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O ensaio científico como complementação da teoria do conhecimento de Kant:

No documento humbertoschubertcoelho (páginas 114-140)

ÁPICES DA IDEIA DE LIBERDADE.

1. O ensaio científico como complementação da teoria do conhecimento de Kant:

Johann Wolfgang Goethe, ao contrário de Jakob Böhme, é um autor que dispensa contextualização e introdução. Seus poemas e romances são celebrados como marcos da alta cultura da modernidade literária, e mesmo os pontos gerais de sua religião, filosofia e método científico foram já pesquisados e expostos em minha dissertação de mestrado intitulada A Religião de Goethe.218

Ademais o retorno dos estudos sobre Goethe, especialmente nos últimos anos, tanto quanto a temas clássicos quanto aos mais contemporâneos problemas da biologia ou da literatura, nos permite falar de sua reinserção no quadro maior do pensamento ocidental.

O projeto científico de Goethe pretendia superar a dicotomia filosófica produzida pela filosofia transcendental de Kant, e, principalmente, assumia uma filosofia da natureza que se negava a adotar modelos e sistemas filosóficos de várias espécies que ele incentivou e patrocinou em suas respectivas gestações (o de Schiller, o de Schelling, o de Hegel, o de Schopenhauer).É justo afirmar que Goethe foi o articulador de muitos dos movimentos intelectuais do Iluminismo tardio, mesmo quando seu próprio trabalho careça de rigor sistemático, qualidades específicas e, justamente por estes motivos, um maior impacto sobre as disciplinas.

Estas e outras características fazem do “bardo nacional da Alemanha” uma figura chave na compreensão da formação do espírito contemporâneo, e uma renovada fonte de experiência para a filosofia e a religião, quiçá para as ciências, onde sua intermediação junto a Schelling na formação da filosofia da natureza também trouxe resultados frutíferos. Os estudos sobre Goethe compõem na Alemanha como que uma disciplina particular, com sua própria linha de sucessão ligada aos institutos oficiais de pesquisa como a “Biblioteca Ana Amalia” e o próprio “Instituto Goethe”. Esta assim denominada Goetheforchung219é extensa o bastante para esvaziar quaisquer pretensões de originalidade por parte dos estudiosos do

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Disponível em domínio público.

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Em português Pesquisas sobre Goethe. Um campo de estudo que já estava em curso desde a vida de Goethe e que conta com centenas de colaboradores das mais diversas áreas.

assunto, mas tem a vantagem de munir os mesmos de suficiente material para os mais variados interesses.

No tocante ao modelo científico de Goethe, o campo em que o conhecimento geral sobre o autor está em maior descompasso com a grandeza de sua contribuição, observa-se dentro da catalogação existente indícios de que a epistemologia de Goethe intentasse uma “correção” empirista à proposta kantiana,220 atuação esta que pressupõe naturalmente toda uma metafísica, e que o autor só apresentou parcial, quase inconscientemente.221 Tal compreensão nos permite, imediatamente, compreender como, diante da crítica kantiana, Goethe podia sustentar a objetividade da religião, da arte e de um naturalismo metafisico (no caso através da biologia), casos estes em que as restrições daquela filosofia haviam sido patentes.

A primeira impressão sobre a ciência de Goethe pode ser, conforme os escritos pelos quais se principie ou a seriedade com que se avalie tanto o método quanto os seus resultados, quase infinitamente vária. Boa ciência, vanguarda da biologia, esoterismo, alquimia, filosofia disfarçada de ciência, ciência de consequências filosóficas, são apenas algumas das alcunhas que se encontram em comentadores, todas elas válidas em certos aspectos.

O método de Goethe, errado ou não, juntamente com todos os seus pressupostos místicos, produziram intuições fecundas para a biologia, e segundo muitos222até para a física. A força destes resultados evoca, ao menos em parte, um respeito pragmático quanto a filosofia da natureza que os embalou. Se por eles foram alcançadas algumas verdades essenciais sobre as leis da natureza, é cabível perguntar se estes pressupostos místico- filosóficos não foram a causa principal de tais descobertas sobre o funcionamento do real. Isso nos parece possível e, ao menos quanto à imparcialidade, melhor do que excluir dogmaticamente o papel da visão de mundo goetheana, e supor, sem qualquer base segura para isto, que aqueles frutos se produziram apesar da inclinação espiritualista da ciência de Goethe.

