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Metafísica e teodiceia.

No documento humbertoschubertcoelho (páginas 73-94)

Se a parte preponderante de uma metafísica é a elaboração de seus pressupostos, exigindo quase sempre uma prévia epistemológica que os justifique, a metafísica de Böhme realmente dificulta sua própria aceitação. Não possuindo a capacidade e a intenção de prolongar seu já extenso trabalho numa satisfação formal e metodológica para os filósofos, nosso autor optou pela subsunção do Cristianismo como doutrina e fé de seu leitor. Esta postura deveria colocá-lo mais na posição do teólogo do que do filósofo, mas há razões para crer que as profundas implicações lógicas, a harmonia do conjunto e a clareza do pensamento deslocam a obra de Böhme no mínimo para a condição de teologia sistemática ou “filosofia religiosa”.

Por outro lado, tomado a partir do contexto místico do neoplatonismo, desponta neste pensamento uma forma simplificada de gnose, sob a qual assenta uma fenomenologia do espírito ou psychologia vera. A tarefa presente é a de apontar a ligação entre esta e a metafísica de Böhme. O estudo da empiria mística (a psicologia e fenomenologia da vontade)

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Siegfried WOLLGAST. Philosophie in Deutschland zwischen Reformation und Aufklärung, 1550-1650. Pg. 698.

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nos mostrou há pouco que os fundamentos do pensamento de Böhme nem carecem de sistematicidade, nem tampouco assentam sobre princípios.

Como é típico às metafísicas antigas e medievais, anteriores à descoberta da dúvida metódica como ferramenta epistêmica, o pressuposto de Böhme confunde-se com a sua consequência. Não que a proibição moderna quanto a esta organização invalide o seu valor como expressão de uma intuição profunda que se crê, e tem todo o direito de fazê-lo, detentora de uma parcela de verdade. Mas a filosofia posterior reconheceu que, de fato, tanto a dúvida cartesiana quanto a crítica kantiana mostraram-se, embora contornáveis por outros artifícios, impossíveis de se desconsiderar como argumentos preponderantes de aferição da objetividade de um sistema. Assim, de maneira tipicamente neoplatônica, e ingênua, declara- se sempre que o homem é dotado de uma similaridade com o Uno, que ele possui para este Uno um sensorium interno, tão eficaz quanto o sensorium externo o é para o conhecimento mundano.124 Este sentido especial não está, entretanto, na alma inculta, mas deve surgir de ascese e pura vontade, na forma de um “olho transformado”.

A alma é um olho no seu eterno incriado. Um símile da eternidade. Uma figura e imagem do primeiro princípio e igual ao Pai em suas três pessoas... Então o Verbum Domini colocou a alma junto ao eterno Fiat na eterna vontade do Pai, no centro da eterna natureza e aberta ao Espírito santo, mas como um fogo, que jaz na eternidade,...

Ela (a alma) é como um olho de fogo, surgida em igualdade com o primeiro princípio.125

A imagem habita também no fogo da alma, assim como a luz habita o fogo... Agora figura-se a herança do Fiat na essência flamejante da alma, uma imagem da alma segundo a imaginação, em sua vontade, aquilo que no fogo essencial da alma se anseia, isto é formado na alma, como figura mundana, para onde encaminha-se a vontade da alma...

Se a alma então encaminha-se com a sua vontade contra os ventos da mundanidade, e lança-se em Deus novamente, ela recebe novamente a imagem de Deus...126

Conforme já foi dito, a fenomenologia exata deste processo está em posse da mística, que foi desde o começo desperta para esta realidade espiritual através da revelação cristã. Mas cabe ressaltar o aspecto voluntarista da ascese gnóstica. A revelação nos aponta a existência

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Friedrich Cristoph OETINGER. Kurzer Auszug der Hauptlehren Jakob Böhms. J. B. S. Pg. 64.

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Jakob BÖHME. Das umgewandte Auge. S. J. B. Pg. 298-299.

