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Fundamentação mística da vontade.

No documento humbertoschubertcoelho (páginas 50-73)

Das inúmeras acepções da palavra mística, mais de uma pode ser aplicada ao pensamento de Böhme, embora algumas outras significações devam ser completamente

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Ibid., Pg. 611.

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banidas. Convêm, portanto, estabelecer os critérios que usamos e, principalmente, operar a exclusão dos significados equívocos.

A origem do termo “mística” estaria no grego myo, que pode significar “calar, fechar os olhos e mergulhar no mundo interior. É uma autêntica experiência de apreensão do supra- sensível, do divino ou do transcendente, não pelos sentidos nem pela razão e, sim, pela intuição.”67

As definições mais gerais do termo podem resumir-se em “la actividad espiritual que aspira a llevar a cabo la unión del alma com la divindad por diversos médios (ascetismo, devoción, amor, contemplación)”.68 Pode distinguir-se, portanto, pelos seus meios de se atingir a desejada união com o divino, sendo estes meios o ascetismo (moral), a devoção (fé), o amor (erótico-sensual) e a contemplação (intelectual-estética). Em relação a qualquer um dos métodos, entretanto, há que se destacar a primazia da intuição sobre a razão. A intuição é a forma de conhecimento que pressupõe uma ligação original ou possível entre o conhecedor e o conhecido, e mesmo se falamos de uma intuição intelectual, ela não é atingida pelo raciocínio, senão por uma percepção intuitiva especial. A intuição do asceta ou do santo geralmente pressupõe que o contato original entre o homem e Deus está obstruído pela ignorância, inferioridade ou pela materialidade do primeiro. A intuição pelo amor pressupõe, resumidamente, a necessidade de um arroubo superior do sentimento, uma transformação do nosso estado emocional vulgar num estado de amante do divino. A intuição contemplativa, como já dito, pressupõe uma forma especial de experiência ou percepção da realidade (cognitio dei experimentalis). Cada uma destas definições apresenta inúmeras subdivisões e pode associar-se a outras em, também, diversos graus e hierarquias.

Devido a estas características a mística costuma se associar, ou a uma visão monista/panteísta, onde o elo de ligação do homem com a sua fonte original já está dado, e precisa ser “relembrado” ou “resgatado” pelo esforço, ou a uma visão teísta, em que Deus concede a alguns a graça de uma iluminação ou revelação mística. Em geral o primeiro caso é aquele em que o religioso atinge o êxtase ou experiência mística após anos de esforço, enquanto o segundo caso é aquele em que o indivíduo é tomado inesperadamente por uma experiência que o converte de seu estado anterior, de ignorância e pecado, para o estado “desperto” ou de “renascimento”, como ocorrido com São Paulo. Conforme nosso entendimento, a doutrina de Böhme assume ambas as visões.

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EISLER, Rudolf. Wörterbuch der philosophischen Begriffe. Bd.1. Berlin: Mittler, 1904. pg 700. Citado em: Luís H. DREHER e Ednilson T. de OLIVEIRA. Mística e filosofia no Ocidente: principais tipos e tendências.

Revista Rhema. Pg. 22. 68

Um ponto igualmente crucial levantado pela mística é o caráter singular da classe de experiência que ela representa. Autores como Rudolf Otto e William James69 elaboraram minuciosas definições a partir de suas investigações empíricas e históricas, concluindo que a experiência mística exige, mesmo para a sua mera compreensão segundo os relatos dos iniciados, de uma faculdade altamente desenvolvida para este tipo de fenômeno. Esperar de um materialista que ele acolha o relato místico e o aceite como válido, tão válido quanto a experiência física, é tão somente uma impropriedade, pois a sua constituição e mesmo as suas preferências não o capacitam a apreciar a perspectiva mística. Como regra geral, o materialista não apenas não vivenciou a experiência mística, como a considera impossível. Ainda assim, como é normal em relação à empiria, qualquer pessoa se sente no direito de avaliar e emitir juízos sobre juízos sobre a religião e seu campo de experiência. Tratando- se de uma fenomenologia estritamente subjetiva, a mística é tão melindrosa quanto a experiência estética, em que o juízo de um leigo francamente desinteressado não importa, ou à experiência da vontade, segundo a qual se deve inquirir aos atletas, militares, monges e todo tipo de ascetas reconhecidos, nunca aos comodistas. Por razões de ordem ideológica, entretanto, as pessoas tendem a ter opiniões bem formadas em matéria de religião (ou a falta dela), de modo que o ignorante acerca da experiência mística julga-se no direito de negá-la ou dizer-se suficientemente instruído no assunto, enquanto o mesmo geralmente não acontece ou não é admitido quando o leigo em arte quer julgar uma obra, ou quando o sedentário deseja falar sobre disciplina. O caráter prático da religião, por causa de sua própria abrangência também no campo teórico, é frequentemente ignorado, e este é o motivo pelo qual os tratados sobre fenomenologia da religião começam com exemplos e alertas semelhantes aos que aqui fazemos.