O fato é que Goethe protagonizou uma série de descobertas científicas e se envolveria com as teorias mais românticas da filosofia da natureza, identificando então a ausência de elementos que, segundo ele, deveriam ser acrescidos ao sistema kantiano para que ele realmente pudesse abranger a totalidade da experiência humana.223 Entre suas descobertas científicas legítimas destaca-se a do osso intermaxilar, o que só pode ser feito com a aplicação

220Peter MATUSSEK.Goethe und die Verzeitlichung der Natur. 221

A mesma encontra-se analisada na íntegra em minha dissertação de mestrado A Religião de Goethe.

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Especialmente Werner Heisemberg.

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de dedução evolucionista na comparação de ossadas de animais e de humanos.224Na análise do sistema crânio-espinhal ele identificou semelhanças nas estruturas das vértebras e da caixa craniana de inúmeras espécies de répteis, mamíferos e aves, e não contentando-se com estes indícios colocou a própria teoria sob um rígido critério de falseabilidade, declarando que todos os animais, tendo sido derivados de uma mesma criatura primordial e simples, deveriam conter todos os mesmos órgãos, não importando o quão distintos, subdesenvolvidos ou metamorfoseados eles se mostrassem de um para outro animal. Qualquer órgão que uma criatura contivesse em excesso, deveria ser uma metamorfose de um órgão mais simples presente em todos os outros seres.225 Se a teoria se mostrasse empiricamente forte e plausível, estaria contribuindo para solidificar não apenas a hipótese de que o homem é um animal natural, como os demais, mas, com isso, também minava a afirmação kantiana de que a compreensibilidade do sistema da natureza estivesse além da experiência.

Foi a popularidade desta descoberta que chamou a atenção de Charles Darwin para a teoria da metamorfose de Goethe, a qual ele cita muito elogiosamente no adendo à segunda edição de Origem das Espécies.226Foi provavelmente graças à orientação de Ernst Haeckel que Darwin reconhece que diversas das ideias tidas como senso comum na biologia de sua época foram desenvolvidas a partir de Goethe. Darwin também era ávido leitor da filosofia de Caro, e da concepção espiritualista da natureza de Alexander Humboldt, ambos discípulos de Goethe.227

Mas por que, poder-se-ia perguntar, um trabalho científico tão frutífero não encontrou maior aceitação? Há para isso motivos não menos fortes, a exemplo das teorias fracassadas e controversas sobre a natureza da luz, na célebre Doutrina da Cores, e de ideias que, enquanto filosoficamente úteis, soavam excessivamente esotéricas para qualquer cientista. A maior representante das teorias científicas místicas de Goethe é sem qualquer dúvida a da planta primordial (Ur-pflanze).228 Derivando de um pressuposto metafísico de que todos os seres contêm uma única ideia diretriz, expressa num órgão essencial e axial da existência daquele ramo de seres, a conclusão de que a folha seria este órgão arquetípico de todas as plantas, seu objetivo e ponto de partida, parecia a Goethe sua maior descoberta “científica”.

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J. W. GOETHE. Versuch über die Gestalt der Tiere. Citado por Robert RICHARDS. The Romantic

Conception of Life. Pg. 498

225

J. W. GOETHE. Versuch über die Gestalt der Tiere. Citado por Robert RICHARDS. The Romantic

Conception of Life. Pg. 498

226

CharlesDARWIN. The Origin of Species. Pg. 410.

227

Robert RICHARDS. Darwin on mind, morals and emotions. In: The Cambridge Companion to Darwin. Ed. Jonathan HODGE and Gregory RADICK. Pg. 93, 95.

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Naturalmente, os conflitos em que o poeta e naturalista se envolveu em prol de semelhantes teorias desgastaram irremediavelmente a sua imagem no meio científico, a ponto de inclusive solapar suas conquistas.

