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2.1 CADEIAS GLOBAIS DE VALOR (GVC): CONTORNOS DA

2.1.3 Funcionamento das Cadeias Globais de Valor

Kaplinsky e Morris e (2002) salientam três pontos chaves a serem considerados na análise do funcionamento de uma cadeia. O primeiro ponto tem a ver com o que se chama de barreiras à entrada e também com o rendimento (renda). Como se indicou na definição, uma cadeia envolve atividades situadas em vários locais ao redor do mundo, e tais locais são escolhidos pelos condutores ou principais lideres da cadeia, que levam em consideração as capacidades presentes para fortalecer a própria cadeia, no curto, no médio ou no longo prazo.

Desse modo, esses locais devem possuir atributos capazes de representar rendas para a cadeia como um todo, permitindo, assim, uma crescente agregação de valor no interior dela. Esses atributos podem ser tangíveis, como no tocante à produção (diferenciação de produtos, inovação ao nível dos produtos e serviços), à dotação de recursos naturais e à disponibilidade de tecnologias adequadas. Podem ser também intangíveis, como no que se refere a design (concepção de produto), marketing, coordenação, empreendedorismo (espírito empresarial) e capacidade e habilidade para acompanhar a evolução dos processos e das novas tecnologias, implicando recursos humanos qualificados.

Essas características (que não são distribuídas de modo igual em todos os territórios, não sendo, portanto, encontradas em todos os países e regiões) representam barreiras à entrada nos locais carentes de certos atributos e de capacidade para proporcionar resultados positivos, sobretudo para as atividades melhor posicionadas nas cadeias. Consequentemente, os melhores resultados se apresentam para locais e agentes com maior domínio sobre as atividades ou condições consideradas. Esses atributos levam ao que se chama de renda econômica, que pode derivar, por exemplo, do domínio de várias capacidades no interior das empresas, tais como as tecnológicas e organizacionais e as habilidades e capacidades no âmbito do marketing (como nomes de marca). Com efeito,

A cadeia de valor é um constructo importante para se compreender a distribuição de retornos decorrentes de concepção, produção, marketing,

coordenação e reciclagem. Essencialmente, os retornos primários revertem para as partes que são capazes de se proteger da concorrência. Esta capacidade de isolar atividades pode ser encapsulada pelo conceito de renda, que surge a partir da posse de atributos escassos e envolve barreiras à entrada21 (KAPLINSKY; MORRIS, 2002, p.25).

É importante assinalar mais uma vez que o ambiente da cadeia global de valor envolve competição. Portanto, os atores que já apresentam raízes profundas nas cadeias vão sempre procurar ganhar mais. As barreiras à entrada ligadas à limitada presença de certas habilidades, por exemplo, seriam “naturais”. Mas acredita-se que as barreiras à entrada podem ser também criadas ou fortalecidas de propósito.

Algumas [barreiras] surgem a partir do comando sobre os recursos naturais escassos (tais como o acesso a depósitos de diamantes), e outras são fornecidos por entidades externas à cadeia. Por exemplo, uma política governamental eficiente facilita à empresa a obtenção de rendas econômicas pelo oferecimento de um melhor acesso às habilidades humanas e a melhor infra- estrutura e uma intermediação financeira mais eficiente do que em países concorrentes. Os governos também podem proteger os produtores da concorrência, não apenas através de políticas específicas de empresas, como controles de importação, mas também através de políticas específicas de fatores, como o controle sobre a

21 The value chain is an important construct for understanding the distribution of returns arising from design, production, marketing, coordination and recycling. Essentially, the primary returns accrue to those parties who are able to protect themselves from competition. This ability to insulate activities can be encapsulated by the concept of rent, which arises from the possession of scarce attributes and involves barriers to entry.

imigração 22 (KAPLINSKY; MORRIS, 2002, p.28).

O segundo ponto importante na análise do funcionamento da cadeia global de valor diz respeito à questão da governança. Com a divisão do trabalho entre firmas localizadas em territórios distantes, é necessária a coordenação dos laços que ligam essas firmas, para que os produtos ou serviços projetados saiam como foram planejados. Para que isso aconteça, deve existir governança, e ela está nas mãos da entidade, da empresa ou da organização que detém a capacidade de coordenar as atividades da cadeia, de capacitar alguns participantes particulares, promovendo, assim, o upgrading das respectivas atividades (KAPLINSKY; MORRIS, 2002). Gereffi (1994, p. 97 apud GEREFFI; FERNANDEZ-STARK, 2011, p.8), por sua vez, define governança como “autoridade e relações de poder que determinam como recursos financeiros, materiais e humanos são alocados e devem fluir dentro de uma cadeia23”.