Sintetizando estas percepções em categorias, fenomenólogos da religião como James concluem que a experiência mística é caracterizada por: inefabilidade, pois todos que a experimentam afirmam ser impossível expressar suficientemente o seu conteúdo. Qualidade noética, porque possui sempre um atestado de verdade por parte da consciência, e todas as vezes este atestado é mais gritante do que a experiência sensorial. Transitoriedade, porque o estado iluminativo não pode sustentar longamente a guerra contra a nossa condição material. Passividade, pois, “se bem a aproximação de estados místicos seja facilitada por operações voluntárias preliminares... o místico tem a impressão de que a sua própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma força superior.”70 E

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Respectivamente O Sagrado e As Variedades da Experiência Religiosa.

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na sequência deste argumento exemplifica poeticamente o que a consciência mística deve significar para a existência humana: “A face externa da natureza não precisa alterar-se (nem tudo o que entendemos por leis naturais), mas altera-se-lhe os significados para nós. Estava morta e está viva outra vez. É como a diferença entre olhar para uma pessoa sem amor e olhar para a mesma pessoa com amor.”71 É um bom exemplo de como a mística, que é a experiência do Sagrado, não altera nada daquilo em que o materialista acredita, e, mesmo assim, faz toda a diferença.

O fato de a metafísica e teologia de Böhme conviverem com uma mística pode, segundo nossas disposições, comprometer o seu valor como tais. Imperativo, portanto, pontuar o papel da mística enquanto tal e as exóticas peculiaridades da mística de Böhme, para que nossos preconceitos culturais adquiridos não a prejulguem como esotérica ou hermética.

Em termos muito gerais, de acordo com Klaus Ebert, “A experiência mística culmina numa vivência de unidade com Deus.”72 Para este autor, tal experiência concentra-se sempre num foco, temporal e espacial, pelo que a chamamos experiência e não a priori ou disposição religiosa, etc. Também conforme Ebert, “Imprescindível para o processo de unificação é a mudança substancial da consciência. Consistindo sempre num afastamento do mundo material e um voltar-se para dentro, para a espiritualidade.”73

Nada de essencialmente distinto, portanto, do recolhimento e da vita contemplativa, proposta por Platão, pelos estóicos e primeiros cristãos, visto que além do plano abstrato das ideias, todos pregavam alguma espécie de ascese ética. Até certo ponto, mística é o resultado desta ascese.

Este simples e primitivo significado já não parece ser possível na teologia luterana. “É muito complicado falar de mística em Lutero. A radical distinção entre o homem e Deus não permite qualquer espécie de conhecimento adequado acerca do divino. E a possibilidade de uma unio mystica é tida como autoengano.”74 A exclusividade da revelação pertence à Bíblia (sola scriptura) e a nada ou ninguém mais. Isto, embora Lutero permita ainda o sentimento místico, desautoriza uma mística com pretensões epistemológicas. Em certo sentido, para usar uma linguagem posterior, Lutero proibia a intuição intelectual.

Naturalmente o luteranismo jamais se resumiu à doutrina de Lutero, e desde o princípio houve entre os seus seguidores e colaboradores indivíduos de ânimo mais exaltado

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Ibid. Pg. 293.

72

Klaus EBERT. Protestantische Mystik. Von Martin Luther bis Friedrich D. Schleiermacher. Pg. 43

73

Idem.