Observando que o seu trabalho como cientista não poderia prescindir de uma respectiva doutrina da ciência, sem o que o ambiente extremamente filosófico da cultura alemã de então lhe seria aversivo, o poeta teve também de se haver com a filosofia, para o que concorreram em muito sua amizade com Schelling e Schiller, bem como o contato privilegiado com Fichte e Hegel. No caso de Schiller e Schelling, cujo impacto foi muito maior, a correspondência com o primeiro atesta a importância das intuições e do domínio que o primeiro tinha da filosofia kantiana. Foi, portanto, Schiller quem despertou Goethe para a particularidade de sua própria posição em contraste com o kantismo que ele mesmo defendia. Longe de marcar uma ruptura, foi esta discussão que aproximou os dois grandes poetas.229Schelling, por sua vez, teve um curto mais intenso contato com Goethe por ocasião de sua estadia em Jena:

Ele e Goethe se encontravam frequentemente para discutir temas filosóficos, científicos e artísticos... Seus (de Goethe) diversos poderes tiveram sobre o outo efeitos quase imediatos. No inverno de 1798-99, Schelling começou a lecionar sobre a Filosofia da Natureza... Neste período particularmente intenso, de meados de setembro a meados de outubro de 1799, os dois se encontraram quase diariamente para discutir este problema (da observação), e juntos gastaram uma semana debruçados sobre oEinleitung zu dem Entwurf eines Systems der Naturphilosophie (Introdução a uma modelo para o sistema da Filosofia da Natureza).230

O intercâmbio resultou frutífero para ambos. Schelling conclui que a experiência deveria ter parte vital no sistema da natureza, e “começou a manifestar aquela atitude espinosana que Fichte escarniou”.231 Goethe já havia repensou as relações entre ciência e arte, especialmente percebendo a urgência filosófica de conectá-las, já que ambas se desdobram da ligação originária entre mente e natureza, “Schelling, no entanto, acelerou a caminhada de Goethe rumo ao Idealismo”,232 o que se observa desde o escrito do primeiro sobre a Alma do Mundo, que Goethe tentou apreender num poema com o mesmo título.

Por este viés a característica que imediatamente salta aos olhos é a semelhança entre a ciência de Goethe e o naturalismo filosófico e teológico de Jakob Böhme, embora a primeira

229

Hermann GLOKCNER. Die Europäische Philosophie, Pg. 709.

230

Robert RICHARDS. The Romantic Conception of Life. Pg. 464.

231

Ibid. Pg. 465.

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esteja indubitavelmente expressa em linguagem moderna. Tais analogias vão desde o princípio naturalista, pelo qual ambos creem haver uma conexão necessária entre a natureza e o homem, acarretando, portanto, na capacidade deste de desvendar o funcionamento daquela, passando pela dialética entre os opostos e a sua conciliação num nível maior, ou síntese (ideia estritamente filosófica/lógica), até a noção de que tudo na natureza é animado e dotado de vida, portanto, vontade (traço eminentemente espiritualista que ambos incutiram em Schelling e Schopenhauer, entre outros).

Tais semelhanças fazem-nos pasmar diante do fato de Goethe não considerar Böhme entre suas principais influências. Todavia, esta reação não se justifica quando se está a par da fecunda influência de Böhme sobre toda a filosofia e cultura alemã, bem como do fato de que diversas das fontes diretas de Goethe, desde alquimistas como Paracelso até filósofos como Schelling, foram ou mestres do próprio Böhme ou seus discípulos. E, mais ainda, esta perfeita similaridade entre os sistemas de Böhme e Goethe, conforme observa Gerhard Wehr com muita astúcia, talvez seja muito mais devida à afinidade de caráter entre ambos do que aos elementos que Goethe pode ou não ter adotado do filósofo teutônico. Mesmo sem uma leitura extensa por parte de Goethe, ele pode ter recriado muitas ideias de Böhme, ao invés de tê-las adotado ou copiado, porque ambos compartilhavam da mesma metodologia: Intuição direta da natureza; além de estarem impregnados pelo fundo cultural germânico, fazendo-se assim cortejados pelos pensadores desta nação, a par de todos os conflitos que estes pudessem ter entre si.233 Esta conclusão é da mais alta relevância, se também concordamos com Wehr em que os três maiores discípulos de Böhme sejam Goethe, Schelling e Hegel; os três patronos da moderna dialética da natureza.

