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O “Panenteísmo” como último avanço teológico na síntese entre a metafísica dialética evolutiva e o naturalismo.

No documento humbertoschubertcoelho (páginas 195-200)

ÁPICES DA IDEIA DE LIBERDADE.

4. O “Panenteísmo” como último avanço teológico na síntese entre a metafísica dialética evolutiva e o naturalismo.

Até aqui a temática religiosa manteve-se nas entrelinhas da visão de mundo geral de Goethe. Vimos como o seu peculiar naturalismo permite-se conciliar com uma metafísica evolucionista, de modo que a progressão das mônadas faz brotar o espírito de uma natureza desde o princípio espiritualizada, justificando assim a possibilidade concreta de conhecimento, já que o espírito-natureza guarda em si total correspondência com a natureza- espírito de onde emergiu. Não é difícil constatar que este modelo corresponde a alguma espécie de monismo qualificado, e o meu trabalho intitulado A Religião de Goethe foi quase exclusivamente dedicado a classificá-lo como panenteísta. Para que o presente esforço não se restrinja a uma extensão ou continuação daquele, propomo-nos a estudar mais detidamente a noção e as implicações mais recentes do termo panenteísmo, buscando duplamente apontar a exatidão com que os termos mais contemporâneos se encaixam ao discurso de Goethe, e explorar mais amplamente as implicações desta que pode ser a (re)invenção teológica mais significativa da nossa era.

De partida, portanto, queremos salientar o tipo e as condições em que apresenta o panenteísmo aqui proposto. Por força de sua natureza agregadora, ao panenteísmo coube o desafio imenso de estabelecer a visão de mundo teológica compatível com a modernidade

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científica, com todos os meandros da filosofia contemporânea, tais quais: a fenomenologia, o existencialismo, a teologia do progresso, o liberalismo e o pluralismo epistemológico; bem como a própria necessidade de uma teologia mais existencial e libertária, passando desde a sua mais perfeita formulação por Charles Hartsthorne à condição de elemento incontornável da teologia e da filosofia da religião do último meio século. Por isto faz-se talvez necessária uma crítica e delimitação do panenteísmo, antes que o seu mais amplo emprego transmita a falsa impressão de que coadunamos sem ressalvas com o modelo “da moda”.

Niels Henrik Gregersen em seu artigo intitulado Três variedades de Panenteísmo, apresenta-nos a mais sintética e precisa definição do termo, articulada em duas instâncias:

1- Deus contém o mundo, embora continue sendo mais que o mundo. De acordo com isto, o mundo está (em certo sentido) “em Deus”.

2- Enquanto contido “em Deus”, o mundo não só deriva sua existência de Deus, mas também retorna a Ele, mesmo preservando a característica de ser criatura. Desta forma, a relação entre Deus e o mundo é (em certo sentido) bilateral.

Claro, continua Gregersen, que a parte controversa desta formulação é o valor exato da sentença “em certo sentido”.411 Esta ambiguidade abre espaço para a manutenção de alguns dos velhos modelos teológicos, bem como de suas contradições e especificidades inconciliáveis. Resumidamente um modelo panenteísta pode ser dipolar, quando Deus e mundo se completam reciprocamente e Deus se realiza temporalmente, ou qualificado, quando Deus é completo sem o mundo, e o deriva de sua própria essência em sentido criativo e amoroso. Estes modelos possuem ainda muitas subdivisões, de vez que os conflitos de escolas teológicas persistem com o emprego do panenteísmo, além de sua vagueza original quanto à definição exata de que modo ou em que sentido Deus contém o mundo e tem com ele um relacionamento.

Também há controvérsia quanto ao momento histórico e a égide filosófica responsáveis pela criação do panenteísmo, conforme vimos superficialmente ao final do primeiro capítulo desta tese. Enquanto para John Cooper ele é perene, remontando a Platão, Trimegisto e aos Vedas, e experimentando refinamento conceitual constante, a maioria dos autores defende a ideia de uma revolução provocada pelo Idealismo alemão, e sintetizada no neologismo de Karl Friedrich Krause, no início do século XIX, a partir de quando o conceito

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Niels H. GREGERSEN. Three Varieties of Panenteism. In: In Whom We Live and Move and Have Our Being. Ed. Philip CLAYTON & Arthur PEACOCKE. Pg. 22.

passaria a viger, derivando depois versões processualistas (Whitehead, Hartsthorne), soteriológicas e idealistas. Estes são os problemas mais patentes, além, naturalmente, das críticas de conteúdo teísta, embora estas venham diminuindo rapidamente, na medida em que os teólogos se convencem cada vez mais de que o panenteísmo não ameaça as características distintivas do teísmo, antes conjugando-as a um monismo muito similar, mas não equivalente ao do panteísmo.