Podem existir vários níveis de governança dentro de uma cadeia, pois há atores chaves ao nível nacional, regional e global. É um conceito que leva a entender que existe uma separação de poder ou de papeis dentro da cadeia, entre os principais atores chaves. Não existe necessariamente a proeminência permanente de um ator sobre os demais. A proeminência de um ator depende da sua capacidade de inovar, de coordenar e de capacitar a cadeia para que haja sempre upgrading das atividades que protagoniza.

No entanto, a coordenação não exige que uma única empresa se engaja nestes papéis. Na verdade pode muito bem haver uma multiplicidade de pontos nodais de funções de governança e de coordenação. Além disso, esses pontos nodais

22 Some [barriers] arise from the command over scarce natural resources (such as access to deposits of diamonds), and others are provided by parties external to the chain. For example, efficient government policy makes it easier for the firm to construct economic rents through providing better access to human skills, and better infrastructure and more efficient financial intermediation than in competitor countries. Governments may also protect producers from competition, not just through firm-specific policies such as import-controls, but also through factor-specific policies such as controls on immigration. 23 "authority and power relationships that determine how financial, material and human resources are allocated and flow within a chain”.

podem mudar ao longo do tempo, na medida em que a proeminência atribuída a diferentes empresas/atores se desloque dentro de uma cadeia de valor24 (KAPLINSKY; MORRIS, 2002, p. 29). Dependendo do objetivo analítico do pesquisador com respeito aos níveis de governança existentes dentro de uma cadeia, podem ser observadas diferentes abordagens. Por exemplo, de acordo com Kaplinsky e Morris (2002), existem três formas de governança dentro de uma cadeia.

Primeiramente, as regras básicas que definem as condições para a participação na cadeia precisam ser definidas. Os atores responsáveis pelo estabelecimento dessas regras fazem parte do chamado “governança legislativa”. Os atores encarregados de cuidar do cumprimento dessas regras ou de coordenar a conformidade daquelas regras dentro da cadeia fazem parte da chamada “governança judicial”. E, finalmente, os atores que prestam assistência aos participantes da cadeia nos diferentes elos, de maneira ativa para que haja cumprimento e funcionamento dessas regras, fazem parte da chamada “governança executiva” (KAPLINSKY; MORRIS, 2002).

É necessário ressaltar nessa primeira abordagem dos níveis de governança dentro de uma cadeia global, que o não cumprimento das regras estabelecidas não resulta sempre, automaticamente, em sanções negativas ou à exclusão de um membro da cadeia, pois pode existir assistência para ajudar aqueles que falham em algumas regras, frustrando o alcance dos níveis de desempenho exigidos (papel exercido pela governança executiva). Mas para que isso aconteça, devem existir relacionamentos caracterizados por alta confiança entre os agentes envolvidos, uma situação em que o líder da cadeia tem a legitimidade reconhecida pelos outros atores, nos restantes elos. Kaplinsky e Morris (2002) veem a Toyota e seus fornecedores como um caso nesta questão, em relação a esse aspecto. Relações de baixa confiança com baixos níveis de legitimidade costumam exibir uma alta taxa de "rotatividade" entre os fornecedores, em razão das sanções negativas e da exclusão

24 However, coordination does not require that a single firm engages in these roles. Indeed there may well be a multiplicity of nodal points of governance and coordination functions. Furthermore these nodal points may change over time as the prominence accorded to different firms/actors shifts within a value chain.

quando ocorre falha no desempenho em alcançar a metas e no respeito de outros princípios internos às cadeias.

Assim, é importante a existência de uma relação de confiança entre os atores chaves posicionados nos diferentes pontos de governança e entre os diferentes membros. Essa confiança se for alta, garantirá uma relação duradoura, e, se for baixa, dificilmente a relação se manterá ao longo do tempo.

Outra abordagem sobre a governança leva em consideração dois (2) tipos de cadeias globais, que são: a) cadeias globais de valor comandadas ou governadas por um comprador no ápice da cadeia; b) cadeias globais de valor governadas por um produtor no ápice da cadeia. O primeiro tipo é caracterizado por indústrias que necessitam grande intensidade de trabalho, comparativamente, estando geralmente localizadas, em maior número, em países da periferia e da semiperiferia do capitalismo. No tocante à “identificação” setorial, cabe assinalar que um traço destacado é a presença forte da produção de bens não duráveis de consumo.

Cadeias de produção governadas por comprador referem-se aos setores em que grandes redes de varejistas, comerciantes e fabricantes de marca desempenham papéis pivôs (de articulações) no estabelecimento de redes de produção descentralizadas em uma variedade de países exportadores, comumente localizados no Terceiro Mundo. Este modelo de industrialização liderado pelo comércio tornou-se comum nas indústrias de bens de consumo, que precisam uma força de trabalho intensiva, tais como: roupas, sapatos, brinquedos, utensílios domésticos, eletrônica e uma variedade de artesanatos. A produção geralmente é levada a cabo por redes empreiteiros do Terceiro Mundo que realizam produtos acabados para os compradores estrangeiros. As especifacações são fornecidas pelos grandes distribuidores ou comerciantes que ordenam os artigos.25 (GEREFFI, 2001, p. 15-16).