Nestas condições, e considerando-se as ambiguidades típicas de Goethe em suas muitas fases e apreciações de cada autor e ideia, observa-se nos artigos mais filosóficos de Goethe uma sutil disposição de complementar ou superar a filosofia de Kant. Por um lado ele considerava o filósofo de Königsberg o estágio máximo do pensamento alemão, enaltecendo especialmente o papel conciliatório da terceira Crítica quanto à dicotomia entre o princípio de causalidade e a liberdade. Por outro, como veremos, ele sentia duramente a contradição entre alguns postulados fundamentais da filosofia transcendental e sua própria postura como cientista, a qual ele julgava essencial para captar corretamente os fenômenos.

Dos diários e cartas do autor se depreende que ele, ainda que sempre admirado com toda a nobre constelação de filósofos alemães, permanecia insatisfeito com os rumos que a teoria tomava, em contradição com suas crenças na importância de uma filosofia da

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sensibilidade. Assim ele se expressa a Eckermann: “Na filosofia alemã havia ainda duas coisas a serem realizadas. Kant escreveu a “Crítica da Razão Pura”, a partir da qual muitíssimo aconteceu, mas que não fechou o círculo. Agora seria preciso que alguém mais hábil, mais grandioso escrevesse a crítica dos sentidos e da compreensão humana...”234

Em outras palavras, Kant fez a mais completa e precisa investigação fenomenológica introspectiva, e a partir disto elaborou uma estrutura eficaz de descrição do aparato cognitivo. Resta “agora” fazer uma igualmente completa e precisa investigação fenomenológica sensorial, e a partir dela descrever e revelar o aparato intuitivo. O erro de Kant não está propriamente em algo que ele fez, mas no que ele não fez. Ele compreendeu bem o entendimento, mas não compreendeu bem a “visão”.

A diagnose de Goethe foi próxima da apresentada pelo Idealismo, apontando para a necessidade urgente de uma igualmente competente investigação da intuição e, por conseguinte, da restauração da intuição intelectual. No entanto, Goethe jamais se deu por inteiramente satisfeito com a formulação do Idealismo, embora aprovasse muitas de suas emendas a Kant. Foi talvez Schopenhauer quem mais adequadamente compreendeu a busca de Goethe por um refinamento da intuição sensorial (evidentemente numa forma transcendental do termo). A troca de correspondência entre Goethe e estas personagens mostra uma preferencia do poeta pelo maior realismo empírico de Schopenhauer, embora fossem os idealistas quem o considerassem, por sua vez, como um mestre.

Para compreender o desenvolvimento da solução goetheana para os problemas da filosofia transcendental, é preciso antes considerar exatamente quais eram estes problemas a partir de suas próprias origens e intenções.

A filosofia de Goethe partia, enquanto historicamente situada, da convicção de que a estrutura da filosofia transcendental seria derivada da brilhante percepção de Kant de que tempo e espaço não são consequência das relações entre partes, conjuntos ou análises de conceitos, mas de uma intuição pura. Concluindo então que estes não são conceitos, mas “uma outra ordem psicológica” distinta que denomina estética transcendental, capaz de

esquematizar as experiências. Como esta ferramenta é independente da analítica dos

conceitos, surge um importante e inevitável dualismo entre intuição e conceituação.235

O filósofo tenta justificar a sua percepção da dualidade de três formas. A primeira é metafísica; espaço e tempo não se encaixam em nenhuma característica ontológica dos

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Johan Peter ECKERMANN. Gespräche mit Goethe. 17/02/1829.

235

Paul GUYER. Absolute idealism and the rejection of Kantian dualism. In: Cambridge Companion to German

conceitos. Não são substâncias, nem propriedades ou atributos de substâncias, nem relações entre substâncias. A solução epistemológica é: se tempo e espaço não fossem formas a priori da intuição, então não se poderia fazer absolutamente qualquer relação entre conceitos num espaço e tempo abstratos, como a geometria, e definir juízos sintéticos a priori. Se a matemática é possível, tempo e espaço tem de estar acessíveis à mente como uma intuição pura. A outra solução para isso seria afirmar que espaço e tempo são propriedades de substâncias, ou substâncias, ou relações entre substâncias, o que se provou ser impossível na proposição anterior. Derivada desta primeira distinção, ressaltava-se também uma segunda, entre intuições atuais e possíveis, pois do contrário não haveria a distinção entre representações do entendimento (imaginação, pensamento) e da sensibilidade (experiência factual). Se nosso entendimento fosse exclusivamente intuitivo, todos os seus objetos seriam atuais, da sensibilidade. A Terceira cisão, como um refugo final das consequências lógicas das outras, é a percepção de que a cognição de um dado da intuição se manifesta peculiarmente pela presença de uma “matéria” que fere a sensibilidade, enquanto que as “formas” do entendimento, seriam aquelas estruturas independentes de qualquer intuição dada, podendo unir-se a uma determinada intuição na cognição de um fenômeno, ou ser tratadas e analisadas por si mesmas, a priori.236