Em sentido filosófico o panenteísmo está ligado à metafísica da subjetividade, e mais especificamente à necessidade, já abordada, de conciliar a intuição de sujeito transcendental à de “um outro sujeito transcendental”, que vem a ser Deus, e que segundo Kant estaria necessariamente além do conhecimento possível. O problema é que já com Kant este “outro” transcendental precisa ser postulado, seja pela metafísica, seja em sentido prático, e até na ciência, mesmo que só hipoteticamente (como discutimos no começo deste capítulo). Segundo John Cooper, o panenteísmo moderno surge da solução fichteana deste problema, já que este último reconcilia fenômeno e númeno na forma metafísica de um sujeito finito dentro de um Sujeito Infinito.412 Na sequência Cooper expõe parte da metafísica de Schelling, semelhantemente ao que fizemos na terceira parte deste capítulo, e conclui que ela é tão- somente uma forma moderna da teologia de Böhme,413 no que é seguido por Hegel. Esta percepção só se intensificou com o darwin-spencerianismo e um romantismo tardio a ele associado, a partir do que a ideia de um universo em desenvolvimento espiritual parecia, cada vez mais, ter suporte científico.

Além de estar inserido no contexto do desenvolvimento do panenteísmo, Goethe deixava claro que: “Os mistérios, particularmente os dogmas da religião cristã, se identificam com objetos da mais profunda filosofia, e é apenas uma roupagem mais positiva, que distingue esta daquela. Por isto denomina-se frequentemente, conforme o ponto de partida adotado, a teologia como metafísica confusa, ou a metafísica como uma teologia platônica confusa.”414 Damos ênfase especial ao fato de que o poeta começa comparando a filosofia ao cristianismo, e termina por substituir este último pela teologia platônica, o que é muito revelador acerca de sua concepção teológica.

Diante da moderna compreensão científica o panenteísmo e as suas formas filosóficas correspondentes não estão menos em voga do que no terreno puramente abstrato da filosofia mais especulativa. Para Paul Davies, astrofísico do observatório do Arizona, a ciência do

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John COOPER. Panentheism. The Other God of the Philosophers. Pg. 92.

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Ibid. Pg. 102.

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século XX deu sucessivos golpes fulminantes no mecanicismo, reabrindo espaço para uma nova teologia. Ele argumenta que três eventos científicos, todos ligados à moderna noção de emergência, foram essenciais a esta mudança.

O primeiro deles seria a teoria da indeterminação física no nível sub-atômico, que basicamente acomodava duas concepções: A de que a indeterminação seria apenas consequência do problema da medição; e a interpretação de Copenhague, segundo a qual a indeterminação seria intrínseca ao fenômeno, na forma de uma espécie de liberdade das “mônadas”. Esta segunda posição tem ganhado a dianteira desde os anos 1980 dentro da física quântica e de partículas.415

O segundo ponto a favor de um universo emergentista seria a teoria da evolução das espécies que, em sua base molecular, encontra grandes dificuldades para empreender o salto da química à biologia. Em outras palavras, parece haver um lapso insuperável entre a teoria das espécies, desenvolvida por comparação entre seres vivos, e a compreensão contemporânea da química, que não consegue derivar tão facilmente a vida da matéria inanimada. A particularidade dos organismos físicos e as suas regras de evolução e seleção sugerem fortemente um grau de indeterminação e imprevisibilidade permanentes, e esta seria a única forma de retirar o advento do surgimento da vida do obscuro “salto de princípio” entre química e biologia. Em outras palavras, como já vimos, é perfeitamente válida a interpretação de que “Deus faz as coisas fazerem-se a si mesmas.”416

Por fim, mas não por último, a teoria do caos veio destronar o mecanicismo dos macro-eventos físicos. Ao contrário do que se pensa, a teoria do caos não se baseia na concepção de que eventos muito complexos sejam imprevisíveis, mas de que todos os eventos físicos partem de um sistema imprevisível.417 Assim, os fenômenos de fácil análise, como a queda de uma pedra ou a dilatação de uma panela, não seriam senão artificialmente previsíveis, pois o seu isolamento do contexto é uma abstração provocada pelo cientista, que recorta um tempo preciso, numa condição controlada. Na natureza, e a longo prazo, uma pedra ou outro corpo de comportamento tido como “clássico”, sofrerá transformações indeterminadas dentro do sistema maior do mundo ou do ambiente em que se encontra.

Em nenhum destes casos é obrigatória a inferência de que este estado de coisas corresponde a um indeterminismo ontológico. Embora esta conclusão seja perfeitamente possível, é igualmente viável assumir que este indeterminismo epistemológico se expresse

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Paul DAVIES. Teleology without teleology: Purpose through Emergent Complexity. In: In Whom We Live

and Move and have Our Being. Ed. Philip CLAYTON & Arthur PEACOCKE. Pg. 98. 416

Ibid. Pg. 106.

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como mistério “para nós”, enquanto Deus, ou uma instância metafísica qualquer, poderia perfeitamente agir dentro deste espaço de indeterminação da natureza provocando assim um direcionamento dos eventos de maneira inteiramente não intervencionista. A natureza pode nos estar avisando de que partes dela estão abertas à livre escolha, nossa ou divina, e que não é necessário cancelar ou modificar as leis naturais para que haja uma ação da Providência. Isto continua sendo inválido para aqueles eventos clássicos, como a queda de uma pedra ou a fervura da água, mas se todos os eventos sutis e indeterminados, atribuídos a circunstâncias, fenômenos colaterais ou propriedades mais voláteis e imprevisíveis da matéria a nível atômico, se eles puderem ser dirigidos por uma força cósmica, o resultado da cadeia de atividade em nível subterrâneo para nossa observação, mas ainda perfeitamente naturais, pode produzir incríveis e/ou muito convenientes eventos naturais, o tempo todo. Com isto temos uma aproximação teórica, partindo não da teologia ou da filosofia, senão da própria ciência, que facilita a conciliação entre a fenomenologia do mundo natural e a lógica própria do Idealismo e do Romantismo.