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(para o bem ou para o mal) bem como outros com mais veia e gosto pelo racionalismo. Neste sentido seu professor e colega Andreas Karlstadt pode ser contado entre um dos reformistas mais inclinados à mística. Ele afirma que a revelação bíblica não renova o homem por tocar- lhe os ouvidos, mas por tocar o coração, a alma e o espírito. Nós nos reformamos porque sentimos a Bíblia, e este é um conhecimento simile simile.

Em clima psíquico semelhante, Thomas Müntzer, espírito mais sensível e introspectivo que o dos colegas Lutero e Karlstadt, considera que as visões ou sonhos místicos deveriam ser considerados, ao lado da Bíblia, fontes de revelação.75

No desenvolvimento desta abertura para a mística protestante surge uma mística barroca impregnada de sensualismo e lirismo. Num sentido essencial ela permanece luterana, a união mística não se realiza completamente como no ambiente católico. A unio latina é moderada pela consciência de abismo entre a criatura e o infinito, e a mística permite ainda uma radical transformação qualitativa, o renascimento (Wiedergeburt). Existe ainda, mesmo na elevação, um profundo mistério, uma distância incompreensível entre Deus e a criatura. O estado de criatura não pode ser superado. Entretanto, este luteranismo remanescente é um fio tênue no qual pouco se identifica das obras básicas de Lutero. Pelos efeitos que o erotismo76 e a estética religiosa de Weigel, Böhme e Valentin Andreae causaram na filosofia alemã posterior pode-se confirmar que estabeleceram uma alternativa à concepção inicial de um protestantismo avesso à razão e à sensibilidade.

Jacob Böhme deu um importante impulso na filosofia, especialmente para a religião da natureza e a filosofia da linguagem. Schelling, Hegel, Bloch e Wittgenstein se relacionam fortemente com este pensador. Na filosofia da religião ele influenciou as obras de Schleiermacher, Tillich e Jaspers. Para ele é fora de dúvida que tanto a experiência espiritual interior quanto a experiência natural exterior, conduzem da mesma maneira à contemplação de Deus.77

A mística de Böhme é um tratado especulativo sobre um elemento imponderável, a vontade, não um dizer assistemático e obscuro sobre algo desconhecido. Naturalmente que não se trata também de uma filosofia crítica, pois o conhecimento da vontade divina é dado por revelação imediata que, embora universalmente acessível, nem sempre está concretamente presente em todos os indivíduos. O ar de mistério desta filosofia provém da incapacidade de

75

Ibid. Pg. 56-58.

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Sobretudo quanto ao eros místico veja-se: Luís H. DREHER e Ednilson T. de OLIVEIRA. Mística e filosofia no Ocidente: principais tipos e tendências. Revista Rhema. Pg. 40-42.

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conceituar a vontade, mas esta conceituação é sempre perseguida por Böhme até os limites da cognoscibilidade. À semelhança de Hegel ele compreende que o conceito é uma tentativa de agarrar algo fugidio, que a coisa-em-si só revela parte de seu ser, e mesmo assim somente aos que se esforçam para chegar ao fim de um processo dialético que se dá no tempo. Entretanto, se ela só se permite conceituar vagamente, ela pode ser intuída imediatamente em toda a sua incondicionalidade. Como Pascal ou Rousseau, Böhme fala de algo indescritível, mas perfeitamente palpável para o homem, e a sua não é uma mística do mistério absoluto, senão uma mística da mediação entre mistério e conhecimento, onde ambos têm pesos iguais.

Com Böhme a mística interioriza-se e humaniza-se ao extremo. Sem perder o caráter de mistério, ou a sua incognoscibilidade, ela se põe à disposição humana como uma empresa absolutamente realizável. Na sequência de seus seguidores, como Leibniz (em parte), Goethe e o Idealismo, a vontade torna-se a matéria-prima do mundo, o intelecto é a ordem que estrutura esta vontade em inúmeras formas e assim a mística assume o duplo papel de reconhecimento da assinatura de Deus em tudo (processo intelectual idealista) e escolha pelo essencial, liberdade de ser real (processo voluntarista místico).