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da experiência sui generis que origina a mística, mas esta experiência é universal em sua essência, e pode ser atingida com um pouco mais de esforço pelo judeu, pelo turco ou pelo pagão, que possuem revelações menos claras do caminho.127

Pelo olho da alma (que é o coração na linguagem de alguns místicos, ou o intellectus na linguagem dos escolásticos), o espírito reconhece o que é espírito, enxerga e pode unir-se a Deus, esforçar-se em tornar a sua vontade igual a Dele. A vontade e a essência de Deus não podem, no entanto, ser concebidas fora da relação, e por uma redução fenomenológica há que se chegar à ideia de um Deus em si mesmo, anterior à existência e à Criação. Este não pode ser em si nada do que é em ato, pois para que haja o ato é necessário um oposto sob o qual ele possa agir, e assim realizar-se como bom, justo, belo, amoroso, etc.

Nisto está o coração do Idealismo Alemão, com a necessidade de um oposto ao Eu fichteano ou na figura de um abismo sem fundamento schellinguiano. Quando Deus está só em si mesmo, há apenas um indeterminado (Ungrund).128 Ou, conforme Plotino, “Não há nem mesmo um lugar para ele, pois ele não tem necessidade de uma base ou fundo no qual apoiar- se... De fato, se ele é anterior ao movimento e ao pensamento, no que poderia pensar”129. Nesta mesma disposição escreve nosso autor: “O indeterminado não possui vida, mas a partir desta qualidade toda a vida nasce: o indeterminado não possui movimento ou sensação, e assim também encontra-se o nada na eterna vontade de Deus, sobre estes fundamentos não se sabe nada, e nada se deve pesquisar, pois que ele nos turva.”130

Este eco de Dionísio Aeropagita, é amplamente transposto e superado pela visão imediatamente seguinte de Deus como espírito. Mas esta visão espiritual só pode ocorrer após a criação, no contato misericordioso com suas obras (Espírito Santo). É a partir da obra que reconhecemos em Deus um espírito absoluto, onipresente, onisciente, misericordioso, etc;131 e afora os atributos perceptíveis na Providência atuante na natureza não se pode saber nada de Deus.

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Jakob BÖHME. Aurora. S. J. B. Pg. 184.

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Seguimos aqui a orientação de Nikolas Berdiaeff para a tradução de Ungrund como indeterminado, ao invés das possíveis acepções como não fundamento, sem fundamento, infundado, etc. Conforme este autor, o Ungrund de Böhme não tem relação com a ideia de um vazio intelectual, comum à mística, mas está associado à imprevisibilidade da Vontade de Deus. A ausência de condicionamento e determinação, portanto, é a figura que melhor representa a liberdade primeva, anterior à Criação. Nikolas BERDIAEFF. Études sur Jakob Böhme. Pg. 12.

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PLOTINO. Tratado das Enéadas. Pg. 133.

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Jakob BÖHME. Von der Menschwerdung Jesu Christi. S. J. B. Pg. 309.

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ROMANOS 1: 20. “Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foram criadas.”

À semelhança de Plotino,132 o Uno silencioso e incognoscível revela a sua própria unidade, não pela sua raiz primeira, que está intocada, mas porque perpassa todos os existentes, porque tudo que é se revela como seu desdobramento e aponta para ele como causa e essência.133 No não-fundamento anterior não há como distinguir ou conceituar, e esvaziam- se os atributos de bom e mau, existente não existente, assemelhando-se Ele ao nada.

Ele é o todo e o nada, ele é uma vontade única, onde subsiste o mundo e toda a criação, tudo nele é sem princípio, tudo tem o mesmo peso, ele não é luz nem escuridão, (porque não há o que iluminar ou escurecer), senão o eterno Um. Esta mesma infundada, intocada, inatural e incriada vontade, que é Uma e não tem nada diante de si ou atrás de si, que é em si mesma somente Uma, que é como o nada e o tudo: Este chama-se e é o Deus eterno, que se toca e se encontra a si mesmo, e Deus nasce de Deus...134

Desta vontade sem fundamento surge então a trindade, igualmente una e eterna, mas não mais incognoscível e impenetrável, porque já se formou a diferença:

Assim a vontade sem fundamento se chama Pai, a vontade tocada e nascida do indeterminado chama-se Filho, então ele é o ente do não-fundamento, que faz do não-fundamento um fundo. E a saída da vontade infundada, pelo Filho que está tocado, ou ente, chama-se Espírito: assim ele conduz o seu ente tocado para fora de si, na trama e na vida da vontade... Este três seres em seu nascimento são de toda a eternidade...135

