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CAPÍTULO 2 O DIÁLOGO ENTRE GRAFITES E MODERNISMO

2.3 Futurismo e grafites: arte em movimento

O pensamento futurista se perpetuou em todas as vanguardas, como um sintoma de um estado mental amplo e profundo. Esse espírito anárquico, utópico e niilista irá influenciar as principais tendências modernistas. Mais que um movimento, foi um redemoinho de idéias e sentimentos de renovação, não apenas estética, mas também política. Uma espécie de “febre” suscitada pela vida moderna, pela máquina e pelos impulsos que a vida metropolitana pode provocar, com uma exaltação à velocidade e à multidão. Os futuristas, em seu manifesto, abordavam a arte integrada à vida e não como “qualquer coisa à parte”. Assim sua pulsão deveria provir do ritmo que despontava do próprio sentido da modernidade.

Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pelo levante, cantaremos as marchas multicores, e polifônicas das revoluções nas capitais modernas, cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos canteiros de obras incendiados por violentas luas elétricas , as estações vorazes devoradas de serpentes que fumam, as fábricas penduradas nas nuvens pelo contorcidos fios de fumaça. (Manifesto Futurista de 1916, in MICHELI, 2004, p.203).

A nova vida de ferro e a máquina, o rugir dos motores dos automóveis, o brilho das luzes elétricas, os rosnado das hélices despertam a alma sufocada na velha razão. Os anúncios luminosos, os letreiros, são inspiração para o artista, a arte traduzindo os estímulos que a própria cidade produz. Herwath Walden, integrante da vanguarda poética futurista berlinense, diz: “fiz meus mais belos poemas nas grandes cidades, no meio de cinco milhões de homens“. (BUENO, 1999, p.34)

O resultado desse olhar multifacetado da realidade aparece representado nos poemas-pinturas futuristas. As “palavras em liberdade” são arranjadas na página, os pintores fazem suas pinturas como fazem seus cartazes, com o uso da tipografia de forma não usual e com a ruptura de gêneros.

Esse era o legado dos futuristas: eliminar a distinção entre o campo pictórico e o mundo ”real”, fora do quadro. Esta distinção contribui para a ampliação literal da condição artística ao que estava “fora” e a uma dimensão social. A obra de arte da “alta” cultura incorpora os elementos da “baixa” cultura. “Os operários, carreteiros, pedreiros e toda a epopéia do trabalho, a construção do futuro, quem pintará tudo isso?”. (MICHELI, 2004, p.204).

A excitação por novas possibilidades de representação levara os artistas futuristas, inspirados no dinamismo urbano e industrial, à exploração da simultaneidade dos estados da mente, e com isso à velocidade do gesto pictórico e à conjunção de várias linguagens (verbal, visual e musical). As noitadas nos cabarés fundiam tudo isso e transformavam-se em verdadeiras

performances.

Atentos ao estado confuso de signos e à profusão caótica dos elementos visuais, os futuristas irão buscar nas ruas inspiração para suas obras. A arte, nos tempos da velocidade prenunciada pelos futuristas, promove uma lógica desregrada e multifacetada da visualidade.

Se observarmos hoje os grafites, notamos que estão impregnados dessas derivações futuristas, como a manipulação do signo, a decomposição da linguagem em letras e as apropriações do universo imediato e urbano das metrópoles. Nos grafites, as letras se fundem com cartoons e imagens da publicidade que já despertavam o interesse dos futuristas.

O movimento dinâmico, e contínuo, e a velocidade das cidades também servem de estímulo e de cenário para os grafites, tudo ao seu redor: um carro que passa em alta velocidade, os transeuntes. A cidade é a tela do grafiteiro. É nela que ele representa conjuntamente o trânsito, a arquitetura. É onde ele cria e organiza seus signos.

Os grafites pertencem a um desses processos que se apresentam no caótico espaço público de forma fragmentada.

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É capaz de alterar as relações de quem está na cidade, com a arquitetura, a publicidade, o comércio e o trânsito. Desloca a percepção e propõe uma desordenação do olhar. Da mesma forma “selvagem” como são produzidos, eles implicam também um modo rápido de apreensão de quem passa na rua. Suscitam a percepção

efêmera e não contemplativa do objeto artístico, diferentemente dos museus e galerias.

Os grafites se propagam nos espaços urbanos com uma velocidade incessante, e se multiplicam nos muros e viadutos da mesma forma como se alastram e se propagam os produtos e a informações nas cidades. A investida hipnótica e grotesca nos muros pelos grafiteiros com seus sprays pode ser

apresentada como um inebriante show de cores, gestos ritmados, numa velocidade que entorpeceria qualquer futurista.

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O resultado é uma síntese das artes: palavra, música, dança, arquitetura, cenografia, movimento [...] a retomada da onomatopéia futurista, a decomposição da palavra, a parolibera futurista, a poesia visual, a idéia do efêmero que caracterizou o Cabaret Voltaire. (OLIVA, 1998, p.26)

Remetem, desde suas origens, a um sentido de arte transgressora, um elemento que as vanguardas históricas, com certeza, não deixaram escapar. Recorrem a um conjunto de armas lingüísticas com origens fundadas no Futurismo, ao caráter fugaz e efêmero da arte, à fusão das várias linguagens, um fator que a arte contemporânea não tem cessado de explorar.

Os grafiteiros pintam suas imagens e palavras sobre os trens. A própria superfície funciona também como um reforço do seu sentido de origem, quando a própria linguagem suporte encontra-se em movimento, a quilômetros por hora, exigindo do receptor um tipo de percepção, também, fugaz. (Fig. 15- 16 – 17)

Essa coisa de pintar nos trens faz parte da história do grafiteiro, os caras pintam lá em Santa Luzia e os grafites acabam passando aqui, passam na Gameleira, no Betânia, Olhos dágua, Via Expressa. As pinturas vão lá para o Espírito Santo. [...] tem a ver com a origem. (Eu – grafiteiro – em entrevista concedida à à autora)

Um outro tipo de contato visual foi proposto pelos artistas Flávio Motta e Marcelo Nitsche, ao pintarem na década de 80 nos pilares cinzentos do

Minhocão em São Paulo, uma trajetória solar que adquiria “vida” na velocidade dos veículos, ou seja, uma obra disposta para um espectador em movimento. Essas propostas urbanas: “colocam a obra de arte sob um outro parâmetro de percepção, observada à velocidade do transporte motorizado”.(BARROS,1984, p.54)

Transformação, criação contínua, velocidade, para os futuristas o ativismo da vida moderna estava resumido nesse dinamismo. No caso dos grafites, a sua própria estrutura está em movimento, seu próprio sentido está apto a sofrer alterações e intervenções a qualquer momento, por algum transeunte, que lhe acrescenta uma forma, um risco, num processo contínuo e ambíguo de mensagens.