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Identificação pela classificação

CAPÍTULO 6 ATORES SOCIAIS: O MUNDO SOCIAL E SUAS REALIZAÇÕES

6.4 Identificação pela classificação

Diferentemente da funcionalização, a identificação ocorre quando um participante é definido, não com base no que ele ou ela faz, mas em termos do que tal pessoa, de maneira mais ou menos permanente e inevitavelmente, é. Podem ser identificações por classificação, por identificação relacional ou por identificação física.

No caso da classificação, um participante é referido em termos das categorias mais amplas reconhecidas por uma sociedade para diferenciar determinadas classes de pessoas. Em nossa sociedade, isso inclui idade, gênero, proveniência, classe, riqueza, etnia, religião, orientação sexual e assim por diante.

A diferenciação entre funcionalização e classificação é também variável contextualmente, uma vez que algumas identidades são passageiras e temporárias, como nos nomes de ocupações que demandam pouca modificação no ser dos que as praticam. Não é difícil mudar de coletor de lixo para guarda-noturno; mas é consideravelmente mais difícil mudar de padre para policial. E

extremamente difícil mudar de negro para branco. E quase impossível mudar de homem para mulher (e vice-versa). Segundo van Leeuwen (1993), não se pode deixar de atentar para mudanças nos papéis sociais, pois mesmo as identidades que consideramos essenciais, foram assinaladas socialmente. Entretanto, numa narrativa como O Boi Misterioso, escrita nos primeiros anos do século XX e remontando ao século XIX, o que assistimos é a uma certa fixidez dessas identidades.

Outra observação de van Leeuwen é que a classificação tende a ser usada, em nossa sociedade para colocar à parte aqueles que diferem da norma e aqueles que estão sujeitos à dominação.

Em O Boi Misterioso, a classificação é utilizada para marcar três participantes de relevo na narrativa: o vaqueiro Benvenuto, o vaqueiro de Minas (Sérgio) e o vaqueiro curiboca. No caso de Benvenuto, o movimento é interessante, ele começa por ser classificado pela etnia, idade e local de trabalho, o que pode ser observado nos exemplos (159), (160), (161), (162), (163), (164), e (165) sobretudo com relação ao componente étnico:

(159)

157. Um índio velho vaqueiro, 158. Da fazenda do Desterro, (OBM) (160) 285. O do Índio Benvenuto 286. Chamava-se "Soberano" (OBM) (161)

331. Disse o índio Benvenuto (OBM)

(162)

381. Dizia o Índio só hoje 382. Eles podiam encontrá-lo (OBM)

(163)

421. Disse o Índio Benvenuto 422. Eu não posso campear (OBM)

(164)

902. o índio foi ao curral (OBM)

(165)

909. O índio tinha saído 910. E carregou a mulher 911. Como quem sai escondido. (OBM)

A classificação de Benvenuto (índio, velho), diferenciando-o da categorização (vaqueiros) indica a relevância deste na história, pelo poder que partilha: o de pressentir a natureza mágica do boi, com ele conversar, fazer previsões seu respeito, e assistir a sua transmutação. A menção à etnia (índio) está justamente vinculada a essa capacidade e demonstra a sua diferenciação, principalmente porque não se menciona a etnia (ou cor de pele do Coronel Sisenando ou da maioria dos vaqueiros).

Outra das exceções para a categorização, pela classificação, é a de Sérgio, o vaqueiro de Minas, o qual começa a ser mencionado tanto pela função quanto pela procedência, mas que depois recebe nomeação. Mais interessante ainda é ver que, antes de tudo, a identificação do vaqueiro é dada pelo cavalo que ele monta, incluindo as qualidades e nome do animal, como em (166):

(166)

483. Quando viram ao longe um vulto 484. Divulgaram se um moço

485. Então vinha num cavalo 486. Que parecia um colosso.

487. Era um cavalo caxito 488. Tinha uma estrela na testa

489. Vaquejada que ele ia 490. Ali tornava-se em festa 491. Ganhou numa apartação 492. Nome de "Rei da Floresta". (OBM)

Apenas depois de identificado o cavalo (inclusive por nomeação), é introduzido o participante, mas ainda classificado, mesmo na auto-identificação (de Minas/sou vaqueiro), em (167), (168)

(167)

493. Chegou então o vaqueiro 494. Saudou a todos ali

(OBM)

(168)

501. Eu sou de Minas Gerais 502. Disse o rapaz sou vaqueiro (OBM)

Em seguida, “vaqueiro de Minas” continua a ser a menção a esse participante, como se pode ver pelo exemplo (169) e (170):

(169)

547. Disse o vaqueiro de Minas 548. Perdi tudo a viagem

(OBM)

(170)

645. Disse o vaqueiro de Minas 646. Não precisa descansar (OBM)

E, finalmente, a nomeação, em (171) e (172), ainda acompanhada da classificação, o que lhe modifica o status na história.

