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Identificação relacional – do drama à tragédia

CAPÍTULO 6 ATORES SOCIAIS: O MUNDO SOCIAL E SUAS REALIZAÇÕES

6.4 Identificação relacional – do drama à tragédia

A identificação relacional representa os participantes em termos de sua relação pessoal ou de afinidade com outros. Sua realização se dá por um conjunto fechado de nomes que denotam tais relações: amigo, pai, tio/tia, etc. Tipicamente, são possessivados, tanto por pronomes possessivos quanto por posmodificadores (mãe de, p. ex.).

O papel das identificações relacionais é, nas sociedades ocidentais, menos importante do que a funcionalização e a classificação. As identificações relacionais têm sido confinadas à esfera privada. Sua intrusão na esfera das atividades públicas pode ser tida como nepotismo ou corrupção. Em outras sociedades – como aquelas que mantêm laços tradicionais de parentesco –, entretanto desempenha um papel central. Van Leeuwen apresenta o exemplo retirado de uma sociedade aborígene australiana, em que duas pessoas, ao se encontrarem pela primeira, vez, apresentam-se, primeiramente, em termos de identificação relacional, diferentemente das bases ocidentais em que a

nomeação e funcionalização (o que você faz) são chaves para estabelecer relações e onde a classificação (de onde você é) vem apenas quando um dos participantes apresenta sinais que o diferenciam da norma, como um sotaque (1993, p. 150).

No Brasil, o uso de questões como “de onde é?” e “de que família é?” continuam a ser identificações relacionais relevantes, particularmente nas cidades pequenas. Esse mecanismo pode ser recuperado na recontextualização dos atores sociais em O monstruoso crime pelo modo de nomeação dos atores ou dos eventos de que são protagonistas.

O poeta, Apolônio Alves dos Santos, não está cingido aos mesmos padrões de identificação aos quais um jornalista está. Enquanto as práticas de redações ou mesmo os manuais mandam identificar o participante da notícia pelo nome ou profissão ou idade ou local de moradia, ou uma combinação desses elementos, o escritor não está constrangido por tais normas ou costumes.

Na narrativa de Apolônio, de um lado, encontramos a representação de Serginho, seus familiares e entes a eles solidários (pescadores, autoridades policiais, e, claramente, o poeta, que se coloca pelos sentimentos que mantém em relação ao evento sequestro); do outro Zé do Rádio.

Para nos aproximarmos mais dessa questão, vejamos a perspectiva da ADC. Segundo Fairclough, o estilo é o aspecto discursivo dos modos de ser, das identidades. A questão “quem é você?” é parcialmente uma matéria de como você fala, escreve, assim como configura seu corpo, visual, maneiras de agir, se mover, e assim por diante. (2003, p. 159 e ss.) Fairclough diz preferir o termo “identificação” em vez de “identidade”, para enfatizar o processo: como as pessoas se auto- identificam e como são identificadas pelos outros (idem). Ainda para o autor, o processo de identificação é parcialmente de natureza textual, e, embora estilos/identificação não sejam apartadas de discurso/representação ou gênero/ação, esse modo de identificar é realizado de maneira diferentes. Um dos modos de caracterizar a identificação é pela avaliação que, para Fairclough é:

O aspecto do significado do texto que está vinculado a valores. Inclui tanto asserções avaliativas (p. ex.: “aquela é uma linda blusa”) quanto avaliações pressupostas (assumptions). Valores nos textos são mais pressupostas do que explicitadas. (idem, p. 215).

Complementarmente, a semântica do discurso, com base na LSF, nos fornece os elementos necessários para uma análise mais pormenorizada. Por intermédio dos dêiticos – determinadores não-específicos (um estudante, filho de um fazendeiro), o escritor nos introduz os participantes, os atores sociais que, em seguida, serão já acompanhados de dêiticos – determinadores específicos (o filho, do filho, do menino). Com isso, nos leva (leitores) a uma familiaridade com os personagens referidos.

As representações para Serginho são estudante, querido filhinho, filho, menino, garoto, até que é anunciado o desfecho da narrativa, quando, novamente, o movimento de indeterminado (o cadáver dum garoto) passa para o determinado (o cadáver, o corpo, etc.). Posteriormente, numa retomada de narrativa em feedback, o ator social é novamente marcado por determinantes (o menino, etc.).

A Avaliatividade (Martin & Rose, 2008) entra em jogo, com essas representações da vítima, particularmente pelos diminutivos (Serginho, em vez de Sérgio), filhinho, gurizinho. Igualmente, os traços gramaticais da interpessoalidade estão nas representações da vítima como um parente (filho de, seus pais). Nos momentos dramáticos, a representação como cadáver, corpo, restos mortais eleva esse grau de pessoalidade e de afetividade.

Com tais estratégias, não apenas a identidade do ator social está sendo construída (pequeno, indefeso), como também o processo identificacional, em que o ator Serginho (ser individual) passa a equivaler (como um sinal, num raciocínio silogístico, um caso particular) a todos os meninos que sejam filhos de, como vitimas ou como potenciais vítimas.

A seguir, são apresentadas as recontextualizações para Serginho, em que predominam a Avaliatividade e a identificação relacional. Aplicada ao participantes, a Avaliatividade implica na apresentação deste em termos interpessoais, mais do que em termos experienciais: um participante é avaliado quando ele ou ela é mencionado com palavras que os/as avaliem, como bom ou mau, amado ou odiado, admirado ou detestado, e assim por diante. Ela é realizada por um conjunto de nomes e expressões que denotam tal Avaliatividade como, por exemplo, “o querido”, “o bastardo”. No caso de O monstruoso crime, o uso de diminutivos expressa também esse afeto, como se pode ver em (182).