Esta é talvez a parte mais importante da cosmogonia de Böhme, porque aqui se reúnem vários problemas delicados e para os quais não havia solução suficiente até então. Isto porque a teodiceia de Böhme, sobretudo na sua mais completa exposição em Mysterium Magnum, não apenas resulta logicamente de sua metafísica, mas surge como justificação da mesma. Metafisicamente Böhme não pode deixar de admitir que Deus é o princípio e o

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Observa-se o comentário de Giovanni REALE & Dario ANTISERI em seu História da Filosofia, sobre a originalidade do Uno plotiniano: “Ora, há princípios de unidade em diversos níveis, mas todos pressupõe um princípio supremo de unidade, que ele denomina precisamente de “Uno”. Platão já havia colocado o Uno no vértice do mundo ideal, mas o concebia como limitado e limitante. Plotino, no entanto, concebe o Uno como infinito. Somente os naturalistas haviam falado de um princípio infinito, mas o concebiam na dimensão física. Plotino descobre o infinito na dimensão do imaterial e o caracteriza como potência produtora ilimitada. E, consequentemente, como o ser, a substância e a inteligência haviam sido concebidos na filosofia clássica como finitos, Plotino coloca o seu “Uno” acima do ser, da substância e da inteligência.” Pg. 340. Esta interpretação, nós a validamos integralmente no que toca a Jakob Böhme.

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PLOTINO. Tratado das Enéades. Todo o tratado “Sobre a descida da alma nos corpos”.

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Jakob BÖHME. Von der Gnadenwahl. S. J. B. Pg. 355.

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fundamento causal do mundo,136 enquanto, teologicamente, continua sustentando que o papel de Deus como causa sui, é desprovido de sentido no momento anterior à criação, já que o “ser um criador” é uma condição que depende do ato de criar. Falar de Deus como Criador, como princípio e fundamento do mundo, é falar exclusivamente de seu papel no mundo, e não de sua essência íntima.

Está claro, conforme o exposto, que num “não-tempo”, somente anterior à criação no que se refere a uma hierarquia metafísica, Deus é um não-fundamento ou nada, um silêncio absoluto como um não-Pai, pois que não há ação. É Deus enquanto pura potência sem direção. Esta figura é inconcebível no tempo, porque desde que seja Deus precisa criar algo, porque é vontade, e a vontade precisa antepor-se a objetos. Assim a primeira exteriorização nascida de Sua vontade é uma parte de si que já se distingue do agente, e é então imediatamente definida e particularizada como um outro. Sem esta primeira autorevelação, não haveria Pai e Filho. E o Filho, sendo a exteriorização da vontade para si mesma, apresenta-se como autoconsciência da vontade indeterminada. Neste processo, que deve ser entendido como uma metáfora atemporal da formação do espírito (tanto o divino quanto o nosso) a vontade original observa-se e, mesurando o seu poder, cria para si mesma a idealização de tudo o que pode e deve ser. Há de, então, estabelecer-se necessariamente uma força, um terceiro elemento que os ponha em relação, criando entre eles uma bem- aventurança, uma harmonia entre o abismo e a decisão particular de criar segundo a consciência. Este terceiro elemento, embora aparentemente menos essencial que os dois anteriores, é a capacidade imprescindível para que vontade e consciência se reunifiquem, e sem este “Espírito Santo”, a força inteligente não retorna sobre si mesma para tornar-se espírito. Ademais, este elemento é, dos três, o mais evidentemente não-elementar, porque se a vontade incondicionada pode casar-se perfeitamente, no espírito, com a consciência, é sinal de que, em verdade, nunca houve qualquer diferenciação significativa entre vontade e consciência, mas sempre somente um espírito, ou processo da vontade consciente no qual os “momentos” são meramente alegóricos.

O mérito maior de Böhme, segundo John Cooper, foi dar um passo além de Cusa e do Neoplatonismo, inserindo separação, movimento e vida no próprio Deus.137 Ao mesmo tempo em que preserva a noção de indeterminado, no Ungrund, ele também vê o Deus revelado na sua forma trina, perfeitamente identificável no espírito, como vontade, bondade e ação.

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Aqui o conceito de causalidade é incompatível com a ideia mecânica, que se desenvolve numa série temporal, devendo-se manter em mente a ideia de primazia na hierarquia metafísica.

