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O fundamento do direito à revisão

CAPÍTULO V – A revisão dos contratos no Código do Consumidor

2. O fundamento do direito à revisão

É comum no mundo jurídico a celebração de contratos que não se destinam a produzir efeitos de imediato, ou que se traduzem numa série de prestações que se prolongam no tempo. Pode suceder, porém, que fatos posteriores à contratação, imprevisíveis nessa data, venham alterar profundamente as circunstâncias em que as partes se basearam, comprometendo a economia e o equilíbrio do contrato, de modo a inviabilizar o seu cumprimento, pena de levar uma das partes à ruína, dada a excessiva onerosidade de sua prestação.

Ora, o contrato tem uma finalidade social; não pode ser meio de aniquilamento econômico. “Por certo, em todo contrato há uma certa dose de álea, mas tudo tem o seu máximo e o seu mínimo, e a previsão do homem médio se faz dentro desses limites. A rigidez do pacta sunt servanda conduziria a situações da mais flagrante injustiça”6.

Em tais situações, segundo Carbonnier, “revisar a convenção equivale a dar-lhe a única oportunidade de que se cumpra, e sabido é que o interesse econômico do país está mais vinculado, pelo geral, ao cumprimento do que ao incumprimento dos contratos”7.

O fundamento da revisão, acima da regra jurídica, diz Georges Ripert: “Repousa com efeito, sobre a idéia moral de que o credor comete uma suprema injustiça, usando do seu direito o maior rigor. Ergue contra a pretensão do credor a regra protetora do devedor injustamente lesado pela sorte. Não nega que a lesão tenha sido voluntária, recusa aceitar essa vontade imoral”8.

De fato, é inadmissível a atuação de uma parte que procura tirar do contrato todas as vantagens que ele comporta, se isto redunda em enriquecimento injusto, posto que mero fruto do acaso, enquanto para a outra parte é fonte de ruína. “O abuso começa no momento em que o desequilíbrio das prestações é tal que o contratante não podia

6

BESSONE, Darcy. Do Contrato..., p. 218.

7

CARBONNIER, Jean. Derecho Civil..., p. 535: “revisar la convención equivale a darle la única oportunidad de que se cumpla, y sabido es que el interés económico del país está más vinculado, por lo general, al cumplimiento que al incumplimiento de los contratos”.

8

normalmente prever que ia tirar do contrato tal vantagem”9. Ou nas palavras de Arnoldo

Medeiros da Fonseca: “(...) não é o contrato a verdadeira fonte desse enriquecimento; mas a superveniência imprevista. E se é legítimo assegurar coativamente a execução de um direito convencionado, constituirá talvez uma suprema injustiça permitir que assim se vá proporcionar a uma das partes, pelas circunstâncias supervenientes, vantagens novas e inesperadas, à custa da ruína e do sacrifício do outro contratante”.10

No direito brasileiro, a teoria revisionista dos contratos não era expressamente regulada no Código Civil de 1916, porém de forma esporádica em legislações esparsas. Isso, entretanto, não impedia o seu acolhimento, a partir da interpretação do art. 85 do referido diploma, que ordenava se considerassem nas declarações de vontade mais “à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”. Com isto, o respeito a esta vontade importava “em afastarem-se as circunstâncias excessivamente onerosas que podem romper a comutatividade do pacto”.11

J. M. Othon Sidou relata que, no nosso direito, “a teoria revisionista teve o batismo judiciário em 1930, com a sentença do então Juiz Nelson Hungria, quem, corajosamente, reconheceu e admitiu a interrupção contratual por motivo superveniente”, entendendo:

É certo que quem assume uma obrigação a ser cumprida em tempo futuro sujeita-se à alta dos valores, que podem variar em seu proveito ou prejuízo; mas, no caso de uma profunda e inopinada mutação, subversiva do equilíbrio econômico das partes, a razão jurídica não pode ater-se ao rigor literal do contrato, e o juiz deve pronunciar a rescisão deste. A aplicação da cláusula rebus sic stantibus tem sido mesmo admitida com um corolário da teoria do erro contratual.”

“Considera-se como já viciada, ao tempo em que o vínculo se contrai, a representação mental que só um evento posterior vem a demonstrar ser falsa. Se o evento, não previsto e imprevisível, modificativo da situação de fato na qual ocorreu a convergência das vontades no contrato, é de molde a quebrar inteiramente a equivalência entre as prestações recíprocas, não padece dúvida que se a parte prejudicada tivesse o dom da pré-ciência, não se teria obrigado, ou ter-se- ia obrigado sob condições diferentes.12

9

RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, p. 164.

10

FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, p. 243.

11

SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos Contratos..., p. 151.

12

123 Já o Código Civil de 2002 preocupou-se com a situação decorrente da onerosidade excessiva, assim dispondo:

“Art. 478 Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que decretar a resolução retroagirão à data da citação.

Art. 479 A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Art. 480 Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.”

A seu turno, dentro da preocupação protetiva que lhe é inerente, o Código de Defesa do Consumidor trouxe expresso o direito de revisão do contrato sempre que houver adoção de práticas ou cláusulas abusivas pelo fornecedor, estipulação de prestações desproporcionais ou ocorrer a superveniência de fatos que tornem as prestações excessivamente onerosas para o consumidor. Vale, neste sentido, lembrar o disposto no art. 6º do referido Código:

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;”

Assim, no campo das relações de consumo, fatos que venham a desequilibrar o contrato, trazendo excessiva onerosidade ao consumidor, autorizam a revisão do que foi primitivamente ajustado, de modo a se restabelecer a igualdade na contratação, o que também é direito básico do consumidor (art. 6º, II, CDC).