(182)

11. Com Serginho, um estudante /.../ 50. /.../ Serginho foi sequestrado /.../ 127. /.../ Serginho ia fazer/ 12 anos de idade (OMCSBJI)

O uso do diminutivo marca a Avaliatividade, com um afeto positivo, uma característica do Brasil. Nesse caso, não apenas para demonstrar o carinho com o participante, mas também para indicar ser alguém pequeno, desvalido, digno de despertar a proteção, como se pode ver pelo exemplo (183):

(183)

12. Filho de um fazendeiro. /.../ 24. /.../ ao querido filhinho. /.../ 29. /.../ não vendo o filho chegar /.../ 42. /.../ O sumisso do filhinho. /.../ 48. /.../ notícia do filho seu. /.../ 120. /.../ o fruto do seu carinho. /.../ 212. /.../ para o pai de Serginho /.../ 214. /.../ eu tenho o seu gurizinho /.../ 216. /.../ devolverei seu filhinho. (OMCSBJI)

Esse outro conjunto recontextualiza Serginho pela identificação relacional “filho de”, “o filho”, “filho seu”, “o pai de”, associado, ainda ao uso do diminutivo, reforçando a estratégia de demonstrar carinho e invocar proteção. Mas há outros modos de representar o participante, como em (184):

(184)

34. A procura do menino /.../ 187. /.../ O garoto todo dia /.../ 200. /.../ da ausência do menino (OMCSBJI)

Ainda que as referências não sejam o diminutivo, a idade continua a ser o elemento identificador, o que reforça o apelo à solidariedade e à proteção. Entretanto, o mesmo ser é recontextualizado de maneira completamente diferente, após verificada sua morte, como se pode ver em (185) e (186):

(185)

81. o cadáver dum garoto 96. foi o cadáver encontrado. 196. fez o cadáver encolhido (OMCSBJI)

(186)

118. o corpo do seu filhinho 139. Quando retiram o corpo 122. aqueles restos mortais (OMCSBJI)

Cadáver, corpo e restos mortais são estratégias de representação que, em vez da simples empatia da identificação avaliativa e relacional (Serginho, filho de), já são capazes de despertar um sentimento mais forte, seja o de compaixão, seja o de indignação ou revolta.

Na representação desse atores sociais, mecanismos semelhantes aos anteriormente analisados são colocados em prática: dêiticos determinantes e pessoais, além de epítetos e classificadores, de natureza pessoalizante, afetiva, mobilizadora. Nessa representação se confirma a estratégia do escritor de mobilizar o afeto, evocando a solidariedade, por um processo análogo ao do modelo da tragédia grega, o da empatia, ou seja, fazer com que o leitor do folheto sinta um processo de identificação tão grande com a história que, ao final, sinta-se também expiando o crime e, ao final, com o castigo, liberto.

Trata-se do seguinte o mecanismo utilizado por Apolônio: pelo que informam os jornais, Zé do Rádio não era mais do que um primo em segundo grau de Serginho. Mas, no folheto, este se transforma em tio da vítima e, portanto, irmão do fazendeiro, pai de Serginho.

No modelo da tragédia, involuntariamente, o herói (protagonista) acaba cometendo um erro, ao final revelado fatal, ao buscar agir corretamente. Em Édipo, para fugir da previsão do oráculo de que o filho mataria o pai e se casaria com a mãe, o rei Laio manda exilar o filho recém-nascido; e é justamente este que volta, como um desconhecido, mata-o em um desafio e se casa com Jocasta, sua mãe.

No cordel que analisamos, a fim de evitar um erro (prejuízo financeiro iminente), o fazendeiro pai de Serginho deixa de emprestar os cem mil cruzeiros; involuntariamente, esta atitude seria o motivo pelo qual Zé do Rádio sequestra Serginho: para obter o dinheiro.

Ora, fazer com que o evento se assemelhe a uma tragédia é o maior mérito do escritor. O enredo “Fulano sequestra menino Beltrano e o assassina” é apenas um drama, como tantos outros noticiados pela mídia. Mas a história de Apolônio Alves transforma o evento em algo de natureza exemplar e válida como um ensinamento moral mais geral. Em função da escolha do autor, a estratégia de identificação relacional para os participantes revela-se crucial, como se pode ver pelas realizações do exemplo (187):

(187)

30. dona Walda entristeceu. /.../ 32. /.../ Os seus pais em desatino /.../ 39. /.../ Então seu pai muito aflito /.../ 46. /.../ o pai dele recebeu /.../

51. /.../ e se o pai não quisesse /.../ 55. /.../ O pai lendo a dita carta /.../ 68. /.../ os pais em grande aflição /.../ 69. sua mãe chorava tanto /.../

116. /.../ chamou o pai de Serginho /.../ 124. /.../ com os seus queridos pais /.../ 133. /.../ Somente os pais de Serginho (OMCSBJI)

Em (187), vemos o funcionamento dos dêiticos específicos para criar uma relação de proximidade, estratégia fundamental do poeta. Primeiramente, estabelece as relações entre os atores sociais (Serginho e seus respectivos pais); em seguida, com a insistência nessa relação, alinha os leitores a verem esses pais como “quaisquer pais” ou “todos os pais”, invocando a solidariedade.

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