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Até aqui a palavra espírito foi utilizada admitindo-se a pré-compreensão do seu sentido filosófico, mas para compreender a sua importância metafísica é preciso delineá-la agora com exatidão. Espírito é vontade, consciência e o poder de fazer da ação o fruto da comunhão entre vontade e consciência. Se a vontade for espontânea e incondicionada em absoluto, há um determinismo da arbitrariedade da vontade (Schopenhauer). Se a consciência é reguladora absoluta, há determinismo da forma (Espinosa). Portanto, as filosofias que atribuem o determinismo de qualquer destas funções, ou não compreendem a totalidade do espírito ou tentam abstrair uma de suas propriedades (atributos). Se, no entanto, vontade e consciência são compreendidas como movimentos ou propriedades oriundas de um mesmo foco, precisam estabelecer um meio-termo, para produzir a ação, e o espírito mede a sua própria vontade em face do que a consciência lhe apresenta, então ele escolhe em que sentido vontade e consciência se conciliarão (ou não), e é senhor de suas ações.

Esta conciliação só é possível porque em verdade vontade e consciência não são coisas distintas, a sobrepor-se uma à outra, mas são dois aspectos do espírito (ou pessoa), e, portanto, unidos desde sempre, formando um só e indivisível processo.

O espírito é, assim, o processo de ser pessoa, e este processo criador tem, sobre outras formas de “causa sui”, a vantagem de explicar ao mesmo tempo a incondicionalidade e a organização do cosmo. Um voluntarista absoluto, como Schopenhauer, precisa executar um malabarismo para justificar a estruturação da vontade, irracional, em ideias, pois não há uma razão sólida para justificar o fato de que o fundamento irracional do mundo, sem tomar consciência de si, elabora e segue fielmente determinadas leis. Um formalista absoluto, como Espinosa, encontra facilidade em justificar as leis do mundo como objetivações do intelecto, e a existência do mundo como matéria, ambos pertencentes à Substância, mas ele também falha em explicar o que é a vida, o que é a vontade, e qual é o sentido da vida. Não por acaso ambos concluem pela efemeridade da vida humana. O sistema do todo absorve toda a importância, não deixando nada para a existência individual, do que decorrem determinismo e quietismo.

Na filosofia do espírito, entretanto, soluciona-se duplamente o problema do mundo e o problema da vida individual. Se o fundamento é o processo dialético que chamamos de espírito, as suas criações são espirituais, dinâmicas, e herdam da fonte a capacidade de sustentarem em si próprias a própria identidade. Não existe, kantianamente falando, um órgão para vontade e outro para o pensamento. O homem é livre porque a trindade entre vontade, consciência e ato, os três princípios do que ele é, são nele ativos e unificados.

Assim o Pai é eterno ator que emerge do nada, a eterna liberdade incondicionada, o Filho é o eterno bem surgido da consciência quanto ao direcionamento da vontade, e o

Espírito Santo é a eterna glória, a eterna decisão de agir segundo a consciência. Os três não conhecem tempo e não admitem diferença entre si, mas são uma unidade inseparável, três fases do mesmo movimento do ser.

O não-fundamento é agora o fundamento, o Pai, e o seu ente é o Filho, d’Ele nascido e a Ele unido pelo Espírito Santo. Não olvidando que “Böhme repete frequentemente que, para compreender e representar a geração de Deus, deve-se sempre manter em mente que este processo não é temporal, não ocorre na sucessão, mas de maneira eterna, na simultaneidade.”138

Por outras palavras, o Pai é condição do Filho, mas co-eterno com ele, e o Espírito Santo é a alegria da resolução que aos dois primeiros gerou. Este é o sentido do Gênese quando se diz que “Deus criou e viu que era bom”. Até aqui, e nos elementos que se seguem, percebe-se claramente a formação de uma teosofia (sabedoria de Deus), bem como uma metafísica que, de certa forma, contrariam a tendência mística. Se quanto à vontade Böhme é um místico, ele ousa descrever a natureza íntima de Deus, tanto quanto manifesto na natureza, contrariando assim toda a pretensão mística de resguardar a divindade no terreno do absolutamente incognoscível. E nisto, repetimos, ele conserva a gnose neoplatônica.