A partir desta perspectiva, a metafísica de Böhme está indissociavelmente ligada à sua mística, que praticamente equivale ou se permite sistematizar numa psicologia (em sentido lato). Sem a introspecção e a investigação empírica da vontade como fenômeno, não lhe seria possível elaborar uma filosofia voluntarista, a não ser partindo-se da pressuposição teórica da vontade e da liberdade para fins morais. Não é este o interesse de nosso autor. Ele quer uma explicação filosófica para os fatos que já tinha em mãos, através de suas revelações, e de sua experiência de ascese mística, e não um sistema teórico coerente. As referências à vontade, portanto, não são jamais postulativas; são descritivas.

Mas isso deves saber, que no regimento da tua alma tu és o senhor de ti mesmo; não se levanta nenhum fogo a partir do círculo do teu corpo e espírito, tu o despertas por ti mesmo. Verdadeiro é isto, todos os teus espíritos fluem para ti e se elevam de ti; e na liberdade um espírito tem mais força em ti do que outros.

Se uma fonte do espírito se eleva, isto não está oculto à alma: Ela pode imediatamente acordar as outras fontes do espírito, que se opõem ao fogo insurgente, e podem apagá-lo. 78

A constatação de muitas “fontes do espírito”, subitamente despertas pelo fluxo contínuo do fogo, forma a base da fenomenologia da vontade. Este fluxo não é caótico, e

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deriva diretamente da liberdade do indivíduo, embora ele não se aperceba e não se conscientize de que as muitas inclinações de sua alma são todas voluntárias, porque não atingiu ainda a profundidade da observação destes movimentos. Na precisa elaboração de Bornkamm: “ele (Böhme) entende cada sensação, não como receptividade, mas como produtividade, assim cada sensação é uma ação, e na verdade uma forma ou modo especial de ação (a do espírito).”79 Ora, a mística voluntarista, enquanto autoinvestigação, é um estudo ou uma ciência do comportamento, e não da sensibilidade. A sua realização é o comportamento santificado, não a mera percepção ou iluminação. Nisto ela se diferencia radicalmente da mística contemplativa, passiva.

Esta ciência é legitimamente espiritual, porque faz a ponte entre o intelecto e a vontade, entre o mundo do conceito e da forma, por um lado, e a força pura e incondicionada, de outro.

O indivíduo espiritual, ou seja, aquele que tem sua vontade livre sob orientação do intelecto, é sempre em alguma medida um gênio, pois cria a partir de si mesmo, de modo que seu ato e produto não estão na esfera do automatismo mecânico, e se revelam como sui generis, individuais, pessoais. Este ato espiritual acrescenta no mundo a ação de uma vontade livre intelectualizada, na condição, portanto, de causa sui, instaurando uma “novidade” no mundo. O intelecto em si é uma abstração, ausente de significado, a vontade em si é ausente de foco, de direcionamento construtivo. Na completude da força com a ordenação, o intelecto resgata a vontade de sua ação cega no automatismo, e a diviniza na liberdade. “Pois cada homem é livre, e é como um Deus de si mesmo, ele bem pode converter-se nesta vida em fúria ou luz...”80

Esta moral voluntarista não se assemelha, senão por alguns traços, àquela moral dos racionalistas, onde a interface entre vontade e intelecto é compreendida exclusivamente do ponto de vista do segundo. No primeiro caso a moral está fortemente imbricada no fundamento metafísico do mundo, como força organizada; já no segundo, a ideia de vontade está quase em contradição com a razão, e aquela precisa ser domada por esta. Na perspectiva dos místicos falar do incondicionado é uma necessidade impreterível, se o objetivo é uma revelação da estrutura natural da moralidade.

Os filósofos do sentimento e da interioridade, místicos e românticos, revelaram em suas filosofias o caráter voluntarista, emotivo e propriamente espiritual da liberdade. Sem isso a moral é uma prescrição teórica, talvez convincente do ponto de vista social, mas jamais

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Heinrich BORNKAMM. Luther und Böhme. Pg. 32.

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fundamentada. Disto estão cientes todos os místicos: “Alguém pode saber o que é Deus, e como se deve servi-Lo, mas se não se puder ser trazido por esta ciência da ira para o amor de Deus, e derrotar o diabo; se não se fizer isto, então estes não são melhores que aqueles que nada sabem... Aquele ao contrário, que serve a Deus sem saber, está já no amor de Deus.”81

O voluntarismo é essencialmente ativo. O seu pathos místico é a vontade que move o Universo e a moral humana. Os filósofos herdeiros da tradição mística voluntarista (como os idealistas) investigaram à exaustão o processo pelo qual a predisposição da vontade no caráter pode redirecionar-se pela educação. Concluíram que mesmo sendo a vontade o fundamento, sua essência livre faz com que seja consistente uma mudança estimulada pelo juízo.

