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4.1 TEORIA DE CONCILIAÇÃO DE METAS

4.1.1 Fundamentos

Rauen fundamenta a teoria de conciliação de metas nos princípios cognitivo e comunicativo de relevância tais como expostos no capítulo anterior desta tese. Contudo, adere à tese de Lindsay e Gorayska de que o conceito de relevância é um predicado dependente de meta. Os autores defendem que os indivíduos atribuem relevância a inputs conectadas com uma finalidade e formulam uma definição formal de relevância dependente de meta, tal como se apresenta a seguir:

Definição formal de relevância dependente de meta

“P é relevante para G se e somente se G é uma meta e P é um elemento essencial de algum plano que é suficiente para alcançar G”. (2004, p. 69).

Por metas, Lindsay e Gorayska definem certas representações simbólicas e abstratas de estados do mundo que podem ser objetos de planejamento. Metas assim definidas podem ser classificadas como cognitivas ou finais, e a maioria delas integra cadeias complexas de metas. Segundo eles, “uma meta cognitiva decorre de, justifica-se por ou contribui para a elaboração ou a execução de metas finais, de maneira que sua especificação associa-se a condições de satisfação que o agente acredita estarem alcançadas quando ele se encontra no estado de meta final” (RAUEN, 2014, p. 2).

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Dada a complexidade do artigo, o ineditismo das proposições e a constrição de espaço do periódico para desenvolver o tema, segue-se a dificuldade de resenhar o texto, motivo pelo qual será necessário citar muitas das passagens nele contidas.

A correlação entre relevância e metas também pode ser vista em Silveira e Feltes (1999, p. 37), quando elas afirmam que as pessoas prestam atenção a estímulos que, em alguma medida, vêm ao encontro de seus interesses ou se ajustam às circunstâncias do momento. É justamente nesse ponto que Rauen (2013, 2014) reflete sobre a distinção entre reatividade e proatividade que fundamenta sua crítica posterior à teoria da relevância. Para ele, os indivíduos, de fato, podem estar reagindo a estímulos, muitos dos quais nada contribuíram. Contudo, em muitas das circunstâncias, eles podem estar agindo a partir de interesses pré-determinados. Nesses casos, tais inputs são avaliados e ajustados a esses interesses. Com base nesta constatação, o autor vai além, sugerindo que os indivíduos podem ser propositivos ou proativos e intervir deliberadamente nesses contextos esperando que essas intervenções contribuam para atingir esses interesses.

É justamente aqui que emerge a crítica à teoria da relevância. Segundo Rauen, o procedimento de compreensão guiado pela noção de relevância, embora eficaz para descrever e explicar a interpretação de inputs verbais, consiste numa arquitetura antes reativa de proativa, dado ele é mobilizado pela emergência de um enunciado. Em seus termos, “a meta do emissor é presumida e, em geral, inferida na interpretação, e a meta do receptor restringe- se a mero aperfeiçoamento cognitivo. Além disso, a emergência criativa de hipóteses para a necessária ampliação de contexto é pouco desenvolvida” (RAUEN, 2014, p. 2).

Com base nessa argumentação, o autor defende a hipótese de que a ampliação do contexto cognitivo é abdutiva, e a cognição é movida antes por uma conclusão presumida do que pela emergência de premissas, de maneira que a modelagem dedutiva é apenas parte do processo de avaliação ou de checagem dessas hipóteses abdutivas.

Rauen elabora, então, uma modelação proativa de metas. Sua tese central é a de que os indivíduos produzem, inclusive em casos de interpretação de enunciados, uma inferência à melhor solução. Nesse processo, eles escolhem a premissa que melhor concorre para a consecução da meta. Para o autor, “a presunção de relevância ótima e o próprio princípio comunicativo de relevância nada mais são do que inferências à melhor explicação para a emergência ostensiva de um enunciado” (2014, p. 3).