O quarto elemento, que constituirá a Criação, e agora sim algo de efetivamente apartado da unidade primordial, pode também ser eterno, sem que deixe de ser criado, porque a vontade primordial não pode dividir-se em mais do que a trindade “fundo, fundado e a harmonia entre os dois”, mas tem de se separar numa outra vontade para que possa haver uma diferença. Na linguagem posterior de Goethe, a qual consideramos mais apropriada, este seria Lúcifer. Mas em Böhme existe ainda uma camada de ligação entre a trindade e a matéria, que seria a sabedoria divina ou a virgem Sofia. Sofia é virgem porque é imaculada, sem qualquer contato com pecado, trevas ou matéria, embora seja inteiramente criada e não participante do ser profundo da trindade. Ela é a ideia segundo a qual Deus elabora o plano da natureza. No esclarecimento de Hermann Schwarz “A primeira corporeidade de Deus são as imagens eternas de todas as coisas, a sabedoria feita virgem. A segunda corporeidade de Deus é o céu interior incriado”.139

Nesta exposição consideravelmente platônica observa-se duas características peculiares. Deus é criador dos fundamentos do mundo, mas estes mesmos fundamentos constituem-lhe a corporeidade, e são, portanto, extensões dele. Há ao mesmo tempo teísmo e panteísmo. O segundo ponto que vale ser ressaltado é o fato de que a ordem da criação

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Hans Lassen MARTENSEN. Jacob Boehme: His Life and Teaching, or Studies on Theosophy. Pg. 53.

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começa pelas “ideias” de todas as coisas, que são seguidas pelo reino divino eterno e interior. Há, portanto, uma espécie de distanciamento ou decaimento do mais espiritual para o menos espiritual: Deus indeterminado, trindade, sabedoria divina, reino de Deus, trevas ou matéria. Precisamente as hipóstases de Plotino.

Este elemento não pode ser senão uma contrariedade, uma oposição à vontade santa, porque esta tem necessariamente de refletir-se naquela. Para que possa agir, tem de criar um oposto radicalmente outro sobre o qual age.

A natureza tem em si duas qualidades sob a determinação de Deus, uma amável, divina e santificada, e uma sombria, infernal e causticante...

Então igualmente a natureza origina bem e mal, assim também é o homem: mas o homem é a criança de Deus, o qual Ele retirou da melhor semente da natureza, para reinar no bem e suplantar o mal...

Como uma mulher no parto, o bem e o mal estão sempre presentes na natureza, e não há coisa sem bem e mal na natureza.140

Deus precisa criar Lúcifer, a luz precisa criar treva, a infinita ação tem de criar a morte, a inação. Deus cria então o seu maior oposto na figura da matéria e da vontade que prefere inclinar-se para a matéria do que para Ele. Por isso Bruno defende a matéria como substância onipresente, una e coeterna a Deus,141 no que é seguido por Böhme e Espinosa, embora o primeiro elabore ainda um intermediário entre a substância intelectual e a extensa na forma da segunda e da terceira pessoa da trindade, que não são criadas, e da sabedoria, que é uma criação sem contradição.

Em relação aos panteístas clássicos, Böhme sustenta um grau bastante elevado de distinção entre Deus e o mundo, os homens entre si e o mundo e os espíritos. O mundo não é necessário para a completude do ser de Deus, é necessário, apenas, para a completude de sua função. Segundo o filósofo e teólogo Hans Martensen, Deus está desde sempre diante de uma ideia, e esta ideia é o espelho de si mesmo, a mostrar-lhe o que pode tornar-se o poder de sua vontade. Deste espelho, desta ideia ou sabedoria original (Sofia) brota certamente uma crescente vontade de criar, de atualizar o que é pura consciência.142 Em termos mais ou menos leibnizianos, pode-se dizer que Böhme também reservava a Deus a liberdade do ato criativo,

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Jakob BÖHME. Aurora. S. J. B. Pg. 97-101.

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Giordano BRUNO. Cause, Principle and Unity. And Essays on Magic. Pg. 76-82. Obs: As semelhanças entre Paracelso e Bruno e o fato de este ter continuado em sentido propriamente filosófico o que aquele havia proposto podem indicar que a ligação de Böhme para com o filósofo de Nola estejam além daquilo que a hermenêutica atual já pôde constatar.

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No documento humbertoschubertcoelho (páginas 73-94)