Até aqui clarificou-se suficientemente a resolução da incognoscibilidade das essências, na linguagem kantiana as coisas-em-si-mesmas, já que a massa de dados oferecida pela matéria é, segundo o sistema kantiano, de todo incompreensível, até submeter-se ao nosso esquematismo mental, que pode ou não corresponder à essência da coisa. Deste traço de ceticismo conclui-se que o conhecimento das coisas está antes referido ao nosso próprio aparato de conhecimento do que à essência delas. Mas Kant não define dogmaticamente a impossibilidade do acesso às essências, apenas atesta a impossibilidade da sua verificação, de modo que, a partir de nossas capacidades, não há como nos certificarmos de que qualquer de nossas intuições, sensíveis, corresponda à intuição perfeita e essencial da coisa, o que viria a ser uma intuição intelectual A este respeito Kant reporta-se ao final da Estética Transcendental à intuição intelectual como a intuição criativa originária e direta das essências, correspondente a forma como Deus intui perfeitamente as coisas por ele criadas.237

Da própria estrutura da filosofia transcendental, como de qualquer sistema, surgem ambiguidades reais ou derivadas da dificuldade de interpretação de determinadas conexões entre as partes, e no tocante à intuição intelectual elas foram exaustivamente exploradas por

236

Ibid. Pg. 101.

237

inúmeros autores entre os anos 1790 e 1800.A Goethe não interessavam tanto as críticas de filósofos e teólogos aos aspectos lógicos da filosofia transcendental, especialmente os contidos na primeira crítica, que ele quase jamais comenta. Ele sentia uma atração particular pela forma como a faculdade do juízo elabora os arquétipos das coisas, embora ainda não de maneira determinativa, dando suficiente espaço para especular sobre a essência dos fenômenos.

A outra forma de mitigar o dualismo kantiano, além da intuição intelectual, consistia em rever as suas premissas lógicas a partir de outros pontos de vista que, embora não correspondentes ao de Kant, fossem totalmente coerentes com o sistema. Este segundo caminho constituiu as filosofias de Jacobi, Reinhold e Maimon. O primeiro ressaltou, dentro do kantismo, o ceticismo sobre o racionalismo, desarticulando a importância do conhecimento objetivo e ressaltando exatamente a necessidade da fé diante da fragilidade do intelecto. O segundo, em parte seguindo esta mesma orientação, entendeu que o dualismo entre intuição e entendimento era derivado da representação, e não o seu constitutivo, como queria Kant. Assim, de maneira quase fenomenológica, a mente teria primeiro a representação, podendo abstrair desta intuições puras de tempo e espaço ou categorias do entendimento. O terceiro, indubitavelmente o mais competente quanto ao aspecto lógico, produziu uma solução monista praticamente inescapável, apontando para o fato de que sensibilidade e entendimento são gradações quantitativas de uma única fonte cognitiva, e que o entendimento finito seria formalmente, mas não realmente distinto do infinito.238 De uma certa maneira, a formulação de Maimon resgatava modelos lógicos de Leibniz e Espinosa para minar conscientemente o dualismo kantiano.

As duas formas de superação do dualismo kantiano, em suas variadas vertentes, possuem tanta consistência lógica quanto a formulação original do próprio Kant, com a vantagem de reconciliar um universo fragmentado em coisa-em-si e fenômeno, e uma mente fragmentada em conhecimento finito e infinito. Por outro lado, como ficou claro mais tarde, nenhuma delas respeitava a condição de abster-se da especulação, motivo pelo qual os defensores futuros de Kant desmereceriam estes mesmos recursos como corruptelas metafísicas, incapazes de um tratamento honesto das condições e intenções pressupostas pela filosofia transcendental.239 Enquanto a filosofia transcendental parecia permitir consequências especulativas em perfeita consonância com sua arquitetura conceitual, sua índole e proposta

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