Rauen define abdução como “um processo de raciocínio que parte de uma observação do tipo x é Q”, seguida da inferência de “uma hipótese de conexão nomológica entre P e Q” e da conclusão de uma hipótese particular do tipo “x é P”. Com base nesse tipo de raciocínio, em geral utilizado para produzir explicações pós-factuais, o autor (2014, p. 3) formula uma explicação aplicável a instâncias pré-factuais, tal como segue:

Tome-se o caso de uma meta Q qualquer e um indivíduo i que projeta estar nesse estado de meta Q no futuro. Nesse caso, x é Q equivale a um estado x qualquer que satisfará a expectativa de se atingir a meta Q. Ato contínuo, o indivíduo i formula uma hipótese abdutiva de que há uma conexão nomológica entre P e Q e considera uma ação antecedente P como pelo menos suficiente para atingir Q. Segue-se que x é P, e o indivíduo i executa a ação P na expectativa de atingir Q9.

Seguindo Psillos (2002, p. 7), o autor ressalva que aceitar hipóteses abdutivas antefactuais implica superar três problemas encontrados em hipóteses pós-factuais: o problema de haver múltiplas explicações rivais, o problema da probabilidade de a hipótese abdutiva estar errada, e o problema da natureza da explicação.

No que se refere ao primeiro problema, Rauen admite que uma meta também pode ser atingida por muitas soluções rivais do mesmo modo como se pode explicar um evento por muitas hipóteses rivais. Em ambos os casos, o raciocínio abdutivo não possui ferramentas para restringi-las. Psillos (2002, p. 7-8) pondera, contudo que o sucesso das explicações abdutivas espontaneamente feitas por seres humanos sugere haver “mecanismos para classificar hipóteses por suas virtudes explicativas”. Rauen (2014, p. 4) complementa:

Para ele [Psillos], hipóteses explicativas são melhores quando explicam os fatos, são licenciadas por crenças de fundo, são simples, têm poder unificador, são mais testáveis e, principalmente, implicam novas predições. Esses requisitos, que poderiam ser subsumidos por palavras como experiência, bom senso, expertise, etc., apesar de não algorítmicos, permitiriam a classificação de hipóteses ou a emergência de uma única hipótese tomada como a mais plausível. É o que ocorre, por exemplo, na diagnose de problemas mecânicos ou de doenças por profissionais experientes.

Segue-se disso a extensão da noção de inferência à melhor explicação a situações pré-factuais, argumentando haver inferências à melhor solução, vinculadas ao que ele denominou de princípio de plausibilidade. Veja-se:

Assim, se uma hipótese abdutiva explicativa He é aceita quando explica as

evidências e nenhuma outra hipótese rival o faz tão bem como He faz; então, uma

hipótese abdutiva antefactual Ha é assumida quando sugere atingir uma meta com

mais eficiência e nenhuma outra hipótese rival faz isso tão bem como Ha faz.

(RAUEN, 2014, p. 4).

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Rauen admite que esse tipo de procedimento é ampliativo, porque ele não garante a verdade da conclusão mesmo a partir de premissas verdadeiras. Para ele, tanto “abduzir causa a um fenômeno observado pode ser uma explicação falsa” quanto “projetar uma hipótese abdutiva antefactual pode redundar em flagrante fracasso”.

Além disso, Rauen retoma a noção de relevância para operacionalizar o que denominou de princípio de relevância. Segundo ele (2014, p. 4), “a primeira hipótese He ou Ha consistente com princípio de relevância, no sentido em que a hipótese He ou Ha é aquela que emerge com menor custo para o efeito fixo de explicar um fato ou atingir uma meta, será aquela assumida como verdadeira”.

Essa expectativa de verdade, contudo, choca-se com o segundo problema levantado por Psillos em relação aos raciocínios abdutivos. Se a abdução é cancelável e bem podem ser falsas as hipóteses He ou Ha, resta justificar quais são as motivações de sua adoção. Segundo Psillos (2002, p. 9 apud RAUEN, 2014, p. 4), “embora a hipótese possa ser razoavelmente aceita como hipótese mais plausível com base em considerações explicativas (abdução), o grau de confiança nessa hipótese está ligado a seu grau de confirmação posterior.” Desse modo, inferências abdutivas configuram-se com etapas primeiras com as quais um indivíduo, confrontado com eventos novos, “acrescenta suposições plausíveis ao seu corpus de crença (o conhecimento enciclopédico da teoria da relevância)”. A chave para a noção de conciliação de metas é o fato de que a satisfação posterior dessas expectativas confirma a hipótese abduzida e, quanto mais confirma, mais factual a hipótese se torna.

