilidade do boi.

O epíteto, igualmente participante do grupo nominal, indica alguma qualidade do ente representado, como velho, longo, azul, veloz, o que pode ser ou não uma propriedade objetiva. Pode expressar, também, uma atitude subjetiva do falante. Em O Boi Misterioso, para a categorização vaqueiro, encontramos em (155), (156), (157) e (158):

(155)

9. vaqueiro que tinha fama (OBM)

(156)

27. vaqueiros que em outros campos 28. até medalhas ganharam

(157)

230. seis vaqueiros destemidos, (OBM)

(158)

364. os vaqueiros do sertão (OBM)

No contexto, interpretamos a funcionalização dos vaqueiros como reveladores de uma certa ambiguidade: por um lado, sua inclusão, em detrimento da recontextualização de outros participantes: examinando-se o universo laboral do sertão, pela análise de outros textos, sabe-se que há também lavradores, comboieiros (transportadores de mercadorias em comboios de animais), artesãos de couro, e assim por diante. Então, a inclusão dos vaqueiros com exclusão de outros trabalhadores do sertão indica uma valorização destes. Por outro lado, sua categorização (preferentemente à nomeação) indica uma redução de sua importância.

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