25 Las cadenas productivas destinadas al comprador se refieren a aquellas industrias en las que los grandes detallistas, los comercializadores y los fabricantes de marca juegan papeles de pivotes en el establecimiento de redes de produccíon descentralizada en una

Como exemplos de empresas que fazem parte de cadeias comandadas por compradores, pode-se citar Wal-Mart, Sears Roebuck e J.C Penny, grandes varejistas. Como exemplos de companhias de calçados de esportes, têm-se Nike e Reebok. E como empresas que atuam na indústria do vestuário, envolvendo-se como moda, vale ilustrar com The GAP e The Limited. Essas últimas, assim como as de calçados esportivos, concebem, desenham e comercializam os produtos, de cujas marcas são proprietárias, mas, em geral, não os fabricam (são consideradas na literatura, portanto, fabricantes sem fábricas).

No caso das cadeias governadas por produtores, observa-se a presença de uma dominância tecnológica, envolvendo a capacidade de coordenar laços existentes entre as firmas, assim como de dar assistência de maneira eficiente aos fornecedores e aos clientes. Um aspecto definidor desse tipo de cadeia é que quem exerce a governança, o comando, é, ele próprio, fabricante. Os setores industriais implicados nesse tipo de cadeia tendem a ser mais intensivos em tecnologia e em capital, comparativamente falando. Percebe-se uma concentração de atividades intangíveis nesse tipo de cadeia, tais como o design e a gestão de marcas e a coordenação da própria cadeia. Indústrias de capital e de tecnologia intensiva, tais como automóveis, aviões, computadores, semicondutores e maquinaria pesada, são consideradas ilustrativas desse tipo de cadeia (MORRIS; KAPLINSKY, 2002). Na maioria das vezes, as atividades se localizam em países do núcleo orgânico, notadamente no que concerne aos elos das cadeias onde se agrega mais valor ao produto e onde se realizam as atividades mais “nobres”.

As cadeias produtivas conduzidas por produtores são aquelas em que os grandes fabricantes, comumente transnacionais, desempenham papéis centrais na coordenação de redes de produção (incluindo as suas ligações para trás e para frente).

variedad de países exportadores, comúnmente localizados en el tercer Mundo. Este modelo de industrializacíon dirigida al comercio se ha hecho común en las industrias de artículos para el consumidor -que cuentan con una fuerza de trabajos intensiva-, tales como la del vestuario, zapatos, juguetes, artículos para el hogar, electrónica y una variedad de artesanías. La produccíon generalmente la llevan a cabo redes de contratistas del Tercer Mundo que realizan artículos terminados para compradores extranjeros. Las espicificaciones son suministradas por los grandes mayoristas o comerciantes que ordenam los artículos.

[...] A indústria automotiva é uma ilustração clássica de uma cadeia dirigida por produtor, com sistemas multilaterais de produção que envolvem milhares de empresas (incluindo sedes, subsidiárias e subcontratadas)26 (GEREFFI, 2001, p.14).

Sugerindo que é sempre fácil delimitar de maneira clara algumas características das cadeias governadas por compradores e das governadas por produtores, Kaplinsky e Morris (2002) acreditam que uma mesma cadeia pode ter características de ambos os tipos. Os autores assinalam que os ativos intangíveis podem ser encontrados em todos os elos, como, por exemplo, o controle da logística na fase de produção e a etapa conceitual com respeito à publicidade. Muitas vezes é difícil saber se uma cadeia é mais intensiva em ativos tangíveis ou intangíveis.

De toda maneira, Gereffi (2001) salienta o fato de que nas cadeias comandadas por compradores, a competição entre os atores costuma ser mais intensiva ou alta, e a descentralização global das fábricas mostra-se uma importante e recorrente característica. Já nas cadeias comandadas por produtores, observa-se a atuação de grandes oligopólios, representando altas barreiras à entrada.

Percebe-se também que as cadeias comandadas por produtores são mais propensas a serem caracterizadas pelo investimento direto estrangeiro (IDE), comparativamente às cadeias lideradas por compradores, pois estas envolvem mais fortemente a subcontratação ou/e terceirização internacional: de fato, firmas dos países centrais encomendam a produção junto a firmas atuando em países menos desenvolvidos, como Bangladesh ou Nicarágua, entre outros (KAPLINSKY; MORRIS, 2002).