Por fim, no que se refere ao problema da explicação, Rauen acompanha a observação de Peirce (1975) de que hipóteses abduzidas tornam naturais fatos surpreendentes. O autor sustenta que explicações visam a melhorar a compreensão dos eventos, ou seja, quando o indivíduo consegue mostrar como um evento pode “caber no nexo causal/nomológico das coisas que ele aceita”. Rauen (2014, p. 4) assim se expressa sobre o pensamento de Psillos.

Para ele [Peirce], os indivíduos removem a surpresa quando a aceitação de certas hipóteses explicativas e a sua incorporação a seu corpus de crença ajuda a incluir o evento explanandum e neste corpus de crença. Assim, se a memória enciclopédica M é este corpus de crença, se e é o evento explanandum e se H é uma hipótese potencial, então H deve ser aceita como uma explicação potencial de e, se M sozinho não explica e, mas MH o faz (PSILLOS, 2002, p. 10). Isso em tudo converge com a inserção da informação nova ou novamente apresentada no contexto de informações enciclopédicas consideradas pela teoria da relevância.

Vale mencionar, além disso, que a proposta de Rauen alinha-se com o modelo de ação intencional de Tomasello e colaboradores (2005, p. 676-678). Nesse modelo, meta, ação e monitoramento perceptual compõem um sistema adaptativo circular de autorregulação do organismo com o ambiente. Segundo os autores, o exemplo prototípico de um sistema adaptativo circular de autorregulação é um termostato, porque esse sistema monitora a temperatura do ambiente em função de uma temperatura padrão. É justamente essa

temperatura que funciona como meta do sistema. Assim, se o agente externo estipula como meta 20ºC, então, os processos de autorregulação do termostato convergem no sentido de prover a solução mais plausível para a obtenção dessa temperatura.

Rauen também empresta dos autores as noções de metas internas e externas. Uma meta interna, segundo Tomasello e colaboradores, consiste na representação de estados desejados; uma meta externa consiste em certos estados do ambiente que representam a consecução da meta interna.

Além disso, toma de Bratman (1989) a noção de intenção como “um plano de ação que o organismo escolhe e se compromete na busca de uma meta.” Conforme interpreta Rauen, o conceito de intenção “inclui tanto a meta como o plano para atingi-la, o que permite atribuir diferentes intenções a uma mesma ação”. Logo, segue-se de uma meta Q uma intenção de agir de certo modo para atingi-la.

Por fim, assume de Tomasello e colaboradores a noção de monitoria perceptual da realidade atual, da execução e do resultado, para então retrabalhá-las no que ele vai denominar de conciliação de metas. Para esses autores, há três consecuções típicas de uma ação. Quando o estado da realidade não se altera em função da ação do indivíduo, então ocorre um fracasso e, provavelmente, a decepção como resultado emocional dessa consecução. Quando o estado da realidade coincide com a meta, ou seja, quando a meta externa coincide com a meta interna, ocorre um sucesso e, provavelmente, a alegria decorrente dessa consecução. Por fim, quando há um resultado indesejado, os autores afirmam ter havido um acidente e, provavelmente, a consequente surpresa. Os autores sugerem que fracassos e acidentes são tipicamente seguidos por esforços persistentes e muitas vezes variáveis em direção à meta.10

Rauen, então, destaca a confluência dessa argumentação com a noção de relevância, tal como desenvolvida por Sperber e Wilson (1986, 1995), na medida em que Tomasello e colaboradores argumentam que o organismo não percebe tudo nesses processos de monitoria, mas atende apenas a aspectos da situação que são relevantes, o que eles denominam de percepção intencional ou atenção seletiva.

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Um estudo consistente sobre consequências lógicas da persistência na consecução de uma meta na arquitetura da teoria da relevância pode ser visto na dissertação de Luciano (2014).

Os autores completam: “Este processo de monitoramento completa, assim, a característica de arranjo circular da ação intencional: o organismo age de modo tornar a realidade (como se percebe) consonante com suas metas”.