(171)

727. Sérgio o vaqueiro de Minas 728. Foi o primeiro que viu (OBM)

(172)

1152. Sérgio o vaqueiro de Minas, 1153. Nesse momento chegou... (OBM)

Esse vaqueiro, classificado pela procedência e também condição econômica, como se pode ver pelo seguinte exemplo (173):

(173)

884. – Eu vim atrás desse boi 885. não devido ao dinheiro 886. eu vim porque tenho gosto 887. nessa vida de vaqueiro 888. se eu não morrer ainda mostro, 889. quanto vale um cavalheiro. (OBM)

Tal diferenciação se deve a essa última menção – cavalheiro –, pois esse participante encarnaria a figura do cavaleiro andante, que sai para campear apenas para provar a valentia. E é apresentado como valente. Mas, ainda assim, não vence o boi. Mais uma vez, no contexto, a elevação desse participante colabora para a exaltação das qualidades do boi.

Um terceiro participante apresentado pela classificação associada à funcionalização é aquele que enfrenta O Boi Misterioso pela última vez, provocando o desfecho da transformação dos participantes, em (174). Atente-se para a minuciosa descrição, a não deixar dúvidas de que se trata de uma pessoa com o fenótipo de um negro (sublinhado), acrescido de um traço pessoal que, pela ironia da comparação (pipoca), não é algo avaliado como esteticamente bonito.

(174)

1170. Nisso chegou um vaqueiro, 1171. Um caboclo curiboca, 1172. O nariz grosso e roliço 1173. Da forma de uma taboca, 1174. Em cada lado do rosto 1175. Tinha uma grande pipoca. (OBM)

A procedência do vaqueiro é algo extraordinário, a reforçar o engrandecimento da fama do boi, pois é difícil imaginar, no Brasil, em 1840, alguém deslocar-se de Mato Grosso ao Ceará, como se vê em (175). Outro elemento reforçador da natureza [+sobrenatural] desse vaqueiro é ele aparecer logo após o reaparecimento do Boi Misterioso.

(175)

1182. O coronel perguntou-lhe 1183. De que parte é cavalheiro? 1184. – Do sertão de Mato Grosso, 1185. Respondeu o tal vaqueiro... (OBM)

O vaqueiro – apesar de não receber nomeação – é apresentado como alguém de iniciativa, o que prova sua valentia, como se pode ver pelo exemplo (176) e (177):

(176)

1242. De manhã todos seguiram 1243. O caboclo foi na frente (OBM)

(177)

1264. De cinquenta e nove homens 1265. Só foi lá o tal vaqueiro. 1266. Então o caboclo disse 1267. Pode correr camarada, (OBM)

Mas a distinção do vaqueiro (condição de [+sobrenatural]) vem logo à baila, como se pode ver no exemplo (178), pelo que evita fazer:

(178)

1302. Iam o vaqueiro e o boi 1303. Pela dita cruz passar (OBM)

A natureza extraordinária do vaqueiro, finalmente, é revelada com seu sumiço e transmutação, como se pode ver em (179) e (180):

(179)

1322. O boi e o tal vaqueiro 1323. Terem desaparecido (OBM)

(180)

1330. O vaqueiro e o cavalo

1331. Em dois corvos os transformou. (OBM)

Os três exemplos anteriores sinalizam como classificação desse vaqueiro (com descrição que corresponde ao fenótipo de um negro) assume especial relevância no contexto de O Boi Misterioso. Mas a classificação mais significativa é de associar um negro a um ser poderoso que antagoniza com a fada, ou o próprio diabo, nas palavras do Coronel Sisenando, como se vê em (181):

(181)

1240. o coronel notou logo 1241. nele um tipo diferente 1242. e disse: se houver diabo, 1243. é aquele certamente. (OBM)

está na cultura e não na língua. Pode-se afirmar que essa recontextualização está profundamente vinculada à demonização do negro na cultura brasileira, um discurso sustentado na política, na medicina e até mesmo nas ciências sociais, ao longo dos séculos de existência da própria sociedade brasileira. Santos e Vianna (1989), ao estudarem o assunto no livro O negro na literatura de cordel, após estudarem os cordéis que tratam do negro concluem:

As transformações culturais vêm em geral tardiamente, em ritmo menos ágil; não refletem mecanicamente a história social e política. A Literatura de Cordel, uma das expressões da cultura popular, conserva concepções que revelam dificuldades de encarar o negro como igual. As formas de representação do negro elaboradas pelos poetas dos folhetos compõem um quadro dotado de alguma mobilidade, em que o preconceito se matiza, ao incorporar diferentes versões de personagens – escravos, libertos, cantadores, demônios e heróis – mas está presente em todas elas a tendência discriminadora, conferindo a esses personagens características positivas ou negativas por vezes tão exacerbadas quanto desumanizadoras (1989, p. 78).

Do ponto de vista da análise de discurso e da recontextualização dos participantes, uma classificação como essa, que associa um negro (e não um índio ou um branco) ao demônio funciona para promover uma diferenciação (criar o outro, aquele a ser evitado), o que é congruente com o discurso racista da sociedade brasileira, construído e elaborado pelo senso comum. Entretanto, esse personagem está também sobredeterminado, isto é, participa de duas dimensões uma [+humana] e outra, [+sobrenatural] e é, afinal, quem provoca a transmutação de O Boi Misterioso. Em outras palavras, é um ser para o qual se busca a diferenciação. Mas é também um ser poderoso. Tal ambiguidade ajuda a construir uma atitude que é, simultaneamente, de rejeição e de admiração.

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