Um trabalho mais ou menos recente, elaborado por Gereffi et al. (2011), identifica cinco tipos de governança (assunto que não vai ser explorado neste trabalho), baseando-se em nas seguintes variáveis: a complexidade da informação circulante entre os atores da cadeia; o modo como a informação necessária à produção pode ser codificada; e o

26 Las cadenas productivas dirigidas al productor son aquellas en las que los grandes fabricantes, comúnmente trasnacionales, juegan los papeles centrales en la coordinacíon de las redes de producíon (incluyendo sus vínculos hacia atrás y hacia delante). [...]. La industria automotriz constituye una ilustracíon clásica de una cadena dirigida al productor, con sistemas de produccíon multilaterales que involucran a miles de empresas (incluyendo parientes, subsidiarias y subcontratistas).

nível de competência do fornecedor. A partir disso, os tipos de governança identificados, discutidos, sobretudo em Gereffi, Humphrey e Sturgeon (2005), são: de mercado, isto é, horizontal (onde o preço domina); modular (com papel importante dos fornecedores, da tecnologia de informação e das normas de intercâmbio de informações); relacional (em que compradores e vendedores dependem de informações complexas que não são facilmente transmitidas ou aprendidas); cativa (exibindo alto grau de monitoramento e controle exercidos pela empresa líder); e hierarquizada (no extremo oposto do primeiro tipo, representando integração vertical e controle gerencial concentrado nas empresas líderes). A figura 3, a seguir, ilustra esses tipos de governança.

Figura 3 - Cinco tipos de governança de cadeia global de valor

Fonte: Elaboração própria com base em Gereffi; Humphrey; Sturgeon ( 2005, p. 89)

Diferentes aspectos dessas diversas abordagens podem ser identificados em qualquer cadeia. Mas, dependendo do objetivo da pesquisa ou da análise do autor, geralmente ocorre a escolha de uma abordagem. No caso deste trabalho, focado na cadeia global de turismo, e inspirando-se na pesquisa de Christian et al. (2011) sobre a integração de Costa Rica, Jordânia e Vietnam na cadeia global de turismo, percebe- se que tal cadeia é uma cadeia comandada por produtores. Assim se considera porque trata-se de cadeia caracterizada por investimentos diretos estrangeiros (IDE), sobretudo em hotéis de luxo, seguindo

padrões internacionais. Observa-se também a existência de grandes oligopólios e de altas barreiras à entrada, sobretudo no segmento turístico relativo a cruzeiros, cujo destaque no turismo internacional é elevado, e no qual se observa uma total dominância das principais tecnologias pelos atores lideres, normalmente originários de países mais ricos.

O terceiro ponto, nas considerações de Kaplinsky e Morris (2002) sobre o que é importante no estudo das cadeias, refere-se às quatro dimensões básicas de manifestação dessas estruturas de produção e troca em escala global, conforme apontado, igualmente, por Gereffi et al. (2011). Uma delas tem a ver com o fato de as cadeias representarem, antes de tudo, estruturas de tipo insumo-produto, referentes às principais atividades/segmentos (pesquisa e design, envolvendo concepção do produto, insumos, produção, distribuição, comercialização, vendas e, em alguns casos, reciclagem de produtos após o uso), com reflexos na caracterização da dinâmica e da estrutura das empresas, um aspecto que remete a traços como esfera (estatal, privada) e porte (grande, médio ou pequeno, entre outros), conforme os segmentos das cadeias.

Outra dimensão diz respeito ao escopo (estrutura) geográfico, que permite inclusive identificar as empresas lideres em cada segmento da cadeia levando-se em conta as diferentes escalas geográficas de atuação (local, nacional, regional, global. A terceira dimensão tem a ver com a já abordada problemática da governança, na esfera da qual se obtém o entendimento de como uma cadeia é controlada e coordenada quando certos agentes (atores) têm mais poder do que outros; é essa estrutura (autoridade e relações de poder) que determina como os recursos financeiros, humanos e matérias são alocados e fluem dentro da cadeia. A quarta dimensão refere-se ao contexto (a estrutura) institucional, permitindo ver como as condições e as políticas locais, nacionais e internacionais podem moldar a globalização de uma atividade (segmento/elo) de uma cadeia. Gereffi et al. (2011, p. 11) salientam o seguinte a respeito desses aspectos:

GVCs estão embutidas dentro de dinâmicas econômicas, sociais e institucionais locais. A inserção na GVC depende significativamente destas condições locais. As condições econômicas incluem a disponibilidade de insumos essenciais: os custos do trabalho, infraestrutura disponível e acesso a outros recursos, tais como finanças; contexto social governa a disponibilidade de mão

de obra e do seu nível de habilidade, como a participação feminina na força de trabalho e acesso à educação; e, finalmente, instituições incluem a regulamentação fiscal e laboral, subsídios e educação e política de inovação que podem promover ou prejudicar o crescimento e desenvolvimento da indústria27.