Ainda segundo Paul Davies, esta aliança entre panenteísmo e naturalismo emergente é idealizada na metáfora do jogo de xadrez. Deus, tendo criado as leis naturais, estabeleceu todas as regras do jogo, de modo que pode prever todos os movimentos possíveis, mas o jogo não é determinado, possui um grau relativamente alto de liberdade e criatividade, de modo que mesmo condicionado a certos tipos de comportamento ainda existe uma quantidade infinita de possibilidades. Além disto, Deus pode jogar com algumas das peças menos importantes, aquelas que geralmente se supõe estarem movendo-se ao acaso, de modo que dentro de suas regras pode ainda agir livremente, de maneira natural e não intervencionista. Se o jogo for muito longo, e muito complexo, como parece ser o universo, os efeitos das pequenas jogadas da Providência, somadas ao condicionamento das regras por ela estabelecidas serão cruciais para o resultado, sem que as pessoas deixem de ser as peças principais, com completa liberdade de ação e responsabilidade. Do ponto de vista humano, as mãos que movem as pequenas peças podem ser invisíveis e o desenho do jogo dado como ocasional, mas a tradição metafísica e religiosa também mostra que não é tão custoso ler nas entrelinhas da natureza uma ação inteligente onipresente.

Russel Stannard, também físico interessado em teologia, sustenta que o panenteísmo é a única formulação religiosa viável diante da teoria do Big Bang.418 Segundo esta, o universo teria surgido espontaneamente do nada, numa estrutura de espaço-tempo, de modo que não

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Russel STANNARD. God in and beyond Space and Time. In: In Whom We Live and Move and have Our

faz qualquer sentido falar em um espaço ou tempo anterior à criação. Não há “um momento” em que Deus estivesse “em algum lugar”, e subitamente decidisse criar. Do ponto de vista da física, o universo não possui momentos e lugares, mas é um monobloco de espaço-tempo, onde toda a existência está dada (o ser é). Todo “agora” é uma noção psicológica, pois para a natureza só existe uma cadeia de sequência sem prioridades ou valorações. Muito bem, neste universo há pouco espaço para o Deus do senso comum, mas há muito espaço para um panteísmo ou panenteísmo, como o de Einstein, que se declarava espinosano. Se não há sentido em dizer que a existência é criada por Deus, há em dizer, como Goethe, que “a existência é Deus”419, e que os seus atributos invisíveis podem ser vistos por meio de todas as coisas criadas.

O que há de interessante na pesquisa mais recente sobre o panenteísmo é que ela opera um resgate da especulação mediadora entre ciência, filosofia e religião, de uma maneira sem precedentes desde o Idealismo. Em manuais específicos sobre o panenteísmo, que são muito poucos,420 autores como Goethe e Böhme são citados, deixando claro o reconhecimento da pesquisa atual aos seus predecessores, e reforçando duplamente a conclusão de que nossos autores podem ser enquadrados como panenteístas, e de que seu pensamento possui relevância para este tipo de construção contemporânea.

Na forma goetheana, o logos não é verbo ideado ou palavra imperativa, expressão de sabedoria, mas ação, de modo que as definições e adjetivações “Deus é isto; Deus é assim...” não possuem tanto sentido quanto a investigação da natureza, pois só esta última nos diz daquilo que Deus faz. O que nos deve interessar é o Deus observável em ato, e não o que ele “é” abstratamente. É pela sua ação universalmente expressa que podemos vislumbrar o seu caráter, o seu “método de trabalho”, e boa parte de sua intenção. A ação divina, aquilo que mais interessa ao próprio Deus, seu ofício, está e sempre esteve diante de nossos olhos: a natureza. E como bem vimos, o mesmo pode ser dito de Böhme.

Aqui começa a esboçar-se o encontro daquela consciência religiosa, que parte necessariamente da finitude humana, com a liberdade individual.421 Jörg Dierken, bem como seu mestre Dieter Henrich, defendem ter encontrado esta síntese em Kant, mesmo admitindo que ela só existe como conclusão de uma série muito complexa de revisões do kantismo segundo inovações de Fichte e Hegel, e mesmo assim só conceitualmente. Em nossos autores esta mesma síntese pode ser encontrada, mesmo que não conceitualmente, de maneira muito

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Hermann TIMM, Gott und die Freiheit. Studien zur Religionsphilosophie der Goetheszeit. Pg. 316.

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As maiores referências são atualmente as obras de John Cooper, Philip Clayton e Arthur Peacocke, citadas aqui.

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No documento humbertoschubertcoelho (páginas 195-200)