Böhme deparou-se com o mesmo problema ao tentar fundir a teologia de Lutero e a sua intuição de liberdade neoplatônica. Ele podia fazê-lo por estar de posse do incondicionado, de ter optado pela experiência da vontade ao invés da mera especulação sobre ela, e com isso abriu caminho para a revolução metafísica do Idealismo alemão e da posterior metafísica da subjetividade, com sua afirmação peremptória do sujeito da ação.

Erasmo, Descartes, Malebranche e diversos outros também observaram que a liberdade implica algum grau de experimentação ou intuição direta da vontade como livre, embora estivessem todos mais preocupados com suas consequências e não se detiveram por mais tempo nesta experiência do que o necessário para assumi-la como pressuposto libertário. Assim Böhme estabelece pioneiramente pela sua investigação psicológica que a natureza humana, como a divina, se configura em três princípios essenciais, ou tríplice aspecto da vontade.

A vontade trina de Böhme é na verdade uma única vontade, assim como Deus e a natureza são trinos, cada qual em sua unidade. Esta trindade é, portanto, teológica, na medida em que provém da necessidade da teodiceia, cosmológica, porque deriva também dos elementos que compõem o microcosmo humano e sua relação com o macrocosmo, e filosófica/ética, porque justifica a dualidade de caráter e a primazia da liberdade na moral.

Retornando, pois, ao tríplice aspecto da vontade, sói ressaltar a dualidade inicial produzida no homem pela sua dupla natureza divino-terrena.

Assim vivo eu em minha carne, no espírito deste mundo, e minha carne serve ao espírito do mundo, e minha alma serve a Deus; minha carne nasceu deste mundo, e tem sua religião nas estrelas e nos elementos, que moram nele e tem poder sobre o corpo, e minha alma foi renascida em Deus e vive em Deus.

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Pois a lei oculta da eterna natureza está escondida na natureza da manada (instinto), e é uma grande prisão, e comanda o mal da alma corpórea.

E assim o homem paira entre bem e mal, e tem o seu inimigo em si mesmo, não só fora de si, o que faz o diabo forte contra ele, e capaz de o tentar de todas as maneiras... por isso as crianças de Deus são carregadores de cruz nesta vida.82

A este dualismo teológico acrescenta-se o dom superior, a síntese e superação da oposição entre bem e mal, a vontade livre, o livre-arbítrio que é o “centro da vontade”:

Então o homem é movido e sustentado por duas vontades, mas nele reside o centro, e ele tem a balança entre as duas vontades, como o mencionado, que o recupera para o reino de Deus, e cada prato é um agente, que faz conforme a alma permite. Então a alma está no centro da balança, os sentidos são os anjos, que vão de um prato ao outro, e um prato é o reino da maldade e da fúria, o outro é o renascimento na força de Deus para os céus.83[Grifo nosso]

E também nesta passagem que complementa a obra sobre os Três princípios da essência divina.

Vê homem, como és mundano e por isso mesmo celestial, em uma pessoa misturados, e carregas a imagem do mundano e também do celestial em uma pessoa: e então tu és de fonte maligna, e carregas a imagem do inferno em ti, que brota da fúria de Deus... Mas Jesus Cristo te devolveu ao centro, e te pôs de novo na posse do fio da balança... Agora tu colocas os teus sentidos no prato que te apraz, teu corpo é um campo, tua alma é o semeador, e os três princípios da essência de Deus são as sementes. O que tua alma semeia, cresce no teu corpo, e a colheita é tua.84

A revelação de que Jesus nos põe no centro, representando o despertar da consciência divina do homem, equivale a de Plotino, de que a alma deve buscar em si mesma um centro de onde pode enxergar a sua unidade com Deus.

Quando a Alma chega a conhecer a si mesma, vê que seu movimento não se dá em

No documento humbertoschubertcoelho (páginas 50-73)